"Todo sentimento
Precisa de um passado pra existir
O amor não
Ele cria como por um encanto
Um passado que nos cerca
Ele nos dá a consciência de havermos vivido anos a fio
Com alguém que há pouco era quase um estranho
Ele supre a falta de lembranças por uma espécie de mágica"Ana Carolina
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O sol ainda estava em dúvida se rompia as nuvens da alvorada enquanto Simone Tebet preparava sua xícara de chá na cozinha da casa de sua mãe. Ela sabia que era cedo, que poderia ter dormido pelo menos mais uma hora, mas simplesmente não conseguia. Sentia-se ansiosa.
Havia conversado longamente com dona Fairte na noite anterior, quando chegou de uma agenda com o candidato a governador do Mato Grosso do Sul que estava apoiando. Sentia, cada vez mais crescente, a hostilidade contra si em seu Estado natal. Sabia que haveria um preço alto a pagar por declarar seu apoio político a Lula no segundo turno das eleições. Ainda assim, ela também sabia, era o que deveria fazer, era o certo, era o único caminho possível. O país precisava derrotar o neofascismo nas urnas e ela ajudaria da forma que pudesse.
Desde criança, Simone sempre gostou do céu, o azul lhe fazia bem. Foi para perto da janela ampla da sala e abriu as cortinas. A sexta-feira que se anunciava teria céu limpo mais tarde, ela podia sentir. A senadora sorriu para si mesma ao lembrar-se dos versos de Manoel de Barros, um de seus poetas favoritos: "O azul é muito importante na vida dos passarinhos / Porque os passarinhos precisam antes de belos ser eternos. / Eternos que nem uma fuga de Bach."
Correu a mão direita pelos cabelos ainda despenteados e respirou o aroma da xícara que segurava com a esquerda, o cheirinho aconchegante da canela misturada às ervas lhe abraçando o íntimo. Precisava daquele alento.
- O que está tirando tanto a sua paz que nem dormir você tem conseguido, minha filha? – dona Fairte se sentou no sofá com a própria xícara de chá, sabia que Simone havia percebido sua presença.
- Não será nada fácil daqui pra frente, mãe – suspirou a morena.
- Nada que você já não soubesse, Sisa. Desde sempre, o seu fardo foi muito mais pesado na política. Toda essa angústia aí dentro dos seus olhos, me diz, o que se passa? Tem nome, não tem? – Fairte soprou o chá, esperando os sentimentos assentarem em sua filha, enquanto decidia se revelava ou não o que estava em seu coração.
- Não é irônico que aos 52 anos eu esteja me sentindo uma jovem apaixonada pela primeira vez? – Simone soltou, sem deixar de olhar a janela.
- Talvez... quantas vezes antes você realmente esteve apaixonada? – a matriarca da família Tebet rebateu.
Simone fechou os olhos e riu baixo. Não esperava menos de sua mãe. Sim, ela esteve apaixonada antes. Longe de casa, ainda na faculdade de Direito, quando saiu do Mato Grosso do Sul para estudar no Rio de Janeiro, na mesma UFRJ onde seu pai havia se formado, no mesmo curso. E foi lá que, no penúltimo ano, descobriu, além do conhecimento acadêmico, uma parte de si que precisou esconder e sufocar ao longo de toda a vida. Até agora.
- Desde ontem, ela não fala comigo... – sussurrou como se tentasse esconder de si mesma a angústia.
- E sem dar nenhuma justificativa?
- A última mensagem dela foi ontem de manhã, me desejando bom dia e dizendo que ela estaria envolvida com muitas "questões" – Simone riu de si mesma novamente e sorveu o chá, buscando uma calma que não tinha em si.
Não sabia bem como se portar nessa situação, há muito, muito tempo, não se sentia tão fora do eixo. Desde a faculdade. Depois, desde o encontro com Soraya quando foi professora dela.
- Vou para a cozinha, você está precisando de um bolo de chocolate – anunciou a senhora.
Simone permaneceu próxima à janela. Com tanto acontecendo em sua vida política e pessoal, ainda não havia, de fato, conseguido parar para entender o tanto que se havia permitido, toda a revolução que a presença de Soraya havia provocado, o quanto a outra senadora havia se imiscuído no dentro de si, se esgueirado pelas tantas barreiras que Tebet sempre colocou entre seu interior e a vida que havia escolhido seguir.
Perguntou-se, pela primeira vez, quando foi que passou a abrigar tanto em seus pensamentos, em seus sentimentos por aquela loira marrenta, cativante, brava e extraordinariamente apaixonante. Soraya, com seu ímpeto e sua tempestade, quebrava a fortaleza de aparências em que Simone decidiu viver pela política, por escolhas que não foram suas, ao mesmo tempo em que a reconstruía muito mais ela mesma do que jamais havia se permitido ser.
A senadora queria tanto aquilo que chegava doer. Havia se tolhido demais. Havia negado a si mesma demais. Ali, com a xícara entre as duas mãos, olhava o céu como se fosse um passarinho desejando o azul. Faltavam-lhe talvez o chão, o ar e as palavras ante a plenitude complexa de tanto sentimento. E por mais improvável que parecesse, sabia que precisava apenas do abraço de Soraya, não poderia ser outro. Só assim estaria mais completa, mais dona de si.
O vento não entendia a insustentável leveza de ser Simone Nassar Tebet ou a gravidade insólita de sua existência, muito menos quando queria apenas fechar os olhos e ver a vida pelo ângulo do céu ou pela amplidão do corpo.
E ela estava descobrindo, cada dia um pouco mais, que Soraya Thronicke era quem conseguia captar perfeitamente sua densa infinitude. Ela, que vivia de coisas estáveis, especialmente aquelas que faziam com que devorasse a si mesma antes de tentar ser feliz; que vivia de estranhamentos enquanto desejava imensidões.
O cheiro de bolo quentinho, saindo do forno, despertou Simone de suas tergiversações no íntimo. Sabia que precisaria ainda retomar seu monólogo silencioso, mas, no momento, queria o carinho de sua mãe, o gosto de tantas memórias felizes da infância, o conforto que apenas uma fatia do bolo de chocolate de dona Fairte poderia lhe proporcionar.
Sentaram-se à mesa juntas e, sabendo que sua primogênita não lhe diria mais nada sobre o que estava sentindo, Fairte enveredou a conversa por caminhos seguros, querendo saber das agendas de campanha do segundo turno, até onde a senadora iria em seu propósito de derrotar o atual presidente nas urnas.
Simone percebeu o espaço que sua mãe lhe dava e ficou grata por poder focar no assunto que lhe era mais confortável.
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Nada Será Como Antes - Simone e Soraya
Fanfiction...Tanto amor guardado tanto tempo A gente se prendendo à toa Por conta de outra pessoa Só da pra saber se acontecer... Além da derrota nas urnas, o que mais as Eleições de 2022 no Brasil podem trazer para as senadoras e candidatas Simone Tebet e So...