Número Dois

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Uma semana depois da nossa ida a sorveteria, eu me encontrava no quarto de Nicolas. Meu cartaz brilhava na mesa de estudos dele e eu dava minha última colherada no sorvete. O cômodo estava milimetricamente arrumado, o que me dava uma sensação incômoda, como se não morasse ninguém ali. As paredes estavam vazias, meu amigo havia removido as fotos no primeiro mês de tratamento. Eu nunca havia questionado nada, mas hoje me pergunto se olhar a coleção de bons momentos fotografado ao longo dos anos o deixava pior.

Meu amigo estava ligeiramente viciado em açaí, o que no fundo me preocupava, pois ele tinha que seguir uma pequena dieta. Porém nem eu nem Marta tínhamos coragem o suficiente para intervir naquela pequena felicidade de Nicolas. Então, em meio a um acordo silencioso, nós deixávamos o rapaz fazer o que desse vontade. O observei dar uma última lambida na colher e comentei curiosa:

- Não imaginei que você iria gostar tanto disso.

- É muito bom - Nicolas soltou um pequeno gemido de prazer - Agora não consigo entender como que demorei tanto pra provar essa maravilha e como você não gosta.

- Não vou discutir isso com você - coloquei a tigela de lado - Bem, está pronto para o próximo item da lista?

- Sim - ele confirmou.

Mesmo sentindo sua hesitação, fui pegar o envelope. Alguma parte de mim temia que meu amigo desistisse caso eu demorasse muito. Claro, era besteira minha, Nicolas havia gostado do primeiro item, então provavelmente gostaria desse também. Mesmo assim não consegui evitar de enxugar o suor das minhas mãos na calça. Nicolas o abriu e leu em voz alta:

- Número dois: ouvir um conselho de uma criança.

Fez-se um breve silêncio, até que ele explodiu em uma risada. Franzi a testa sem entender, por que estava rindo? Era um dos meus itens favoritos da lista! Meu amigo me encarou ainda entre risos e perguntou:

- Isso é sério?

- Claro - exclamei - Acha que estou brincando? Cada item da lista é sério!

- Então vamos pedir conselhos a crianças? -  debochou.

- Sim - ergui o queixo - está achando ruim?

- Eu? – meu melhor amigo ergueu as mãos em sinal de rendição - Longe de mim. Só achei isso tosco Alícia, não estamos em um filme clichê e essas coisas não funcionam na vida real. Crianças são maliciosas e adoram debochar da nossa cara.

- Cala a boca - fingi indiferença.

Desviei o olhar para disfarçar a mágoa e só dei de ombros. Não, não era nem um pouco tosco. Cada item foi pensado com cautela e eu sabia que ele iria se surpreender com a inteligência de uma criança. Éramos filhos únicos em nossas respectivas famílias, além de não possuirmos primos, então perdoei em parte seu deboche. Todavia eu sentia que crianças carregavam uma forma única de olhar o mundo, e mesmo tão novas, possuíam uma inteligência impressionante. Nicolas me encarou por um momento e falou devagar:

- Espero que não esteja com raiva de mim.

- Não estou – e no fundo não era mentira - Vamos logo.

- Onde encontramos essas crianças? -  perguntou.

Apenas sorri, deixando o mistério no ar. Há um tempo, quando eu estava me sentindo sozinha demais, encontrei um lugar que eu me senti de fato confortável. Não era nada chique, famoso ou indicado por alguém. Não, havia encontrado aquele lugar sozinha, como se o universo tivesse se comovido com minhas lutas e me agraciado com um ponto de paz. 

Nunca tinha levado ninguém ali, nem meus pais sabiam que eu frequentava esse lugar. Agora, um misto de animação e receio percorria meu corpo. Nicolas poderia amar, odiar, achar ridículo ou incrível e eu sabia que isso me afetaria bastante. Mesmo que indiretamente, eu estaria mostrando um lado sensível, que poderia se quebrar com uma facilidade impressionante. Caminhamos para fora da casa e mordi a ponta do meu polegar, a insegurança me dominando aos poucos. 

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