capítulo três

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VOCÊ VAI MORRER, TAMBÉM

1

O dia em que Anastácia viu o corpo de Lorenna morta no Realeza lhe causou pesadelos e comoções inesperadas. Naquele dia, ela não apenas enxergou uma garota falecida naquele chão, como também sua filha, Antonieta, que tinha a mesma idade, assumindo o posto daquela jovem garota com um fim tão trágico.

Quando chegou em casa no domingo e encontrou sua filha assistindo televisão (ela não estava na disposição de sair para o cinema com a mãe naquele dia), Anastácia sentiu derramar dentro de si uma corrente de água fervendo a amor, e então disparou-se para o quarto, trancando-se e chorando até que os olhos não aguentassem mais.

Se tratava de sua filha, afinal. E ela poderia morrer amanhã. Quem sabe? O mundo é um mar de loucuras, embora a filha dela não usasse droga igual aquela menina usou — e será mesmo que ela tinha certeza disso?

Sendo filha adotada, Antonieta compunha de um extenso e volumoso cabelo cacheado e possuía belos olhos amarelados. Anastácia costumava dizer que a filha tinha olhos da cor do mel.

A amava e não conseguia imaginar perdendo-a. Havia sido um grande caminho tortuoso desde que a adotara. Antonieta tinha oito anos quando veio parar em suas mãos; era uma menina frágil e doce, porém que tinha sofrido um acidente que a fez perder boa parte de sua memória. Anastácia, tocada, a cuidou como se a garota fosse um ovo raro e caro de alguma espécie em extinção.

Foram seus pais quem odiaram conhecer a menina.

— Você ficou louca, Ana? — sua mãe quase gritou. Era uma velha loura e carrancuda, com tantas rugas que Anastácia tinha medo de puxá-las. — Acabar com a sua vida desse jeito? Se fosse para ter um filho, que primeiro arranjasse um marido, ora!

— Sua mãe está certa — concordara seu pai. — Além de que, minha filha, por que então não adotou uma garota mais... a sua cara, digamos assim? Aquela ali é... — Parecia nervoso ao escolher as palavras. — Certo, ela é feia. Você é maravilhosa. O que deu em ti, meu bem?

Anastácia enrugou a testa e fechou os punhos. Levemente, começou a ranger os dentes.

— Não era uma questão de escolha, pai — ela soltou. — Não é assim que funciona uma adoção. Eu não cheguei lá e apontei um dedo para a garota. E mesmo que eu pudesse fazer isso, não teria escolhido outra, simplesmente porque amo minha filha e assim que ela veio eu soube que era ela. Agora, por favor, saiam da minha casa.

— Ela não é sua filha — resmungou sua mãe. — Seria se tivesse saído do seu priquito, mas como não...

SAIAM!

Seus pais retrocederam alguns passos, os olhos esbugalhados. Estavam no quarto dela (eles a tinham visitado de surpresa, e por isso tamanha desconciliação), mas o que Anastácia mais queria agora era que os dois pegassem as malas e partissem de lá da mesma forma que chegaram.

— Isso é jeito de falar com seus pais, menina? — perguntou seu pai, vermelho.

Anastácia não quis saber. Os expulsou de lá do mesmo jeito. Falou da filha dela, mexeu com ela. Afinal de contas, seus pais não tinham sido lá grande coisa na sua vida, que sempre foi a base de regras, disciplina e nada de carinho.

Ela nunca chegou a conhecer o amor dos seus pais. Sempre quis que eles fossem mais presentes em sua vida social, e ativos até mesmo na amorosa, mas nem dar conselhos eles davam. Anastácia viveu sozinha no mundo, e, incapaz de conhecer o tal amante, optou por adotar uma filha. Tinha emprego e uma boa estabilidade financeira, então achou que seria uma boa ideia. Não sabia se ia aguentar carregar uma vida por nove meses na barriga.

Reflexo do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora