O último debate

2.2K 163 70
                                    

Já não tinha mais idade para descobrir desenho em nuvens. Ou assim acreditava. De pé, no quarto de hotel luxuoso, mas impessoal, contemplava o amanhecer desde há algum tempo. Até aquele momento, o sol havia perdido a batalha. Seria mais um dia nublado, frio e de compromissos por cumprir em São Paulo.

O olhar de Simone Tebet, porém, enxergava além dos arranha-céus. Fitava o horizonte tentando, a todo custo, não olhar para dentro de si. Sentia medo de encontrar-se depois dos últimos dias. Não gostava de perder as rédeas de si mesma, mas como era fácil perder-se no ímpeto da outra...

Permitiu-se visitar a memória de anos atrás, na faculdade de Direito. A forma como a então estudante Soraya Thronicke a confrontava, desafiava e, por vezes, afrontava nas aulas de Direito Administrativo. Simone sorriu. Poucas pessoas tinham o poder de tirá-la do eixo. Soraya era mestre nisso, sempre foi.

Pensando no futuro, na carreira que construía, foi incapaz de ceder aos flertes e investidas sutis da outra, não porque não quisesse, queria. E muito. As circunstâncias, porém... não poderia se dar ao luxo de um "deslize", sobretudo como integrante de uma das três oligarquias mais poderosas de Mato Grosso do Sul. Seguiu o roteiro confortável do "bom" casamento e da maternidade para entrar na política. Entre o desejo e o pragmatismo, deixou que o último vencesse. Até ali.

Permitiu-se uma última lembrança do sorriso impetuoso de Soraya e respirou fundo para encarar o dia. À noite, estaria presente no último debate antes do primeiro turno das eleições. Precisava estar preparada e não distraída. E Simone Tebet treinou-se uma vida inteira para ignorar seus quereres em prol de seu status.


Revisava as anotações que tinha preparado ao longo do dia com sua equipe e caminhava pelos corredores da emissora quando ouviu passos que, para sua surpresa, já conhecia tão bem. Levantou os olhos e encontrou Soraya Thronicke com sua equipe de assessores. Ela vestia um conjunto bege, com uma blusa e uma saia midi, e um sobretudo branco por cima.

- Boa noite, candidata – cumprimentou com um sorriso.

- Simone! Boa noite – e lá estava o sorriso que Tebet... amava? – Ansiosa?

- Um pouco, sim. Você?

- Também – fez o gesto de pôr uma mecha de cabelo loiro atrás da orelha. Tão simples, mas que fora acompanhado por Tebet com a respiração suspensa – Espero que tenha uma pergunta pra mim – sorriu.

- Se bem me recordo, sempre tive – Simone piscou e Soraya não encontrou a tempo uma resposta tamanha sua surpresa, o que havia sido aquilo? Seus assessores sinalizavam que precisam seguir, então ela se obrigou a dar os próximos passos ainda perplexa com a atitude de sua... sua?

Simone estava verdadeiramente nervosa. Ainda não acreditava em seu lapso. Justo no maior debate eleitoral, cometeu um deslize. Como poderia ter chamado Soraya de Candidata Bolsonara? Tentou contornar a situação elogiando-a em rede nacional, relembrando de quando havia sido professora dela. Mesmo assim, sabia que precisava se desculpar e queria fazê-lo a sós.

Culpava-se. Como poderia ter se deixado desestabilizar tanto pela presença de Soraya? A cada embate da ex-aluna com os demais candidatos, ajeitava-se discretamente em sua poltrona, tentando não sorrir. Conhecia muito bem a intensidade e a veemência como a outra se expressava. Era tão dela aquele jeito meio marrento, meio sarcástico e Tebet adorava aquela personalidade forte. Mais do que a prudência indicava.


Finalmente, estava liberada! Dispensou seus assessores e tentou a sorte. O camarim de Soraya era a duas portas do seu. Repassando algumas mensagens em seu celular, esperou. Alguns minutos depois, viu a equipe da outra candidata sair do local. Uns a cumprimentaram, outros passaram direto. Pouco tempo depois, com o sobretudo dobrado no braço, o cabelo preso, Soraya deixou o espaço a ela reservado, estava tão distraída em seu telefone que nem percebeu a presença de Simone ali.

- Yaya? – chamou quase num sussurro.

- Simone?! – assustou-se com a presença da outra. Tanto que quase não reparou no antigo apelido. Quase. Franziu o cenho, estava cansada – O que ainda faz aqui?

- Estava esperando você.

- Me esperando? Não entendo...

- Me permita me desculpar, por favor...

- Simone...

- Soraya. Por favor? – pediu buscando as mãos da outra. Thronicke respirou fundo e fechou os olhos. Estava mesmo cansada, queria dormir, mas queria esquecer mais um dia de caminhadas infinitas, entrevistas que não acabavam, monitoramento sem fim nas redes sociais. Ao mesmo tempo, a presença de Simone sempre fora um bálsamo. Tanto que havia sentido profundamente o vocativo usado "contra ela".

- Não sei se é uma boa hora...

- Eu sei, ainda assim, com a devida vênia, excelentíssima, eu insisto – disse de modo a fazer a outra sorrir balançando a cabeça.

- Você sempre me dobra...

- Sempre?

- Quase sempre.

Riram juntas. Quis o entrelaçador de destinos que estivessem hospedadas no mesmo hotel, com dois andares de diferença. Combinaram de tomar um banho e depois se encontrariam na área reservada a elas.

Encontraram-se no elevador. Soraya deixou os cabelos molhados, usava uma blusa branca de cetim, sem mangas, e uma saia azul do mesmo tom do vestido que Simone usou no debate. Tebet, com uma camisa branca de botões e uma calça cinza de alfaiataria, permitia-se reparar em cada detalhe de sua ex-aluna, que percebeu o passeio daqueles olhos tão expressivos sobre si e corou.

- Você está linda – Simone disse num tom intimista.

- Oh...

- Você é linda, Soraya. Sempre foi – o elevador chegou e Tebet fez sinal, indicando que a outra saísse primeiro.

- Esse é o meu pedido de desculpas? – brincou, já nem estava tão chateada assim. Simone riu.

- Não, é apenas uma constatação – piscou enquanto se dirigiam a uma das mesas vazias do local.

Soraya sentiu o pulso acelerar. Simone estava flertando com ela? O que significava aquela atitude? O que sua ex-professora pretendia? Sim, reaproximaram-se no Senado. Durante a CPI da Covid, passaram horas estudando relatórios, trocando informações. Jamais esqueceria a forma como Simone a havia defendido de ataques machistas, erguendo-se à sua frente contra seus detratores. Mas ao longo da campanha presidencial... uma nova conexão se formou entre ambas.

Ou talvez... talvez apenas tivessem retomado aquela intimidade, aquela proximidade que construíram enquanto foram professora e aluna.

- Yaya? – Simone tentou pela terceira vez, sua ex-aluna estava tão distante...

- Uhm? Desculpa, eu...

- Estava tão longe daqui.

- É a segunda vez, nesta noite, que você me chama de Yaya – a senadora e presidenciável sorri de canto – Faz tanto tempo... depois de você, ninguém... ninguém nunca mais me chamou assim, Simone.

- Mesmo?

- Uhum – viu-se de repente tímida – Mas eu gosto... – fechou os olhos um instante – Gosto quando me chama assim – encarou a morena do outro lado da mesa.

- Eu gosto de saber que pro resto do mundo você é a Soraya Thronicke, a senadora Soraya, a candidata à Presidência, a doutora Soraya, mas pra mim... você é a Yaya – levou o copo de whisky aos lábios e bebeu sem tirar os olhos da loira. Gostou de encontrar o rubor nas bochechas dela e aquele meio sorriso cativante ainda que ela tivesse desviado os olhos.

Soraya mordeu o lábio inferior e decidiu imitar o gesto de sua ex-professora, também sustentando o olhar. Duas poderiam jogar aquele jogo, qualquer que ele fosse. Ainda não sabia bem onde Tebet queria chegar, talvez tivesse até receio de descobrir e ter que revisitar sentimentos há tanto adormecidos ou ignorados.

- Simone...

- Yaya, eu quero pedir desculpas, novamente. Eu preciso, estou me sentindo mal por tê-la chamado...

- Não repete, por favor...

Tebet estende as mãos sobre a mesa e Thronicke entrega as suas sem nem pensar duas vezes.

- Foi um lapso terrível, num momento inoportuno e por isso eu peço desculpas. Sei o quanto você mudou, trabalhamos juntas na CPI, você foi tão aguerrida, tão dedicada, eu sinto muito orgulho da mulher que você é e te admiro tanto... jamais te desrespeitaria dessa forma e eu sinto muito, muito mesmo, pelo que disse.

Havia tanta sinceridade naqueles olhos castanhos. Soraya engoliu seco, depois dos quase 45 dias de campanha que pareciam muito mais, depois de tantos ataques ouvidos, de tantos questionamentos, de tanto enfrentamento, ter suas mãos seguras de forma tão delicada e de ouvir Simone Tebet se referir a ela daquela forma, com tanto carinho, mexia com algo dentro de si.

- Está tudo bem, professora! – não conteve uma lágrima que rolou devagar por seu rosto e sorriu, pois, sentia-se bem ali, longe do mundo e de tudo, apenas com Simone – Eu já havia desculpado você desde o debate, sei que não falou com a intenção de me ferir ou de me cutucar – riram juntas – Mesmo assim, obrigada pelas palavras. Você sabe que me inspira. E obrigada por esse momento de paz em meio a tanta turbulência que estamos vivendo.

- Você quer outra dose? – Simone sinalizou para os copos vazios de ambas sem deixar as mãos de Soraya.

- Acho que não é prudente – meneou a cabeça a loira.

- Quer continuar conversando em outro lugar? – sugeriu Simone baixinho, após um silêncio confortável entre elas.

- Simone, é melhor eu ir dormir, amanhã... quer dizer, hoje, daqui a pouco... – suspirou olhando o relógio.

- Eu sei, compreendo – Simone aproveitou a privacidade do espaço e levou as mãos de Soraya aos lábios, beijando as duas. A outra estremeceu com o contato inesperado – Vamos?

Quando Soraya passou ao seu lado, a caminho do elevador, num ímpeto de coragem, Simone passou o braço por trás, segurando-a pela cintura. A candidata que dizia virar onça a encarou, mas seguiu andando junto à outra, sem dizer uma palavra. Ao entrarem no elevador, Thronicke aproveitou-se da proximidade e deitou a cabeça no ombro de Tebet, que era mais alta que ela, e fechou os olhos. Um gesto de confiança que enterneceu o coração da morena. E a verdade é que a loira se sentia segura ali.

A primeira parada foi no andar onde Soraya estava hospedada. As portas se abriram e, preguiçosamente, ela se afastou de Simone.

- Boa noite, Yaya – a candidata do MDB segurou o rosto da ex-aluna com carinho e lhe beijou a testa.

- Boa noite, professora – a candidata do União Brasil sorriu – Bom descanso – deixou um beijo bem próximo aos lábios de Simone e saiu em direção ao seu quarto sem olhar para trás.

Tebet riu sozinha quando as portas se fecharam. Sempre afrontosa sua Yaya.

Nada Será Como Antes - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora