O Natal

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Estaciono meu carro.

Olho para as sacolas de presentes no banco de trás e fico imaginando como meus sobrinhos possam reagir a me ver entrando pela porta da frente da casa dos meus pais depois de tantos anos.

Quer dizer, nunca nem os conheci pessoalmente, desde que tudo aconteceu temos nos falado frequentemente via ligação de vídeo ou chamadas de voz.

É verdade que de alguma forma eu me esforcei para que algumas coisas dessem muito certo, mas que em outras eu também não diz o mínimo esforço para que acontecessem do jeito que deveria acontecer.

As coisas são tão complicadas em família, mas em natais em família costumam ser ainda um pouco piores para mim.

Tem todos esses momentos constrangedores que as pessoas ficam te olhando, notando se você engordou, perguntando quando irá se casar, se irá ter filhos e até mesmo fazendo algumas críticas sobre suas roupas, seu emprego e trabalho.

Eu me lembro bem de todos os natais traumatizantes com a minha família, quer dizer, com uma irmã perfeita com a vida perfeita, família perfeita e eu sempre de lado como se fosse tudo o que os meus pais idealizaram e que não deu certo de nenhuma forma.

E isso além de enormes ondas de estresse também causou em mim alguns tipos de traumas bem pesados, como quando em determinado dia, minha mãe me impediu de comer durante a ceia de Natal porque segundo ela eu precisava emagrecer, realmente, é a coisa mais complicada do mundo em diversos sentidos.

Por isso que depois que eu terminei meu ensino médio dei um jeito rápido de sair da casa deles, Mara continuou a estudar e foi para a universidade, eu por ter saído de casa fui trabalhar como operadora de caixa, ela usufruiu de todos os confortos de viver diante das expectativas dos nossos pais, mas eu não, eu preferi seguir com a minha vida e tornar meus passos longos e distantes das sombras deles.

Ela se tornou uma grande conhecedora do ramo de geopolítica, se formou em relações internacionais e atualmente trabalha com o governo em missões pela ONU, se casou com um milionário nesse país e teve dois filhos, já a mim restou continuar a viver a minha vida no Brasil e sobrevivendo com os mais diversos empregos que pude encontrar nesses vinte anos.

Não foi uma decisão muito fácil ter que vir para cá porque atualmente a minha irmã não está mais nesse plano, ela faleceu há alguns meses e quando minha mãe conseguiu falar comigo e me dar a notícia ela já havia sido velada e tudo mais, então acho que não será um recomeço assim tão formidável.

O marido da minha irmã pagou as passagens para mim, parece que é um homem bem centrado e que tem uma vida bem estruturada, meus pais vinham visitar a Mara quase sempre graças a todo o dinheiro que o marido dela tinha, mas eu realmente não me senti muito no direito de fazer parte de nada disso.

Agora parece que ele tocou a vida e está com uma nova namorada, meus sobrinhos não se dão bem com a mulher e minha mãe assim como meu pai se viram sem recurso se não pedir que eu viesse passar um mês aqui com eles em Charlotte na Carolina do Norte, Estados Unidos.

Eu ainda nem sei como vou conseguir ajudar aos meus pais com isso, eu tinha só dezoito anos quando os vi, tem tanto tempo que não sei como poderão reagir a minha presença, me distanciei e isso para eles pareceu não fazer diferença.

Não fez.

Acho que no começo eu ia muito aos natais na casa dos meus pais e mesmo morando na mesma cidade nos víamos apenas em feriados religiosos, Páscoa, Natal e Dia do Trabalhador, os demais dias do ano eu estava sobrevivendo a minha vida de adulta sem ajuda de ninguém e só tentando coexistir com todo o resto do mundo exceto eles.

Com o passar dos anos fui deixando de ir, porque depois que a Mara se casou ela mudou para cá e os meus pais tornaram aqui a casa deles, eu não fui ao casamento dela, não participei de nada em relação a ela e definitivamente ainda tenho essa dificuldade de pensar que voltarei para a vida de pessoas sem fazer a ideia do porquê.

Por que estou indo? Por que devo ir? Por que não me convidaram antes? Por que agora? Por que se ela já faleceu? Devo ir?

Tantos porquês que me fizeram pensar profundamente sobre isso, sobre me aproximar de duas crianças que nunca vi na vida pessoalmente, eu senti um pouco de remorso quando soube que ela faleceu, mamãe me contou por telefone que ela faleceu em decorrência de uma cirurgia plástica que não deu certo, teve algumas complicações no pós-operatório e veio a óbito dias depois.

Ela não se alongou muito, desde fevereiro então ela vem me ligando, fazendo vídeo chamadas com meus sobrinhos e com meu pai pedindo que eu viesse para cá, confesso que além da surpresa de saber que teria que sair do país, também me encantei bastante com essa cidade, está nevando, essa casa fica num canto distante do centro e tudo me parece um cenário encantador de um filme americano de natal.

Tive que comprar roupas bem quentes, porque já sabia que aqui faria muito frio, quando cheguei a cidade há dois dias eu já tinha reserva num hotel caro e um carro me esperava no aeroporto, o motorista me levou até o hotel e disse que no dia seguinte no estacionamento do hotel haveria um carro para que eu viesse dirigindo até aqui.

A rota já estava no gps, como atualmente sou motorista de van e tenho habilitação validada aqui — porque meus pais resolveram tudo com o meu cunhado — foi tranquilo vir até aqui dirigindo, fiquei um pouco impressionada com o carro e agora com essa casa.

Realmente a minha irmã conseguiu viver em todos os sentidos o sonho americano.

Checo meu celular e vejo a mensagem da minha mãe no chat.

— Estamos ansiosos, as crianças estão agitadas, já está chegando querida?

Reviro os olhos, mas não tenho muito tempo, duas mãos com luvas de cor de rosa batem no vidro da janela do carro e isso faz um barulho que me assusta, dou um pulo, depois outras duas mãos batem ao lado, com luvas pretas, abro a janela do carro e vejo as duas criaturas com roupas de frio e tênis.

Sorrio de imediato.

— Ora, ora, vejam só o que temos aqui, pestinhas!



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