Amor e coragem

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Desculpem a demora, mas a vida do lado de cá da tela está mais do que corrida. Espero que tenha valido a pena esperar.
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Ainda estava escuro do lado de fora da janela quando Simone Tebet abriu os olhos mais uma vez naquela madrugada pós-eleitoral. E de novo, a senadora sorriu. Apesar de tudo o que significava as eleições gerais de 2022 no Brasil, apesar do peso que ela já tinha tomado em suas mãos e aguardava apenas anunciar no prazo estipulado por si mesma, o encanto de ter Soraya Thronicke serenamente dormindo em seu peito lhe triplicava as forças, uma pequena primavera em sua alma, contrastando com o risco de inverno político para a democracia brasileira.

Fechou os olhos apenas por um instante, inspirando o perfume floral com notas cítricas de Soraya. Seria um longo mês de outubro. Seria um longo embate. Seria um tempo de ainda mais desafios para si mesma. Pensou em seu pai, com quem entrou de mãos dadas no mundo político. Pensou em suas filhas, seus maiores amores e a quem desejava entregar um país melhor. A primeira lágrima caiu quando pensou em sua mãe, nas tantas histórias compartilhadas após o fim do silêncio da ditadura.

Apertou os braços ao redor de Soraya. Não tinha tempo para ter medo. Não tinha tempo para titubear. Era preciso se manifestar, era preciso subir num palanque novamente, não mais seu, com pessoas com as quais tinha muitas divergências, porém em quem reconhecia o único caminho possível a seguir. Seria sim resistência a uma possibilidade de novo mandato do inominável.

Sentiu a mulher menor se ajeitando sobre seu corpo, era impossível não sorrir, mesmo com as lágrimas que se permitia chorar. Aquele pequeno mundo feito apenas das duas tinha se tornado seu abrigo tão fácil, tão certo, tão bom... não queria se perder no meio do que viria a seguir. Era tão bonito o respirar ritmado e lento de Soraya Thronicke dormindo, tão diferente da trovoada que ela era quando acordada. Ali, no pouso feito mansidão que Simone a oferecia, podia se despir da ansiedade, da tempestade, e sentir calmaria.

Por um instante, a senadora do MDB invejou a parlamentar do União Brasil. As inquietações e os desafios dos próximos dias, Simone Tebet sabia, não lhe permitiriam o sono. Por isso, buscou seu celular na cabeceira da cama, baixou a luz da tela e, com a mulher que fazia festa em seu peito serenamente dormindo, começou a redigir o manifesto que leria na terça-feira para o País.


A aurora chegava de mansinho naquela segunda-feira em Brasília. Soraya se espreguiçou feito uma gata, derrubando o edredom da cama. Quando recobrou a consciência, entendeu que estava espalhada sobre o corpo de Simone, como se a vida toda tivesse dormido ali, ocupando aquele espaço. Soube também que a mulher com quem dividia a cama estava acordada e segurava o riso.

- Uhm... bom dia, meu bem! – disse com a voz ainda vagarosa de sono, tão adorável que era quase um crime.

Simone já não tentava tanto assim segurar a risada, os cabelos loiros fazendo cócegas em sua barriga.

- Bom dia, Yaya – Tebet desistiu de manter a concentração em seu celular, no texto que escrevia, quando a loira começou a beijá-la por cima do pijama, subindo por seu corpo até que seus olhares se encontrassem.

- Me diz que você dormiu, por favor! – Soraya deixou seus olhos se perderem na imagem inédita de Simone Tebet a sua frente: cabelos presos num rabo frouxo, fios soltos de sua franja, os óculos de leitura de armação preta precariamente equilibrados no nariz.

- Eu tentei, mas... – Simone mordeu o lábio inferior, respirou fundo.

- Simone Tebet, você precisa descansar! Você precisa respirar, você precisa estar bem e inteira se vai mesmo cair de cabeça nessa campanha do segundo turno, como eu sei que vai – Soraya segurou o rosto da morena entre as mãos – Me promete isso, Sisa. Eu sei que não tenho direito a pedir nada, mas me promete que você vai ficar bem, que você vai se cuidar...

O coração de Simone descompassou por um instante. Se Soraya soubesse que ela poderia pedir o que quisesse e a morena faria o possível para entregar...

- Soraya, você sabe o quanto é corrida e extenuante uma campanha, ainda mais agora, com menos tempo, menos dias, precisando convencer pessoas a não votarem em branco, nulo ou no ser abjeto que hoje está no Palácio da Alvorada. Eu não conseguirei dormir, não conseguirei descansar até ter a certeza de que derrotaremos esse mal e sei que será muito difícil!

As duas se olharam em silêncio. Havia tanta determinação nos olhos de Simone... Soraya mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça, rindo. Sentia que, no segundo turno das eleições, o Brasil finalmente conheceria essa força chamada Simone Nassar Tebet, um privilégio que ela já tinha.

- Dois dias.

- O quê?! – a morena franziu o cenho enquanto seus dedos brincavam de desenhar nos braços da loira.

- Dois dias longe de holofotes, câmeras, negociações, partidos, política, eleições, celulares, tudo. Você e eu. O que me diz? – Soraya a olhava ansiosa, queria assegurar algumas coisas, queria ter certeza de outras, queria conversar, queria uma tarde inteira para beijar aquela mulher e existir apenas na presença dela, sem pressa.

Tebet sorriu.

- Eu disse que conversaríamos sobre tudo, não disse?

- Você não foi muito específica sobre quando, então... – deu de ombros, mas com aquele olhar atrevido que era tão dela.

- Estou ouvindo.

Soraya Thronicke respirou fundo.

- Amanhã você será a pauta do dia. Não existe possibilidade de um dos dois vencer essa eleição sem você, Sisa. As manchetes de política serão todas suas, eu tenho certeza disso – a loira sorriu demonstrando seu orgulho – Eu também sei que o quanto antes você estiver nas ruas, mais e mais gente vai saber quem você é, a mulher incrível, determinada, inteligente, articulada, experiente, admirável e tanto mais que você é!

A cada elogio, Tebet sabia que suas bochechas iam ficando cada vez mais vermelhas. Já tinha recebido muitos elogios na vida, por certo, mas naquele momento, vindo de Soraya, era tudo amplificado. Era como se aquelas palavras pudessem beijá-la, marcá-la, inscreverem-se em sua pele para que as tocasse sempre que algo a fizesse tropeçar.

- Yaya...

- Não! Você não vai tentar dizer o contrário, não vai me dizer que eu estou exagerando, vai apenas aceitar porque é quem você é e você SABE disso – a loira gostou quando a outra apenas sorriu, indicando que continuasse – O que estou propondo é que você faça o que tem que fazer, mas que peça um tempo antes de se jogar nessa campanha. Temos um candidato para ajudar em nosso estado também, não podemos deixar o marionete do capitão se eleger governador.

- E desse tempo, dois dias seriam nossos?

- Só nossos, você e eu, onde você quiser – Soraya se sentou sobre as coxas de Simone, adorava poder ficar mais alta que a morena assim – O que me diz?

- Eu sei que também não posso te pedir nada, mas... esteja comigo, durante o segundo turno, Yaya. Fica perto de mim... – pediu a morena.

- Simone, ao contrário de você, eu não vou, não quero e nem posso me declarar para um dos lados...

- Não é isso que estou pedindo.

- Então?

- Quero poder ligar de onde eu estiver e falar com você, quero encontrar você no meio da loucura das agendas, quero sentir você comigo, eu quero...

- Sim!

- Sim?

- Sim, meu bem! Alguém tem que cuidar de você também e eu fico feliz que você me queira por perto mesmo que eu não suba no mesmo palanque onde você estará.

- Não vai tentar me fazer desistir de novo? – Simone pegou as duas mãos de Soraya e as abrigou dentro das suas, era como se tivessem sido feitas para serem guardadas ali.

- E de que adiantaria? Você já decidiu, já sabe o que vai fazer, o que quer fazer, e é legítimo, Sisa. Eu não me reconheço junto a nenhum dos dois candidatos e nem preciso...

- Ainda acho que você deveria se posicionar, não é hora de fazer cálculos políticos agora, Yaya.- Eu sei, e não estou fazendo, apenas entenda que...

Simone pôs o indicador sobre os lábios da loira. Sabia que jamais conseguiria convencer Soraya a declarar publicamente algum apoio.

- Você não precisa se justificar pra mim, Yaya. Está tudo bem... – sorriu – Dois dias. Só nossos. Isso eu posso te dar, já tenho até alguma ideia do que... – antes que pudesse continuar, Soraya a beijou.

O acordo das duas não precisava da aprovação de cúpula nenhuma, não envolvia partidos políticos, cargos em governo ou declarações públicas. Os dedos entrelaçados valiam mais do que qualquer assinatura em documento timbrado.


Passaram o dia dançando ao redor uma da outra. Conversas com seus partidos, com amigos, com aliados, com assessores. Depois do café preparado por Soraya, Simone terminou de redigir seu manifesto, revisado pela outra senadora, que não escondeu a emoção quando leu as palavras assertivas, cheias de coragem, de amor, da essência de Simone. A morena enviou para sua equipe, que sugeriu ajustes até que chegassem ao texto final. A loira preferiu o Twitter para reafirmar em poucas palavras sua posição e seguiria assim.

Tebet acertou sua ida a São Paulo com a coordenação de campanha de Lula. De maneira surpreendente, Thronicke recebeu ligações sondando uma possível aliança no segundo turno, de ambos os candidatos. Negou qualquer possibilidade.

Juntas, organizaram um esboço de agenda para os próximos dias. Simone recusou a estadia oferecida pela campanha do futuro aliado na capital paulista, preferia seu próprio espaço, precisava de um refúgio, precisava ter para onde voltar depois do cansaço. Teria para quem? Ela ainda tinha receio de se perguntar isso.

No meio da tarde, Simone foi até sua casa, tinha uma mala para fazer, viajaria naquela mesma noite com Soraya para São Paulo, sua equipe de assessores já tinha ido, logo após o almoço. Depois, as duas retornariam sozinhas para o Mato Grosso do Sul.


Enquanto revisava os itens na mala que levaria, Soraya suspirou. Evitou ligar para o marido, mandou apenas mensagem, e não recebeu nenhuma resposta. O distanciamento dos dois desde a CPI da Covid tinha sido inevitável. Ele se mantinha irredutível quanto à postura bolsonarista, ela não conseguia mais se ver no mesmo campo pelo qual havia sido eleita. Desde que a filha saiu do país para fazer mestrado em Harvard, a convivência foi se desgastando ao ponto de dividirem o mesmo teto apenas, e quase nem se dirigirem mais a palavra.

Não teve apoio em sua campanha presidencial, apenas o protocolar, para garantir uma imagem. Estava tão cansada de tudo, ainda mais agora, que se via invadida pelo universo de sentimentos por sua ex-professora e colega de Senado.

A loira se sobressaltou quando seu celular começou a tocar. Viu o nome de quem ligava e sorriu.- Oi, meu amor, que saudade! Como você está? – Soraya sentou-se na cama, cruzando as pernas debaixo de si.

- Oi, mãe! Também estou com saudade. Por aqui, tudo bem, o assunto do dia são as eleições no Brasil, muita gente fazendo perguntas, querendo conhecer mais sobre o nosso sistema eleitoral. Hoje um professor me convidou a explicar para a turma como funcionam as nossas urnas eletrônicas, foi bem interessante. E você, como está? – contou a jovem advogada, que cursava o mestrado em Direitos Humanos.

- Tenho certeza de que você se saiu super bem falando com a sua turma! Eu estou bem, só um pouco cansada... essa campanha eleitoral não foi fácil – suspirou ao telefone.

- A senhora foi bem nos debates, sabe que discordamos muito, em muitos pontos, mas eu gostei de vê-la – disse a jovem.

- Obrigada, meu amor, se você estivesse aqui seria um pouco mais fácil, sinto tanta saudade do seu abraço, de ficar grudada em você, como quando você era minha pequenininha – as duas riram, pois desde a adolescência Isabella já era mais alta que Soraya.

- E agora, no segundo turno, vai mesmo ficar neutra?

- Filha... eu pertenço a um partido, não é uma decisão só minha, mas... realmente, não me vejo ali, não tenho como apoiar ninguém, é isso o que eu sinto.

- Nem se eu pedir, mãe?

- Bella...

- A senhora foi tão grande na CPI da Covid ao lado da Simone e das outras senadoras e senadores que desmascararam ao mundo o completo descaso do que se passou no Brasil, mãe... por mim, por favor! Faz igual a Simone, ela vai apoiar o Lula, eu tenho certeza disso!

- Sim, meu amor, ela vai. Já conversamos sobre isso...

- Faz como ela, mãe! A Simone tá do lado certo, pelo menos ouve o que ela tem a dizer, que bom que vocês continuam próximas e conversando, os melhores momentos dos debates foram vocês duas interagindo.

Soraya sorriu ao ouvir a filha defender o posicionamento de Simone e, mais do que isso, gostar da proximidade das duas.

- Bella, eu sei como você pensa e enxerga o mundo e respeito isso, meu amor, respeito muito. Respeito a posição da senadora Simone também. Mas não é como eu penso, eu sinto que estaria traindo a mim mesma se declarasse apoio a alguém nesse cenário, entende?

- Não concordo... – Isabella respirou fundo – Mas entendo. E respeito também. Mas lá na urna, a senhora pensaria em votar por mim?

O tom de voz de sua menina desmontou Soraya. Na urna, o voto seria secreto, somente ela e sua consciência.

- Eu prometo que vou considerar muito o fator Isabella Thronicke. Estamos bem assim? – foi o melhor que conseguiu responder no momento.

- Nós ainda vamos voltar nesse assunto até o dia 30, dona Yaya! – a jovem riu do outro lado, em outro país, e aqueceu o coração de sua mãe como só ela era capaz – E como vão as coisas em relação a você sabe quem...

- Bella, é o seu pai, não fala assim...

- Mãe, você merece ser feliz, eu já repeti isso muitas e muitas vezes nos últimos anos, mas você não me ouve!

- Não é tão simples assim...

- É sim, mãe! Claro que é! O que te prende? Status? Uma imagem que você projetou pra se eleger? Isso deveria ser menos importante do que o que realmente importa, mãe... você! Já chega de se machucar, não acha?

Ao ouvir a filha, Soraya não conseguiu controlar as emoções, baixou a cabeça e chorou. Como poderia sua "menininha" conhecê-la tanto? Mesmo distante, mesmo sem olhá-la nos olhos, Isabella parecia saber exatamente o que Soraya precisava ouvir.

- Eu te amo, mãe. E estou do seu lado, nunca se esqueça disso!

- Eu também te amo, meu amor... tanto, tanto! Obrigada, sempre carrego você comigo, Bella, sempre!

- Eu sei! Só pensa no que conversamos... pensa na sua felicidade, pensa no seu voto...

- Você não tem jeito, né? – Soraya riu mesmo entre as lágrimas.

- Puxei minha mãe, sabe?!

As duas riram juntas e se despediram prometendo se verem ainda antes do recesso de fim de ano.


Quando levantou a cabeça, Soraya viu Simone parada na porta de seu quarto, com um sorriso terno e os olhos marejados. A loira jogou o celular na cama de qualquer jeito, se levantou e cobriu a distância entre elas com passadas largas.

Tebet se preparou para o impacto, mas ainda assim, quase caíram, pois Thronicke se jogou contra o seu corpo sem medir a força. Era menor sim, mas forte. A morena abrigou a loira em si, como se fosse a casa dela, e queria mesmo ser. Deixou Soraya chorar sem questionar nada, seria para a outra o que ela precisasse. Aos poucos, foi soltando o abraço, apenas o suficiente para fazer carinho nas costas, reafirmando sua presença ali.

- Oi... – Soraya disse um tanto envergonhada, com o rosto vermelho e ganhou um beijinho no nariz que a fez sorrir.

- Está melhor? – Simone limpou as lágrimas que ainda restavam nas bochechas da outra, espalhando beijos pelo rosto dela.

- Agora estou bem! – segurou o rosto da mulher a sua frente com as duas mãos e se permitiu sonhar, experimentou se ver dentro dos olhos castanhos da outra e gostou da sensação de se pertencer ali.

Beijou Simone como se dizendo sim a si mesma. Beijou Simone como se selasse um novo compromisso consigo. E tinha sabor de felicidade aquele beijo, aquela dança das duas, a troca, a entrega.

Soraya riu quando a outra senadora a apertou pela cintura e encheu de beijos seu rosto, tirando os pés dela do chão. Soraya riu porque se reencontrava, riu porque se encontrava em outra pessoa.

- Meu Deus, nós temos um voo pra pegar, Simone, eu molhei sua camisa toda, nem terminei de me vestir ainda, eu...

- O voo é fretado e particular, não perderemos se nos atrasarmos um pouco. A minha camisa pouco importa. Você está bem?

- Estou, eu... quanto você ouviu da conversa?

- Bem pouco, não queria ser indiscreta, mas quando entendi que estava falando com a sua filha, fiquei esperando você terminar.

- Bella te mandou um beijo e me pediu para seguir você e o seu posicionamento no segundo turno, eu posso com isso? – contou se aconchegando novamente ao peito de Simone – Ela está encantada com o mestrado, sonhando em ser professora, por que será que não estou surpresa?!

- Tenho certeza que sua Bella se sairá muito bem, Yaya. A pesquisa dela é muito interessante, quero ler quando a dissertação for publicada. Mande um beijo meu pra ela também. Vamos?

- Vamos trocar a sua camisa, isso sim! Pega uma no meu guarda-roupa, pra não precisar abrir sua mala, eu vou lavar o rosto e me trocar – deu um selinho em Simone, pegou em cima da cama o vestido que havia separado para viajar e foi ao banheiro.

A morena aceitou a oferta e escolheu uma camisa branca de botões, básica, mas com o cheiro de Soraya nela. Esperou a outra senadora se arrumar e sorriu quando a viu no vestido verde longo. Se já não estivesse apaixonada, teria se apaixonado ali mesmo.

- Linda... – sussurrou e viu a outra corar com o elogio, ajeitando uma mecha do cabelo solto atrás da orelha – Muito linda! – disse mais alto e a abraçou.

- Minha camisa vestiu melhor em você – comentou Soraya enquanto aproveitava o carinho da outra senadora.

- Pronta? – se olharam e sorriram.

- Ainda não – a loira puxou a morena pela nuca e a beijou, como se quisesse expulsar suas últimas ressalvas, experimentando uma recém-nascida esperança de um amanhã, um depois.


A terça-feira chegou rompendo a bolha de intimidade que as duas tinham tão cuidadosamente criado ao redor delas desde a noite de domingo. Simone estava nervosa, trocou de roupa três vezes até que Soraya escolheu a calça social azul marinho com o blazer de corte reto e zíper invisível, combinando com uma camisa rosa por baixo.

- Você está linda, Sisa! – Soraya, ainda vestida em sua camisola de oncinha, passeou os olhos pela mulher a sua frente, pronta para falar ao país, para mudar a balança do segundo turno das eleições.

- Acho que estou pronta, obrigada pela ajuda – a morena suspirou, não tinha dimensão ainda do passo que estava dando nem do resultado que viria dele, mas ter Soraya ali significava muito.

- Você com certeza está, eu tenho minhas dúvidas se o Brasil está pronto para descobrir a imensidão de Simone Tebet! – Soraya ajeitou o cabelo da senadora pela última vez e depois a puxou para perto.

- Nossa, mas alguém acordou muito inspirada hoje, uhm? – Simone sorriu e segurou as mãos da loira, entrelaçando os dedos, não conseguia estar perto sem tocá-la, era tão íntimo e bonito e singular. Fechou os olhos e se permitiu desfrutar da presença de Soraya, tão improvável e inesperada e reconfortante.

- Nada difícil quando eu acordo dentro do seu abraço – Soraya disse baixinho, ficou na ponta dos pés, superando os 13 centímetros de diferença na altura entre as duas, e selou os lábios aos de Simone demoradamente – Vai, seus assessores já estão esperando e se você ficar mais tempo aqui, eu não vou te deixar sair!

As duas riram e se olharam mais uma vez. A cumplicidade era tanta que quase as abraçava. A admiração mútua, o desejo da presença, o entendimento de cada escolha.

- Não sei que horas eu volto, Yaya, mas prometo que mando mensagem quando tudo terminar. Você vai ficar bem sozinha aqui?

- Não se preocupe, meu bem. Estarei assistindo e sei que horas de reunião virão depois que você falar, fora entrevistas, atender imprensa, aliados, negociações... eu ficarei bem, tenho muito trabalho acumulado do Senado para pôr em dia e alguns compromissos do partido também pra dar conta – entregou o celular de Simone, que estava tocando em cima da cama, era um membro de sua equipe.

- Se precisar de algo, me ligue ou mande mensagem, está bem?

- Não se preocupe comigo, sei me virar muito bem, vai lá ocupar o lugar que é seu nesse cenário eleitoral.

Ao ouvir Thronicke, Tebet sorriu grande. Adorava a confiança dela, a assertividade, até a falta de filtro, muitas vezes, no que falava.

- Obrigada por estar aqui, Yaya.

- Não tem nenhum outro lugar onde eu queria estar senão com você, Sisa.

- Mesmo?

- Mesmo!

O celular de Simone tocou mais uma vez e ela entendeu que precisava ir, deixando Soraya em seu apartamento.


Simone Tebet leu seu manifesto de amor e coragem pelo Brasil. Destacou todos os pontos de apoio à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, não deixou, porém, de demarcar as diferenças entre eles. Deu destaque à defesa da democracia, à luta intransigente para que um desgoverno não seguisse à frente do país.

Sabia que sua voz já reverberava em muitos lugares. Assumiu publicamente sua presença na campanha. Estaria nas ruas, em reuniões, onde precisassem que ela estivesse. Pedindo voto, virando voto, convencendo a comparecer às urnas. Sabia que cada voto importava, cada voto contaria, pois o outro lado tinha a maior máquina de mentiras e nenhum escrúpulo em usar a rede de aliados no maior esquema de compra de votos da história das eleições.

Depois de falar, ouviu o breve, mas bonito discurso de Lula e se emocionou ao ouvir aquele que era um dos maiores líderes políticos do país, ela concordando ou não, enaltecer sua candidatura.

Os dois, mas especialmente Simone, responderam perguntas da imprensa, conversaram com jornalistas demonstrando profundo respeito e preocupação pelo momento que vivia o país e já esperando um segundo turno difícil, mas possível de vencer, no que dependesse de seus esforços.

Terminada a sabatina, entrevistas encerradas, fotos feitas, seguiram para uma reunião de campanha com a coordenação de ambas as equipes. Almoçaram no hotel mesmo, num local reservado, e seguiram alinhando estratégias e agendas.

Simone não esperava se sentir tão bem-vinda e recebida com tanto carinho, sobretudo por Rosângela Lula, a esposa do candidato, mais conhecida como Janja, e por Gleisi Hoffmann, presidente do Partido dos Trabalhadores, com quem Tebet já havia tido muitos embates no Senado, sobretudo à época do afastamento da presidenta Dilma Rousseff.

A senadora sul-matogrossense comunicou à campanha de Lula que entraria de vez nas agendas de campo a partir do dia 13 de outubro, uma data que seria simbólica. Antes disso, precisava retornar ao seu estado, apoiar a campanha do tucano Eduardo Riedel contra um aliado do atual presidente. Não contou que precisava também realinhar a rota de sua vida pessoal em meio ao frenesi do processo eleitoral.

No primeiro intervalo que teve e conseguiu respirar, mandou mensagens para Soraya. Riu discretamente ao descobrir o ciúme da outra senadora pela proximidade com Janja. Simone se sentiu voltando no tempo, na época em que namorava, já havia se esquecido como era a sensação das borboletas voando no estômago. Fez graça do ciúme de Soraya, provocou a mulher até fazê-la rir.

Após as muitas horas de reunião para definir onde e como apoiaria Lula no segundo turno, seguiu com sua equipe para o escritório que mantinha na capital. Teriam muito trabalho pela frente até 30 de outubro.


Thronicke assistiu ao pronunciamento de Simone, enviou o link para a filha, nos Estados Unidos, e sentiu o ciúme lhe invadir quando a senadora teve a ousadia de piscar para a esposa do candidato do PT. Leu os comentários de Isabella sobre o manifesto de Simone, mas respondeu de modo evasivo, mergulhou no trabalho até que a própria senadora entrou em contato.

Por um instante, ao trocar palavras com Simone Tebet, sentiu-se boba pela reação que teve, ao mesmo tempo, riu. Era tão bom sentir novamente. Tudo, desde a pele arrepiar com o carinho dos dedos da outra, ao corpo estremecer quando se beijavam, passando por uma alegria bonita ao acordar na mesma cama, até mesmo o ciúme pela espontaneidade da outra senadora ao "cumprimentar" Janja.

Era gostoso sentir o pulso acelerar ao ver uma notificação da morena entre suas mensagens. Simone era seu respiro, seu sorriso involuntário no meu da tarde, a serenidade que a abraçava cada vez mais forte quando suas dúvidas, medos e incertezas destrancavam a porta de sua consciência. Era, sobretudo, o desejo que lhe tomava os sentidos quando estavam perto.


Quando Simone Tebet retornou a seu apartamento, já era noite. Quis chegar mais cedo, mas tinha ficado presa no engarrafamento de São Paulo. Já tinha combinado com Soraya que viajariam apenas no dia seguinte, pela manhã, ao Mato Grosso do Sul. Ao abrir a porta, a primeira coisa que sentiu foi o cheiro delicioso de comida sendo preparada em sua cozinha. Sorriu. Depois notou a música que tocava num volume agradável e ouviu a voz da senadora acompanhando baixinho. Sorriu de novo.

Pôs a bolsa, o blazer e o peso do dia no sofá, tirou os sapatos e preocupações, deixando-os ao lado da porta antes de seguir até a cozinha, tentando preparar-se para a cena que veria, mesmo sabendo que de nada adiantaria e que, pela segunda vez, naquele mesmo dia, ela se apaixonaria novamente por Soraya Thronicke.

E assim foi quando seus olhos encontraram a outra mexendo uma panela, cabelos presos num rabo, vestindo um short jeans, uma regata branca, descalça, cantando e dançando junto com a música que tocava de seu celular. Sorriu, mais uma vez, a emoção quase transbordando de seus olhos. Apreciou a beleza desconcertante de Soraya até o susto inevitável da outra, quando desligou o fogo, se virou para buscar algo na geladeira e viu Simone ali, completamente encantada, inteira sorriso e sentimento.

- Puta merda, Simone, como você chega assim, sem fazer nenhum barulho? Que susto...

Tebet não ouvia nada daquilo, sua mente estava presa na súbita revelação que teve enquanto a observava: amava Soraya. Amava tudo em Soraya, os defeitos que conhecia tão bem, os múltiplos encantos, o jeito de sorrir, as bochechas rosadas, a gargalhada gostosa, os trejeitos, as travessuras, os arroubos, as muitas personalidades que ela tinha.

Naquele momento quase suspenso do tempo-espaço, não havia uma eleição por ganhar, uma realidade hostil por enfrentar, desafios diários para viver o que desejava tanto. Ali, Simone Tebet caminhou até Soraya Thronicke carregando consigo seus discos, livros e filmes preferidos. Seus vícios de linguagem. Uma estrada torta, um pôr do sol para cada dia de tristeza, os sorrisos de suas meninas, um outono vivo, uma lembrança de alguém que partiu. Um orgulho que adormeceu, noites em claro, uma fé atrasada, uma cicatriz profunda. Esperança e medo e um coração pedindo pousada.

A loira ainda falava alguma coisa em um tom indignado quando a morena lhe segurou pela cintura com o braço direito e tomou-lhe o rosto livre de maquiagem com a mão esquerda. Sorria. Um sorriso inédito e reverente. Soraya a olhava um tanto desconfiada. Havia um algo tão bonito nos olhos de Simone, não saberia nominar. Esqueceu-se do susto, esqueceu-se do ciúme, esqueceu-se dos problemas, esqueceu-se de tudo que não fosse aquela mulher ali, tão perto, tão linda, tão arrebatadora.

- Eu te amo, Yaya.


Nada Será Como Antes - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora