Capítulo 1 - A festa

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Anne checou todos os materiais que ia precisar pela milésima vez, ajeitou as fitas que prendiam suas duas tranças, e suspirou fundo ao observar seu rosto no espelho. Por que tinha que exibir aquela aparência malditamente comum? Seu cabelo ruivo não ajudava muito em questão de estética, quando pensava no loiro perfeito de Ruby, e no negro reluzente de Diana, assim como suas sardas eram um incômodo constante que nem a passagem dos anos parecia resolver.

Aos dezessete anos, ela quase se acostumou a ser a única ruiva em Avonlea. Quando fora viver com os Cuthberts, ela detestava tudo em sua aparência. O corpo magro demais, a pele pálida e, principalmente, a estranheza que parecia causar em meio às outras garotas tão bonitas e atraentes desde a tenra infância.

Diana costumava consolá-la em meio aos seus ataques de raiva, quando alguém por maldade a insultava a chamando de cenoura. A amiga lhe dizia que com o tempo, as pessoas iriam ver a garota linda que ela era por dentro e por fora, e iam aceitá-la exatamente como era.

De fato, após certo tempo, sua figura incomum deixara de ser novidade, e Anne finalmente sentira que se encaixava naquele ambiente que não fora muito acolhedor no início, mas que se tornara seu lar verdadeiro.

O que não mudara muito era sua relação com a própria aparência, embora Diana jurasse que ela estava mais bonita e que estava ganhando curvas nos lugares certos, Anne não conseguia se ver em meio a um padrão de beleza que não incluía uma garota ruiva como ela. As cores criadas em tons diversos, beneficiavam morenas e loiras, mas ainda não tinham pensado em algo que combinasse com o vermelho imutável de seus cabelos.

A maioria de suas roupas eram azuis, verdes ou pretas, com raras variações de marrom e cinza. O branco também não lhe agradava muito, pois deixava sua pele ainda mais pálida e, por isso, poucas vezes o usava, a não ser quando ia à igreja aos domingos com seus pais adotivos.

Entretanto, com seus dezessete anos recém completados, Anne tentava não se ater à vaidade feminina em excesso. Estava mais preocupada em alimentar seu cérebro ávido por conhecimento com conteúdos inteligentes, do que aprender com que tipo de sapatos seu vestido deveria combinar.

Em um mundo tipicamente machista, uma mulher deveria ter sua própria voz para mostrar que seu valor ia além de saber bordar almofadas coloridas, saber cozinhar um bom prato, e organizar um jantar para vinte pessoas. Por isso, era muito importante estudar e se preparar para que quando a oportunidade surgisse, se estivesse apta para lutar pelos seus direitos.

Era para isso que queria ir para a faculdade e traçar com orgulho seu próprio destino. Tinha encontrado sua motivação e seu objetivo, e nada a impediria de conquistar o seu diploma e construir uma vida rica de perspectivas e sonhos.

Com um sorriso de encorajamento para si mesma, Anne pegou todos os seus livros e a sacola que preparara com uma muda de roupa para dormir, e desceu as escadas em uma pressa desembalada, que fez Marilla dizer:

- Cuidado, menina, ou pode se machucar.

- Não se preocupe, Marilla. Desci essas escadas tantas vezes nos últimos quatro anos, que tenho prática de sobra. - Anne respondeu com um sorriso brilhante, deixando um beijo estalado no rosto de Marilla, que olhou para a ruivinha com certo desagrado.

- Anos te ensinando a ter modos, e parece que ainda não aprendeu.- A boa senhora disse, resmungando.

- Não diz isso, Marilla. Eu aprendi tudo o que me ensinou direitinho. Até consigo dobrar o guardanapo à moda francesa como dita o costume local.- Anne disse fazendo graça, o que arrancou de Marilla um sorriso tímido. Sua mãe de criação fazia o tipo mal-humorada, mas, no fundo, era apenas uma mulher que dedicara toda sua vida a servir aos outros, ao invés de ser servida, e Anne jurou que isso nunca aconteceria com ela.

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