Capítulo 6

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00h43 Hora da Costa Leste - 05h43 Hora de Greenwich

Jenna dorme: à deriva, sonhando. Em algum lugar escondido da mente, ela
se imagina em outro voo — é uma imagem forte, mesmo que o restante do
corpo esteja mole de tanta exaustão. É o voo que havia perdido. Três horas na
frente, ela se imagina sentada ao lado de um senhor de idade com bigode comprido. Ele espirra e fica se mexendo, enquanto o avião passa pelo Atlântico,
e nunca dirige uma palavra à Jenna, que está cada vez mais ansiosa. Sua mão
está apoiada no vidro da janela que a separa do nada, do nada e mais nada.
Ela abre os olhos rapidamente e vê que o rosto de Gwen está muito perto do
seu. Está atento e quieto, com uma expressão difícil de decifrar. Ela toca seu coração, assustada, e se dá conta de que está com a cabeça encostada no ombro
dela.

— Desculpa — murmura e se afasta.
O avião está quase completamente escuro agora, e parece que todo mundo
está dormindo. Até mesmo as telas se apagaram. Jenna levanta a mão
dormente presa entre elas, e checa o relógio que ainda está, infelizmente, no fuso de Nova York. Passa a mão no cabelo e dá uma olhada na camisa de Gwendoline para ver se babou em cima dela, pois ela está oferecendo um guardanapo para ela.

— Para quê é isso?
Gwen aponta para o guardanapo, e ela vê que desenhou um dos patos do filme.
— São seus materiais preferidos? — pergunta ela. — Caneta e guardanapo?
Gwen sorri.
— Coloquei o boné de beisebol e os sapatênis para deixar o pato mais
americano.
— Que graça, mas geralmente chamamos isso apenas de tênis — responde,
bocejando no final da frase. Coloca o guardanapo em cima da mochila. — Você não dorme em aviões?

Gwen encolhe os ombros.
— Normalmente sim.
— Mas hoje, não?
Gwen balança a cabeça.
— Não consegui.
— Que droga — diz ela, mas Gwen não lamenta.
— Você parecia estar dormindo bem.
— Mas não estava — diz ela. — Se bem que é bom eu ter dormido agora para conseguir ficar acordada durante a cerimônia amanhã.
Gwen olha para o relógio.
— Hoje, né?
— Isso — diz ela e franze o rosto. — Sou a madrinha do casamento.
— Maneiro.

— Não se eu perder a cerimônia.
— Mas sempre tem a festa depois.
— Verdade — diz, bocejando de novo. — Mal posso esperar para ficar sentada sozinha, vendo meu pai dançando com uma mulher que eu nunca vi antes.
— Você nunca a viu? — pergunta Gwen com seu sotaque britânico.
— Não.
— Nossa — comenta. — Então vocês não devem ser muito próximos.
— Eu e meu pai? Já fomos mais.
— Mas o que houve?
— O que houve foi que seu país o engoliu.
Gwen dá uma risada curta e insegura.
— Ele foi dar aula durante um semestre em Oxford — explica Jenna —, e
nunca mais voltou.
— Quando?
— Há quase dois anos.
— E foi quando conheceu essa mulher?
— Isso.
Gwen balança a cabeça.
— Que péssimo.
— Pois é — concorda.
As palavras não conseguem expressar o quanto foi realmente péssimo, o quanto ainda é. Apesar de ter contado a versão longa da história milhões de vezes para milhões de pessoas diferentes, ela sente que Gwen compreende melhor que
os outros. A impressão deve ser fruto da maneira como ela a observa, com
aqueles olhos que cavam um buraco em seu coração. Sabe que não é real; é a ilusão da proximidade, da falsa confiança que paira no avião quieto e escuro, mas ela não liga. Pelo menos, neste momento, parece ser real.
— Você deve ter ficado arrasada — diz Gwen —, e sua mãe também.
— No começo, ficou. Mal saía da cama. Mas acho que ela voltou à realidade
mais rápido que eu.
— Como? — pergunta Gwen. — Como você se recupera de uma coisa como
essa?
— Não sei — responde Jenna honestamente. — Ela acredita que estão
melhor assim. Que era para ser assim mesmo. Ela tem um novo namorado e ele, uma nova namorada, e ambos estão mais felizes agora. Só Jenna que não
estava contente, principalmente com essa história de ter que conhecer a nova
namorada dele.
— Mesmo que ela não seja tão nova na história.
— Especialmente porque não é nova na história. Isso deixa tudo dez vezes
mais intenso e estranho, e é a última coisa que quero. Fico me imaginando
entrando no casamento e todo mundo olhando para mim. A filha americana
melodramática, que se recusou a conhecer a madrasta. — Jenna torce o nariz.
— Madrasta. Meu Deus.
Gwen franze o rosto.
— Eu acho que é muita coragem.
— O quê?
— O que você está fazendo. O fato de encarar tudo isso. Seguir em frente. É
muita coragem.
— Não me sinto corajosa.
— É porque está no meio da situação — explica —, mas você vai ver.
Jenna analisa Gwen com cuidado.
— E você?
— O que tem eu?
— Aposto que você não teme seu casamento nem a metade que temo o meu.
— Eu não diria isso — fala com um tom resoluto.
Gwen estava sentada bem perto dela, seu corpo já se apoiando em Jenna. Mas
agora se afasta, não muito, apenas o suficiente para que ela perceba.
Jenna se inclina para a frente e Gwen se estica para trás, como se estivessem
unidos por uma força invisível. O casamento do pai não era um assunto
agradável, mas ela falou sobre ele assim mesmo, não falou?
— Então, você vai se encontrar com seus pais? Gwen faz que sim com a cabeça.
— Que bom — diz ela. — Vocês têm uma boa relação?
Ela abre a boca e a fecha logo em seguida, quando vê o carrinho de bebidas se aproximando. As garrafas fazem barulho ao se chocarem. comissária pisa no freio assim que passa por elas e se vira novamente para começar a atender aos pedidos.
A cena é tão rápida que Jenna quase não acompanha: Gwen pega uma moeda no bolso da calça jeans e a joga no corredor com um movimento rápido
do pulso. Gwen se abaixa na frente da senhora, que ainda dorme, pega a moeda com a mão esquerda e duas garrafinhas de JackDaniel’s com a direita. Coloca as
garrafas no bolso junto com a moeda, segundos antes de a comissária perguntar o que vão beber.
— Querem alguma coisa? — pergunta, olhando para o rosto surpreso de Jenna, as bochechas rosadas de Gwen e a senhora roncando com vigor no assento da ponta.
— Não, obrigada — responde Jenna.
— Também não quero nada — diz Gwen. — Saúde, mesmo assim.
Quando a comissária se distancia, levando o carrinho, Jenna olha para Gwen, boquiaberta. Gwen pega as garrafas e dá uma para ela, depois, abre a sua e encolhe os ombros.

A Probabilidade Estatística do Amor À Primeira VistaOnde histórias criam vida. Descubra agora