Capítulo 7 - Conversas via papel.

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Enid Sinclair: Point of View.

É impossível negar que existe uma certa pressão para que pessoas que não sejam héteros se assumam. Eu comecei a sentir essa pressão assim que fiz doze anos e percebi que não era apenas uma aliada, que me atrair era um termo mais adequado para a minha relação com meninas. Mesmo assim, o clássico de me assumir e contar por aí não era algo que eu considerava necessário, e por isso, pela minha aparência e comportamentos, assumiram que eu gostava somente de garotos. 

Quando rodávamos a garrafa em algumas festas do pijama entre garotas, era normal que rolasse um desafio de uma dar um selinho, ou até mesmo um beijo. Mas isso não era uma forma de se assumir, não era? Você poderia apenas estar ali, experimentando. Ou talvez, experimentando o que já havia com toda certeza afirmado dentro de si, mas ainda não contado para ninguém.

E afinal, era necessário mesmo contar para alguém?

A sociedade poderia dizer que sim, e com toda a certeza todos concordavam com isso. Mas não era por maldade. Acho que as mesmas garotas que andavam comigo apenas queriam saber, por curiosidade, por fofoca, mesmo que não houvesse muitos preconceitos em Nevermore High School. Bullying não era uma coisa tão frequente aqui, mesmo quando alguém era ou se tornava popular. Ascender de classe social também não era notório, mesmo que as melhores festas fossem dadas por mim ou por quaisquer outras pessoas que tinham dinheiro consigo. Também era impossível não se importar com o dinheiro, já que ele movia várias coisas. Mas ninguém era diminuído por isso e o Ajax era um dos primeiros a abrir a boca para falar besteira, ou melhor, assediar moralmente alguém. Logo ele.

De qualquer forma, não é como se as pessoas deixassem de ter curiosidade quando você se assumisse. Principalmente quando fosse de forma não convencional: eu não conheci uma garota, eu não saí com ela, e eu definitivamente não a beijei na frente de uma festa. Nada do que havíamos combinado tinha acontecido em público. Era seguro afirmar que as pessoas se encontravam mais curiosas do quê havia acontecido entre eu e Wanda do que o fato sobre minha sexualidade, e era melhor assim.

Assim que volto para a minha classe, os olhares curiosos estão em mim. Basicamente todos. Mas finjo uma cara de "não me importo", da mesma forma que fiz ontem ao andar pelos corredores com a fofoca horrível correndo sobre mim, e entro na sala. Imediatamente, recolho as minhas coisas e vou me sentar por perto de Bianca. Ajax ainda estava na sala de aula, na primeira carteira, com rosto de poucos amigos. A professora Valerie estava explicando as reações biológicas na fotossíntese, coisa fácil de adivinhar na primeira olhada para o quadro, e Bianca estava anotando avidamente. Alguns outros alunos se revezavam em estar conversando ou prestando atenção. Cada um tinha o seu jeito. 

"Ei, garota, temos muito o que conversar" É o post-it que eu recebo colado na primeira página do meu caderno assim que o abro. Reconheço facilmente a letra de Bianca, feita em cursiva e com o traço forte abaixo do muito. A garota de cor retinta e olhos claros estava sorrindo e utilizando sua cabeça para apontar para o papel pequeno e colorido, quase me obrigando a respondê-lo.

Eu sorrio, confirmando com a cabeça e então tiro o post-it dali e o amasso. Abro meu caderno imediatamente, arrancando uma folha com menos barulho que posso fazer para começar uma conversa. Valerie ficaria um pouco decepcionada com isso se visse, já que eu era sua aluna exemplar — como ela mesma adorava me chamar. Mas pelo menos eu estava conversando por um pedaço de papel em vez de estar utilizando meu celular. Isso arrasaria com o seu coração, então eu continuava apostando no pedaço de papel. Assim que acho uma caneta, não meço esforços para escrever:

"Me perdoe, Bia. Eu acho que eu preciso realmente te contar muita coisa. Estive resolvendo alguns problemas ontem e hoje, mas podemos uma festa do pijama em minha casa hoje? Preciso te contar umas coisas pessoalmente." Como se eu pudesse me fingir de espiã, eu olho para frente e para os lados, checando que a professora estivesse de costas, desenhando mais uma das plantas em seu quadro branco, e que ninguém estivesse preocupado em checar em meu pequeno bilhete.

A resposta é quase tão rápida quanto minha escrita. Já estávamos acostumadas a fazer isso: "Claro, você sabe que eu daria tudo para dormir no seu colchão. É meu lugar favorito!" Festa do pijama marcada, então. Seria uma longa noite de garotas.

[...]

O suor enchia meus poros enquanto as líderes de torcida me erguiam na pirâmide para que eu ficasse no topo. Mas não era o tipo de suor nojento e que cheirava mal. Era o suor de felicidade que meu corpo expulsava enquanto eu estava treinando. Como os jogos eram geralmente aos finais de semana, para que os pais que financiavam essa escola e até mesmo os olheiros pudessem vir, sobrava um grande tempo durante a semana para o treinamento. De vez em quando acontecia antes ou depois das aulas, sempre em somente algum desses horários. Mas, em vezes em que a coreografia se tornava um desafio, a equipe de quinze pessoas fazia questão de vir aqui horas antes dos jogos.

Por hoje ser um dia da semana, nem todas estavam de uniforme além das flyers, aquelas que voavam de fato. Sendo uma delas, estar em forma era essencial, e não era uma forma física. O alongamento deveria ser perfeito, tanto quanto o emocional de ser jogada para lá e para cá. Mas eu amava essa vida. Algo melhor do que balançar os pompons de um lado para o outro? Talvez minha futura universidade.

Para a minha surpresa, consigo enxergar Wanda Addams sentada em um dos últimos degraus da arquibancada. Eu adorava estar ali, era o que eu costumava chamar de degrau especial, porque de lá dava para ver tudo. Era como se o campo de futebol extenso e colorido por gramas verdes ficassem em 360 graus, ou como se estivéssemos sentados numa sala de cinema, aonde a tela fosse tão grande que pudesse nos engolir. Como eu disse, o local perfeito. 

É impressionante que ela continue lá mesmo depois de uma hora e meia de treino, mas eu nunca teria suspeitado que ela fosse uma atriz ruim. Depois de fato de me despedir com beijos nas bochechas de meus colegas de equipe, balanço os pompons azuis para ela, vendo apenas me cumprimentar de volta com a cabeça. Tento sinalizar que iria apenas no chuveiro, já que estava basicamente molhada de suor e odiava sentar no banco de couro do meu carro assim, mas que já voltava de qualquer forma.

Que Wanda tenha entendido minha língua esquisita de sinais. Rio comigo mesma, deixando que um sorriso sem graça ocupe minha mente. 

O chuveiro das meninas ficava debaixo da arquibancada, da mesma forma que o chuveiro dos meninos ficava do outro lado da arquibancada. Que sexista, como se eles não pudessem simplesmente atravessar as arquibancadas para nos ver. Ou talvez como se eu não pudesse simplesmente preferir uma mulher. Nesse momento, preferia mesmo, mas era constrangedor tomar banho em conjunto, já que a única coisa que nos separava era uma porta de box embaçada. Por que a diretora achava que isso era suficiente? Ainda dava para ver as silhuetas contornadas!

Por sorte, não havia ninguém lá quando cheguei. Quando eu estava sozinha aqui, era uma espécie de ritual. Meu ipad sincronizava com a minha playlist de música dos anos 2000, e como se eu fosse a única pessoa do mundo, eu deixava a água cair pelo meu corpo e pelas minhas curvas, correndo e me limpando com o cheirinho de morango do meu sabonete. 

Quando parecia estar praticamente na sétima música da minha playlist, estendo minha mão para colocar meu sabonete na sua saboneteira cor de rosa e me viro para fechar o chuveiro, que ainda expulsava a água diretamente para meus cabelos e então corpo. Meu corpo paralisa quando, assim que tenho o chuveiro fechado, me volto para frente, numa tentativa de pegar minha toalha.

Minha mente consegue raciocinar o que estava acontecendo, mas minha respiração prende como se fosse um pesadelo que eu poderia expulsar: Yoko Tanaka estava em minha frente, segurando minha toalha em suas mãos, com um olhar muito mais do que irritado.

Mentiras de momento (Wenclair)Onde histórias criam vida. Descubra agora