Perto e distante

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Demorei, eu sei. Mas as coisas não têm sido fáceis aqui do outro lado da tela. O "avesso de suave", eu diria. Mas vamos à história! Talvez o capítulo 8 que eu imaginei primeiro fosse o mais distante possível do que o que acabei escrevendo. E por quê? A história é delas, são as duas que mandam aqui. E elas pediram um capítulo assim. Talvez até surpreendente... boa leitura!
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A lua crescente se esparramava no céu da madrugada paulistana, acompanhando milagrosamente a curvatura do tempo e impedindo a pressa do futuro. Pairavam ali sonhos em tênues promessas de porvir, que beijavam o horizonte. Do lado de dentro da janela, algumas das luzes da cidade dos arranha-céus matizavam as paredes. O silêncio que envolvia Simone e Soraya dizia mais do que quaisquer palavras. Uma na outra. Uma da outra.

A morena fazia carinhos de leve, com as pontas dos dedos, pelas costas nuas da loira que apenas suspirava de quando em vez, quase adormecida. Entrelaçadas naquela intimidade, não sentiam necessidade de outros movimentos que não o bater dos corações e o respirar compassado e satisfeito depois de se amarem.

Quando Soraya sentiu um toque suave em sua nuca, estremeceu por completo de um jeito bom. Manhosa, levantou a cabeça e abriu os olhos, se deparando com um mundo inteiro chamado Simone Tebet. E a senadora mais nova encontrava ali algumas das certezas que nem sabia que procurava.

Tocar Soraya, Simone estava aprendendo, era como tocar o seu bem maior: delicada, forte, complicada e intensa. A loira contemplou o rosto da morena com um encantamento novo assentando em seu peito. Primeiro seus olhos namoraram. Depois as mãos. Então os pensamentos. E naquela troca, naquela conversa sem palavras, elas não tinham pressa, demorou até que suas bocas se encontrassem num beijo longo e de muitas cores.

Tudo era próprio, inusitado e aconchegante na presença plena daquela mulher entre seus braços se dizendo sua e fazendo-a dela. Soraya de Simone. Simone de Soraya. E Thronicke já não tinha medo, nem estranhou a estranheza de tanto desejo, de tanto sentimento. Apenas... sentia!

- Faz de novo – pediu enquanto fez um carinho com o polegar na bochecha da morena.

- O quê?

- O seu sorriso – tocou o nariz da outra com o seu, juntando seus rostos. E Simone sorriu. Com seu corpo inteiro, Simone sorriu.


Após um banho a duas, entre risos e intimidade, as senadoras voltaram à cozinha onde Soraya havia deixado um jantar quase pronto. A visão de Simone Tebet em um conjunto de dormir de cetim azul marinho desconsertava a loira, desconcentrava. Por isso, Soraya não deixou a morena se aproximar. Vestindo uma camisa de Simone que lhe chegava até as coxas, finalizou o risoto e serviu em dois pratos.

As mulheres experimentavam uma cumplicidade bonita à mesa, quase às 3 horas da madrugada, em conversas sussurradas como se tivessem receio de acelerar o relógio caso se fizessem notar demais ali.

- Como faremos ao chegar a Campo Grande? – Simone já havia organizado uma agenda política com o candidato que apoiaria em seu Estado natal. As duas desembarcariam no Mato Grosso do Sul mais tarde, naquela mesma manhã.

- Eu... – Soraya baixou os olhos um momento, sabia que a realidade estava ali, do lado de fora da porta daquele apartamento, e que precisava voltar a ela. Ou mesmo atravessá-la para fazer diferente.

- Yaya, apesar de tudo o que temos vivido aqui, tudo o que vem acontecendo por nossas escolhas nos últimos dias, eu também sei de todas as complicações. Nós temos vidas públicas. Você sabe que eu estou separada há mais de um ano, mas sigo morando na mesma casa. Eu sei o quanto você vem lidando com seu casamento, mas...

- Eu não queria ter que voltar pra casa agora... – Soraya respirou fundo ao admitir aquela verdade que lhe sussurrava no íntimo.

- Nossos dois dias... – Simone mordeu o lábio, entenderia se Soraya tivesse mudado de ideia.Ao ouvir o tom de dúvida na voz da morena, Thronicke levantou os olhos e sorriu. Apesar da bagunça que havia feito ao se permitir tudo com Tebet, da situação conturbada de seu casamento, o alento de viver aqueles dias com Simone a fazia se sentir mais viva, mais ela mesma, uma Soraya da qual ela havia se perdido e se afastado há alguns anos.

- Quais dias você prefere?

- Yaya, não precisamos...

- Mas eu quero, Sisa! Se você também quiser...

- Oncinha, o que eu mais quero é estar com você – sorriu e entrelaçou os dedos das duas, a proximidade das cadeiras onde se sentavam lhe permitia isso – Já falei com a minha mãe e...

- Você o quê?! – Soraya a olhou de repente desperta e assustada.

- Falei com a minha mãe, ela tem uma propriedade em Três Lagoas, num distrito afastado da cidade, que eu amo muito e faz algum tempo que não vou... perguntei se poderia passar dois dias lá com você – a morena contou.

- A sua mãe, Simone, ela... a sua mãe?! – a loira ainda não acreditava no que ouvia e a expressão em seu rosto fez a morena sorrir.

Ao fazer menção de se levantar, a senadora mais velha não deixou e a puxou com cuidado para seu colo.

- Yaya, você acha mesmo que dona Fairte não saberia? Depois do último debate, depois do último fim de semana da campanha? – ajeitou os fios loiros ainda molhados do banho atrás da orelha dela.

- Eu não fazia ideia, meu Deus do céu, Simone... o jantar na casa dela, as suas filhas... elas?

- Não, as meninas só comentaram que me acharam um pouco diferente, mas não conversei com elas, não ainda, de qualquer forma.

Aquele ainda não passou despercebido por Soraya, que seguia olhando incrédula para Simone. Dona Fairte sabia.

- Aliás, mamãe me intimou a levar você lá na casa dela assim que possível – disse deixando um beijo na bochecha rosada da loira em seu colo, que riu do gesto e de ter sido convidada para ir à casa onde tantas tardes havia passado com Simone estudando documentos e discutindo pautas pertinentes à CPI da Covid.

- Eu não vou saber nem me comportar perto da sua mãe, Sisa! – cobriu o rosto com as duas mãos, mas sentindo um calor aprazível no peito.

- A mamãe te adora, Yaya, deixe de bobeira...

- Mas isso foi antes de eu beijar a filha dela! – aquela resposta tirou uma gargalhada gostosa da morena e a loira terminou por rir junto.

- Se bem me lembro, fui eu que te beijei, oncinha – mordeu novamente o lábio, uma mania sua, sentindo a mulher a quem abraçava pela cintura se arrepiar.

- E eu tive que pedir... – segurou o rosto da senadora, se apaixonando novamente por cada detalhe de Tebet.

- O que você acha de irmos almoçar com mamãe na sexta-feira, fazemos hora por lá e depois seguimos para a casinha? Assim, passamos o fim de semana, só você e eu. Sem eleição, sem política, sem celular.

- Você é impossível, sabia... e eu amo cada detalhe de você – sorriu e seus olhos brilhavam. Já estava ansiosa por esse tempo a sós com a mulher por quem estava apaixonada.

Soraya beijou Simone sem pressa. O sentido não tinha palavras, os olhos nada viam, mas a pele entendia, aprendia, descobria. Voltaram para a cama, um descanso merecido de poucas horas, pois tinham um voo a enfrentar ainda.


Durante a 1h45 de trajeto para Campo Grande, Simone pediu para que as duas senadoras não fossem interrompidas. Sentaram juntas e a morena nunca viajou tão tranquila tendo uma loira aninhada junto de seu corpo. Adormeceram pouco depois do avião subir e acordaram com o aviso de que estavam prestes a pousar.

No desembarque, um motorista estava à disposição de Simone e ela fez questão de levar Soraya até a casa. Preferiram o conforto do silêncio enquanto percorriam as ruas de Campo Grande. A loira segurava uma das mãos da morena entre as suas, como se precisasse de alguma confirmação de tudo o que tinham vivido desde a noite do último debate do primeiro turno.

Simone desceu do carro e esperou que o motorista entregasse a mala de Soraya. As duas se olharam por um tempo, de mãos dadas em frente ao portão branco.

- Eu tenho que te deixar ir... – Simone disse baixinho.

- Vou contar todos os minutos até sexta-feira, até você vir me buscar – Soraya respondeu se contendo pra não beijar a outra senadora ali mesmo.

- Você vai ficar bem? – Simone deu um passo à frente e sentiu um leve aperto quando viu a loira fechar os olhos e respirar fundo.

- Não é nada diferente do que eu já não tenha enfrentado antes... mas agora... agora tem uma parte de você tão grande aqui comigo, Sisa, que me sei mais forte, só pela sua presença – Soraya sorriu.

- Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, me liga? Não importa a hora...

- Vou deixar você sentir saudade de mim... – a loira interrompeu, tentando disfarçar os olhos rasos d'água.

- Eu nem fui ainda e já estou com saudade de você...

Soraya abraçou Simone. Demorado. Confortável. Aconchegante. Queria ter mais tempo para memorizar o perfume dela. A textura da roupa. O calor gostoso da pele. Fechou os olhos porque podia se entregar ali, estava segura, tanto que quase se fez morada. Quando se afastaram, Tebet deixou um beijo reverente na testa de Thronicke.

- Vai, se não eu não vou conseguir entrar... – a loira se arriscou na ponta dos pés e deu um beijo rápido na bochecha de sua ex-professora.


Soraya Thronicke nunca se sentiu tão sozinha ao entrar em casa. A residência que há mais de década ela chamava de lar estava vazia e ela agradeceu mentalmente por isso. Pensou em ocupar um quarto de hóspedes, mas acabou indo parar no quarto da filha, onde ajeitou suas coisas. Preferiria estar ali, mesmo que tivesse que voltar ao quarto principal quando quisesse alguma de suas roupas ou objetos pessoais.

Mandou mensagem para sua menina avisando que estava novamente em casa. Pela diferença de fuso horário, ela deveria estar a caminho das atividades do dia no curso de mestrado.

Soraya respirou fundo e foi seguindo seu dia no escritório que mantinha em casa. Mal tocou na comida que pediu de almoço, revisou suas agendas e compromissos do mandato e com o partido, junto de seus assessores. A tarde parecia se esticar entre reuniões, revisões de processos, leitura de documentos, telefonemas e mensagens que não queria ter que responder, mas precisava e assim o fez.

A senadora nem viu a noite chegar, imersa no trabalho. Foi despertada da concentração com que lia uma proposta de projeto de lei com um barulho no andar de cima da casa. Pelo jeito de pisar no chão, sabia bem que era o marido. A loira marcou o documento, ajeitou sua mesa de trabalho e fechou o notebook.

Debatia consigo mesma se havia, enfim, chegado a hora de pôr um ponto final àquele capítulo de sua vida. Teria coragem? Lembrou-se da conversa com a filha, do que ela havia lhe pedido. Antes de escolher Simone, Soraya sabia, era preciso escolher a si mesma.

Permitiu-se um tempo ainda dentro do escritório, tentando organizar ao menos seus pensamentos. Antes de sair pela porta, sentia como se precisasse de uma armadura sobre o peito. Fechou os olhos, respirou fundo, e buscou a parte de dentro de si que já era Simone por tanto sentir. Sorriu. Ainda que não houvesse nenhuma promessa, ainda que não soubesse o que seriam, se seriam, se... Soraya parecia finalmente concordar com sua filha que não queria mais estar presa a algo que não fazia mais nenhum sentido.

Quando entrou no quarto, ouviu o barulho do chuveiro. Decidiu esperar. Sentou-se na cama com seu celular, lendo as mensagens que ainda não tinha aberto. Até parar no nome de Simone Tebet.

"Agora já posso dizer que estou com saudade, Yaya? Como você está?"

Soraya sorriu para o aparelho em suas mãos. Sentia como se algo desse uma cambalhota em seu íntimo cada vez que ouvia ou lia a outra senadora se referindo a ela como "Yaya". Simone não estava online.

"Também já estou com saudade... como pode? Está tudo bem, Sisa, trabalhei até agora. E o seu dia, como foi?"

Antes que Soraya pudesse ler mais alguma coisa, a porta do banheiro se abriu. Carlos César pareceu surpreso com a presença da loira sentada na cama de casal.

- Lembrou que tem casa, senadora? – o homem vestia uma calça jeans e uma camisa, talvez fosse sair.

- É assim que você quer começar essa conversa? – Soraya suspirou, estava cansada.

- Que conversa? Estava na sua agenda?

- César...

- Eu também tenho o direito de estar cansado de tudo isso, das suas mudanças, das suas decisões.

- Sim, você tem. E talvez seja a hora de nós dois sentarmos e decidirmos que não queremos isso mais – Soraya disse, surpreendendo a si mesma com a serenidade em suas palavras.

O homem a olhava um tanto atônito e outro tanto sem saber bem como reagir. Não esperava, de forma alguma, aquelas palavras da esposa. Abandonou a postura arrogante e se sentou também na cama.

- O que mudou? – ele quis saber, curioso com o brilho que finalmente reparou nos olhos da mulher.

Soraya deu de ombros, bagunçando o cabelo com as mãos, o que fez seu marido sorrir.

- Há quanto tempo você sente que já estamos... separados? – a loira devolveu um questionamento. Não se sentia pronta ainda para falar sobre a tempestade Simone Tebet revirando-lhe inteira.

- Não sei bem quando nos desconectamos. Você foi seguir seu caminho, eu sinto que a deixei, mais do que deveria. Você também não fez questão de que eu fosse junto, Soso... – Carlos César estendeu a mão e ela entrelaçou os dedos aos dele. Não era, nem de longe, a sensação de ter sua mão dentro das de Simone.

- Eu sei... não estou me eximindo de culpa, se é que temos que chamar assim. Só não quero mais me machucar, não quero ficar numa relação que não existe mais – ela disse olhando nos olhos do companheiro de uma vida.

- Sem culpados, So. Acho que... aconteceu. Estamos em frequências diferentes da vida, e eu entendo, realmente entendo. Sei que não fui o companheiro que você merecia ao seu lado, especialmente nos últimos dois anos. Também não quero mais que você se machuque por minha causa, você não merece e eu não quero ser o responsável por você estar triste ou se sentir mal nessa casa – César fez um carinho no dorso da mão de Soraya, um gesto singelo, talvez um pequeno pedido de perdão.

- O que fazemos agora? – Soraya não escondeu as lágrimas, deixou que caíssem, um misto de nostalgia pelo que tinham sido com um pouco de alívio por não precisar passar por um desgaste maior.

- Se eu bem conheço a mulher com quem vivi mais de 25 anos da minha vida, você não faz nada pela metade, uhm? – César brincou, abraçando-a de lado e puxando Soraya para perto dele.

- Você me conhece bem... se é pra terminar, então terminamos de vez. Só preciso saber como faremos...

- Acredito que ainda haja um respeito mútuo entre nós que dispense a necessidade de um divórcio litigioso. Não quero brigar, Soso. Não quero que a nossa história termine num acordo determinado por um juiz – a atitude de Carlos César não era nem de perto o que a senadora esperava. Mas estava aliviada de saber que não precisaria de dar entrada em um processo que se arrastaria mais do que o necessário para encerrarem o casamento.

- Você quer conversar com alguém, um dos nossos amigos que também é advogado? – respirou fundo sentindo, cada vez mais real, aquele passo que mudaria tanto sua vida.

- Se você achar que precisamos, tudo bem. Ou podemos ir nós dois ao cartório e assinar os papéis – sugeriu o empresário.

- Se estivermos de acordo em tudo... – ela respirou fundo.

- Resolvemos isso amanhã, pela manhã, tudo bem? Você parece cansada, So, e eu tinha combinado com alguns amigos de ver o jogo hoje.
- Jogo? – ela franziu o cenho, não acompanhava muito o calendário do futebol nacional.
- Rodada do Brasileirão, meu bem – ele sorriu, um sorriso um tanto triste, outro tanto conformado.
- Vai lá ver seu jogo, eu vou tomar um banho e descansar. Ficarei no quarto da Bella – ela ia se levantando da cama, ainda um tanto anestesiada com a conversa e a perspectiva de assinar o próprio divórcio no dia seguinte, quando César a abraçou.
Fazia tanto tempo que ele não demonstrava esse carinho. Ela aceitou, se deixou abraçar, ainda que sem tanta vontade de devolver o gesto. Não era mais sua casa ali, não era mais seu lugar, seu aconchego era outro peito.
- Você vai ficar bem aqui?
- Vou... eu só...

César beijou Soraya no alto da cabeça, um carinho que era comum entre os dois. Ou havia sido. Ela sorriu, mesmo que lhe faltasse, naquele momento, o brilho da alegria. Viu o futuro ex-marido terminar de se arrumar e sair, como se tudo ao seu redor estivesse em câmera lenta.

Lembrou-se do celular abandonado na cama, pegou o aparelho e voltou, andando devagar, como se se despedisse de algo, até o quarto de Isabella. Chorou debaixo do chuveiro tudo o que andava guardando de sentimentos, de ressentimentos. Deixou que a água corrente levasse embora as mágoas que havia acumulado nos últimos anos. Não seria mais o abrigo delas. Soraya sabia que levaria ainda um tempo para se reconstituir, para se ver novamente como uma mulher que se orgulhava de si mesma. Na vida pública, ela fingia bem. Mas ali, sozinha, não precisava usar suas máscaras.

Um pouco refeita, em sua camisola estampada de onça, enviou uma mensagem simples para a filha: "Seu pai e eu vamos assinar o divórcio amanhã". Não teve nem tempo de fechar os olhos e respirar, Isabella ligou imediatamente. E as duas ficaram horas conversando, aproveitando a cumplicidade que sempre tiveram, até que Soraya adormeceu no travesseiro, sentindo-se exausta e leve. Extraordinariamente leve.

Nada Será Como Antes - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora