Capítulo 1: O que não mata, viram cicatrizes

45 4 0
                                    

O silêncio da noite seria completo se não fosse o bater das gotas de água contra a pele nua e ruído branco do chuveiro ligado no pequeno banheiro, a água aos seus pés corria em vermelho e marrom, resultado de todo o sangue e sujeira sendo lavados de sua pele depois de uma noite particularmente agitada no complexo mercado noturno.

Nines se amaldiçoou mentalmente de sua decisão naquela noite assim que estava em seu apartamento praticamente vazio depois do que ele denominava uma chacina.

Era verdade que boa parte do sangue que corria junto com a água no ralo de metal não era dele — mesmo que ele precisasse urgentemente de remendos — mas ainda assim tinha sido difícil, o serviço não incluía nada disso. Tudo começou com um mal entendido que evoluiu rapidamente para uma carnificina brutal de muitas pessoas, ele teria que pedir desculpas ao seu colega de quarto pelo sofá, mas ele sabia que a essa altura, Chase já deveria estar acostumado com ter suas coisas manchadas de sangue, seja ele do próprio Nines ou não.

Nines.

Que figura estranha ele era: quase um e noventa de altura e esquelético como um espantalho, olhos frios de um azul fabricado — literalmente — e uma mandíbula de metal no lugar de ossos que se projetava para fora de sua gengiva com dentes prateados de titânio, o cabelo era escuro, preto como as penas de um corvo e a irritação constante de seus olhos robóticos o deixavam sempre com uma vermelhidão que ele não conseguia se livrar por nada no mundo. Sim, robótico, boa parte dele era metal e não carne, mas não foi por vontade própria, nada do que ele era.

Ele saiu do chuveiro apertado com a cortina o seguindo, grudando em sua pele molhada e cheia de sardas, ele descolou o plástico com a mão mecânica enquanto se aproximava do espelho com uma toalha amarrada ao redor da cintura, observando o hematoma que cobria quase todo o lado esquerdo de seu rosto, vermelho vazando de seu olho e do corte no alto do osso de sua bochecha que ele ainda tinha que concertar. Nines leva a mão para tentar tocar, mas a área toda está sensível demais e ele sibila como um gato quando as pontas dos dedos alcançam o lugar e roçam na pele partida, menos tolerante e mais sensível à dor agora que não estava dopado de adrenalina.

— Jesus — ele ouviu a voz vindo da sala, a voz reconhecidamente energética de Chase — Okay, espero não ter nenhum cadáver na minha banheira de novo ou eu juro por Deus, Niel, que vou te eletrocutar.

Nines sorriu dolorosamente com a lembrança, ele sabia que Chase era plenamente capaz de cumprir com sua promessa e já tinha realmente o eletrocutado — acidentalmente ou não — com suas próprias mãos e seus próprios poderes de eletrocussão. Afinal, os dois eram criaturas peculiares, vítimas de um experimento muito cruel ainda muito jovens para se

defenderem do que quer que os tenha transformado em monstros, experimento esse que deu a eles poderes que eram bênçãos, mas também maldições desde que se lembravam disso.

O "Projeto Gênese".

Ele era uma cobaia sem importância até que um acidente expôs toda a sujeira que estavam fazendo com crianças sob os panos em nome do progresso e continuou sem importância mesmo depois que tudo foi pelos ares e seus captores foram obrigados a libertarem todos eles.

Chase e ele não tinham ninguém antes da liberdade e acabaram tendo um ao outro desde então.

— Você tá horrível — disse o garoto elétrico apoiado no batente da porta com o ombro, encarando Nines enquanto o mesmo usava um pano molhado para limpar suas feridas frescas de seu rosto — O que aconteceu?

— Você não vai acreditar, mas juro que dessa vez eu tenho uma boa explicação — disse o ciborgue sem tirar os olhos do espelho.

— Eu vou adorar ouvir — diz Chase erguendo o queixo em desafio.

O Experimento Número NoveOnde histórias criam vida. Descubra agora