Fora do eixo

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O riso de Soraya Thronicke preenchia o apartamento de Simone Tebet onde estavam. Sentadas no tapete da sala, recostadas no sofá, as pernas meio entrelaçadas, garrafa de vinho vazia em cima da mesinha de centro, satisfeitas com o jantar e tão à vontade uma com a outra que era como se sempre tivessem feito aquilo: passado as noites de sexta-feira juntas, dividindo uma massa fresca bem feita e uma sobremesa, conversando sobre tudo, mas evitando tocar naquela bolha de sentimentos que crescia cada vez mais ao redor das duas.

Fazia tempo que a loira não se sentia leve, capaz de respirar a plenos pulmões e de se permitir ser feliz, como naquele momento. Simone a havia provocado sobre a ilha deserta, terminadas as eleições, perguntou para onde a ex-aluna a levaria. Soraya mordeu o lábio e não respondeu, disse que faria surpresa. Não queria acreditar que chegariam a tanto, não poderia se dar essa esperança, era perigoso demais.

- Quais são os planos para encerrar a campanha amanhã? – perguntou à ex-professora enquanto terminava seu vinho. Era a última taça, ela se prometia.

- Tenho mais uma caminhada para fazer, aqui mesmo, por São Paulo. Depois vou ao Mato Grosso do Sul, encerro a campanha lá em Três Lagoas. Prometi jantar com mamãe e as meninas – sorriu – E seus planos, oncinha, quais são?

- Oncinha? – Soraya riu mais uma vez e Tebet prometeu a si mesma que faria o que estivesse ao seu alcance para provocar aquela gargalhada tão gostosa de ouvir – Simone, Simone...

- É você quem vive dizendo aos quatro ventos nessa campanha que vira onça, Yaya...

- Ah, mas confessa que você gosta, vai... – desafiou a mais nova.

- Soraya... – seu tom é um aviso.

- Vai negar, professora?

- Você está preparada para lidar com a resposta? – provocou Tebet.

- Simone? – o tom da outra candidata a pegou desprevenida. Soraya acreditava que a senadora do MDB jamais teria coragem de se aproximar daquele limiar perigoso em que se viam, prestes a dar um passo que mudaria tudo.

A morena fechou os olhos por um instante, respirou fundo e então encarou a outra mulher.

- Você sempre mexeu comigo, desde os tempos de sala de aula. O jeito que você se expressava nos fóruns que a faculdade organizava, a forma como se portava nos debates... Por Deus, Soraya, você me afrontava! Eu precisava respirar e alinhar os pensamentos que você tirava do lugar – diz sem desviar o olhar.

- Eu nunca soube que causava esse efeito em você – Soraya respondeu com um sorriso meio desafiador, meio orgulhoso. Sim, sentia orgulho de saber que desestabilizava aquela mulher que tanto admirava.

- Agora sabe.

- Ainda tiro seus pensamentos do lugar, Sisa? – Simone gostou de ouvir o apelido que sua mãe havia inventado para ela quando criança na voz de Soraya, ganhava um outro sentido, uma nova camada de significado.

- Cada vez que você encara um dos nossos adversários e cresce pra cima deles. Cada vez que você exibe a sua inteligência nos movimentos que tem feito. Cada vez que você me surpreende com esse ímpeto que é só seu, essa sua pose com o queixo levantado, que te faz parecer dona do mundo. Você me tira do eixo, Soraya, de um jeito que nem consigo explicar... – Simone se entregou nas palavras e nos olhos que passearam, sem medo, pelo corpo tão próximo ao seu.

Soraya não sabia muito bem como reagir àquele transbordar de sinceridade de Simone. De fato, não estava preparada para ouvir, com tantas letras, que tirava Simone Tebet do eixo. Não conseguia sustentar o olhar, não conseguia levantar os olhos, mas sentia uma vontade imensa de explodir em risos e gargalhadas. Não tinha discernimento para entender tudo o que se passava em seu peito, as tantas imagens que surgiam em sua mente, lembranças, desejos, tanto entrelaçado, há tanto tempo.

Tão perto da outra, Simone prendia a respiração. Não sabia se havia falhado ao ler os sinais de Soraya, não sabia se havia cruzado o limiar perigoso do qual estavam perto cedo demais. O silêncio da loira lhe doía. Precisava de uma resposta, qualquer uma. Se ela pensasse que tudo aquilo era um delírio, que tudo aquilo era loucura demais, respeitaria sua decisão.

- Soraya. Diz alguma coisa, por favor... O que quer que você esteja pensando, me deixe saber, eu...

A loira mandou a razão às favas. Nunca fora santa, não começaria seu caminho rumo à canonização justo agora. Levantou os olhos e encontrou a apreensão de ter se excedido no rosto de Simone, não poderia deixá-la pensar que não era correspondida. Com a agilidade adquirida em suas aulas de pilates, num movimento fluido, apesar do vinho, estava sentada no colo de Simone, um joelho de cada lado das coxas firmes da outra.

A reação da senadora do MDB foi levar as mãos às costas da candidata do União Brasil, firmando-a contra seu corpo.

- Soraya! – Simone olhava incrédula para a loira tão perto, tão cheia de si. Seu olhar era reverente, pois era muito mais do que poderia pedir ou acreditar.

- Shh... – pôs um dedo sobre os lábios da morena, ela já havia falado tudo o que Soraya precisava saber – Você tem noção do que faz comigo, Simone Tebet? – puxou uma das mãos da morena que estava em suas costas e colocou sobre seu peito, fazendo com que sentisse seu coração pulsando acelerado.

- Você...

- Desde o seu primeiro "bom dia" naquela sala de aula – revelou Soraya.

- Há tanto tempo assim? – surpreendeu-se Simone, sorrindo para a loira em seu colo.

- Eu quero você, Sisa. Quero tanto você que tenho medo de não conseguir parar... – confessou Soraya, abaixando seu rosto, fechando seus olhos e encostando a testa na de Simone.

- Então não para, Yaya... – Simone subiu vagarosamente a mão que estava no peito da outra até a nuca. Encantou-se com cada arrepio, cada reação que pôde ver, o leve tremor em seu colo. Reverenciava Soraya com o olhar. Tão linda...

- Simone... – roçou o nariz no rosto da outra, respirando pesado pela antecipação do que viria a seguir – Me beija, eu...


Tebet não precisou ouvir o pedido duas vezes. Virou o rosto de Soraya e beijou aquela mulher que a mantinha quatro centímetros longe do chão quando por perto. A mulher que desejava com cada célula de seu corpo. A mulher que lhe povoava os sonhos. Beijou Soraya lhe adorando em cada gesto com os lábios e envolvendo a cintura dela, tentando puxá-la para ainda mais perto, como se dois corpos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Não conteve o próprio gemido quando Soraya tremeu em seus braços, enquanto lhe explorava a boca com sua língua. Era tanto sentir que desconfiava não caber em si. Sorriu quando os dentes da mulher prenderam seu lábio inferior e puxaram na direção dela. Quando suas bocas se encontraram novamente, sabiam que poderiam passar uma noite inteira ali, apenas beijando-se. Mas tinham uma agenda eleitoral a cumprir.

Olharam-se por um longo tempo quando findaram o beijo. Seus olhos namoravam, sem pudores, enquanto sorriam uma para a outra, dividindo uma sensação de completude inédita. Soraya deixou seu corpo escorregar, manhosa, até que se aconchegou contra Simone, deitando a cabeça no ombro dela, inspirando o perfume que usava.

A morena ajeitou as madeixas loiras atrás da orelha para poder contemplar cada pequeno detalhe da mulher em seus braços. Gostava tanto de tê-la assim, dentro de seu espaço pessoal, podendo lhe acariciar as costas, lhe beijar a têmpora, a ponta do nariz, apenas para vê-la sorrir uma e outra vez.

- Dorme aqui comigo – convidou enquanto lhe beijava os cabelos loiros.

- Sisa...

- Só dormir, Yaya. Eu prometo. Já está tarde, não quero que volte sozinha de Uber para o hotel – aproveitava o privilégio de poder deixar seus dedos se perderem nos fios dourados.

- E a sua caminhada amanhã? Não quero atrapalhar.

- Qual a sua agenda do dia?

- Tenho reuniões aqui em São Paulo, a partir das 9h, se me lembro bem, à tarde volto pra Dourados, encerro a campanha lá – riu, pois aqueles compromissos de campanha pareciam irrelevantes no momento.

- Dorme aqui, não precisa ser comigo, se você não quiser. O apartamento tem quarto de hóspedes, eu te acordo e te levo pro seu hotel antes da minha agenda. O que me diz?

Como resposta, Soraya aninhou-se ainda mais contra o peito de Simone.

- Só durmo aqui se for com você – sussurrou de olhos fechados.

- Oh meu Deus, como é manhosa essa oncinha – brincou Simone, fingindo que mordia a bochecha dela, fazendo a loira rir novamente – Vem, vamos pra cama.

- Uhm, mas eu estou tão confortável... – virou o rosto e deu um beijo no pescoço da morena, fazendo-a respirar fundo.

- A sua coluna vai preferir a cama muito em breve, Yaya, vem... – Simone ameaçou fazer cócegas nela e logo Soraya estava de pé.

- Eu não tenho roupa nenhuma aqui, Sisa – espreguiçou-se fazendo com que a blusa que usava levantasse, deixando exposta sua barriga, detalhe que não passou despercebido por Simone. Imaginou como seria beijar cada pedacinho daquela mulher.

- Sempre deixo algumas peças no armário, certamente tenho uma camisola que caiba em você – Simone a abraçou por trás, apertando a loira contra seu corpo, beijando-lhe a nuca, satisfeita em saber que a provocava daquele jeito, fazendo-a arrepiar.

- E tem beijo de boa noite pra mim? – perguntou Soraya enquanto se virou dentro dos braços de Simone, enrolando os seus braços no pescoço dela.

- Quantos você quiser! – Sorriram e beijaram-se na sala mais uma vez.

Na cama, o cansaço da corrida presidencial e o aconchego da presença uma da outra bastaram para que se entregassem ao sono.

Nada Será Como Antes - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora