capítulo 2

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                                    Khayman

Khayman observava da entrada quando o carro do Vampiro Lestat entrou
no estacionamento. Khayman estava quase invisível, mesmo no elegante terno de
brim que ele roubara de um manequim de loja. Não precisava dos óculos
prateados que lhe cobriam os olhos. Sua pele brilhante não tinha importância. Em
toda parte ele via máscaras e maquilagem, brilho e filó, fantasias, purpurina.
Aproximou-se mais de Lestat, como se nadasse através dos corpos
sinuosos dos jovens que cercaram o carro. Finalmente vislumbrou os cabelos
louros da criatura, e então os olhos azuis-violeta, quando ele se voltou sorrindo e
jogou beijos para seus adoradores. O demônio tinha muito encanto. Ele próprio
estava dirigindo, acelerando fundo e jogando o carro de encontro àquelas ternas
criaturas humanas, sem deixar de flertar, piscar, seduzir, como se ele e seu pé no
acelerador não fossem ligados um ao outro.
Satisfação. Triunfo. Era o que Lestat sentia e conhecia naquele momento.
E mesmo seu reticente companheiro, Louis, o moreno ao lado dele, olhando
timidamente para as crianças que gritavam como se elas fossem aves do paraíso,
não compreendia o que realmente estava acontecendo.
Nenhum dos dois sabia que a Rainha havia despertado. Nenhum dos dois
conhecia o sonho das gêmeas. A ignorância deles era espantosa. E suas jovens
mentes eram fáceis de ler. Aparentemente o Vampiro Lestat, que se escondera
muito bem até essa noite, estava agora preparado para lutar com todo mundo:
Trazia seus pensamentos e suas intenções como bandeiras de honra.
— Corram atrás de nós! — Foi o que disse em voz alta para os fãs,
embora esses não escutassem. — Matem-nos. Somos maus. Somos o mal. Agora
está ótimo cantar e dançar conosco. Mas quando entenderem, bem, então vai
começar o negócio sério. E vão se lembrar que nunca menti para vocês!
Por um instante seus olhos encontraram os de Khayman. Quero ser bom!
Morreria para isto! Mas não houve reconhecimento de quem ou o quê recebeu a
mensagem.
Louis, o observador, o paciente, está lá pura e simplesmente por amor. Os
dois tinham se reencontrado na véspera, e seu encontro foi uma coisa
extraordinária. Louis iria aonde Lestat o levasse. Louis pereceria se Lestat
perecesse. Mas seus temores e suas esperanças para essa noite eram
comovedoramente humanos.
Nem sequer pressentiam que a cólera da Rainha estava próxima, que
menos de uma hora antes ela incendiara a casa comunal de São Francisco. Ou
que a abominável taverna na Rua Castro estava ardendo agora, a Rainha
caçando aqueles que fugiam de lá.
Mas os muitos bebedores de sangue espalhados por essa multidão
tampouco conheciam esses fatos simples. Eram jovens demais para escutar os
avisos dos antigos, ouvir os gritos de morte dos condenados. O sonho das
gêmeas apenas os deixava confusos. De vários pontos eles olhavam para Lestat,
cheios de ódio ou de fervor religioso. Iam destruí-lo ou fazer dele um deus. Não
adivinhavam o perigo que os esperava.
Mas e as gêmeas? Qual era o significado dos sonhos?
Khayman observou o carro seguir em frente, forçando caminho em direção
aos fundos do auditório. Olhou para as estrelas no alto, os minúsculos pontinhos
de luz atrás da neblina que pairava sobre a cidade. Pensou poder sentir a
proximidade de sua antiga soberana.
Voltou-se novamente para o auditório e abriu caminho cuidadosamente
por entre a multidão. Esquecer sua força naquele aperto significaria desastre. Ele
era capaz de esmagar carnes e despedaçar ossos sem sentir.
Lançou um último olhar para o céu e depois entrou, confundindo
facilmente o bilheteiro ao passar pela roleta e subir a escada mais próxima.
O auditório estava quase cheio. Ele olhou em volta pensativamente,
saboreando o momento como saboreava tudo. O auditório em si não era nada,
uma casca para segurar o som e a luz — inteiramente moderno e irremediavelmente feio.
Mas os mortais, como eram bonitos, brilhantes de saúde, os bolsos cheios
de ouro, corpos sadios em toda parte, nenhum órgão roído pelos vermes da
doença, nenhum osso quebrado!
Na verdade, o bem-estar higienizado de toda aquela cidade espantava
Khayman. Sem dúvida ele já vira riquezas na Europa como jamais teria imaginado,
mas nada se igualava à superfície perfeita desse local pequeno e superpovoado
— até mesmo os camponeses de São Francisco, cujas pequenas cabanas de
tijolos eram atulhadas de confortos de todos os tipos. As garagens eram cheias de
carros bonitos. Mendigos retiravam seu dinheiro de máquinas bancárias com
mágicos cartões de plástico. Nenhuma favela em parte alguma. A cidade tinha
grandes torres, 6 hotéis fabulosos; mansões em profusão; no entanto, cercada
como era por mar e montanha e as águas cintilantes da Baía, não parecia uma
capital, e sim um balneário, um refúgio da dor maior e da feiúra do mundo.
Não era de espantar que Lestat tivesse escolhido aquele lugar para o
desafio. No geral, aquelas crianças mimadas eram boas. A privação nunca as
ferira ou enfraquecera. Podiam mostrar-se combatentes perfeitos para o
verdadeiro mal. Isto é, quando chegassem a perceber que o símbolo e a coisa
simbolizada eram o mesmo. Acordem e sintam o cheiro de sangue, jovens.
Mas haveria tempo para isso agora?
O grande plano de Lestat, fosse qual fosse na realidade, podia nascer
morto; pois certamente a Rainha tinha um plano próprio, e Lestat nada sabia sobre
isso.
Khayman dirigiu-se para o alto do auditório. Para a última fila de cadeiras
de madeira, onde estivera antes. Acomodou-se confortavelmente no mesmo lugar,
empurrando dois livros que estavam caídos no chão.
Pouco antes ele os devorara: o testamento de Louis — "Vejam, o vazio" —
e a história de Lestat — "E isto e isto e isto, não quer dizer coisa alguma". Tinham
esclarecido muita coisa para ele. E o que Khayman adivinhara das intenções de
Lestat tinha sido inteiramente confirmado. Mas do mistério das gêmeas,
naturalmente, os livros nada diziam.
Quanto à verdadeira intenção da Rainha, isso continuava a
desconcertá-lo.
Ela matara centenas de bebedores de sangue em todo o mundo, mas
deixara outros ilesos.
Até agora Marius estava vivo. Ao destruir seu santuário, ela o castigara
mas não o matara, o que teria sido muito simples. De sua prisão de gelo ele
chamava os mais antigos, advertindo, implorando ajuda. E sem fazer esforço
Khayman conseguia sentir dois imortais indo atender ao chamado de Marius,
embora uma, a própria filha de Marius, nem mesmo conseguisse ouvi-lo. Pandora
era o seu nome; era solitária, era forte. O outro, chamado Santino, não tinha o
poder que ela tinha, mas conseguia ouvir a voz de Marius, enquanto se esforçava
para acompanhá-la.
Sem dúvida a Rainha poderia tê-los destruído, se assim tivesse decidido.
No entanto eles continuavam, claramente visíveis, claramente audíveis, sem
serem perturbados.
Como a Rainha fazia tais escolhas? Certamente ali mesmo naquele
auditório havia aqueles a quem ela poupara por algum motivo...

                                         Daniel

Chegaram aos portões, e agora tinham que percorrer os últimos metros
descendo uma rampa estreita para entrarem no gigantesco oval aberto onde
ficava o palco.
A multidão se espalhou, como bolas de gude rolando em todas as
direções. Daniel foi em direção ao centro, os dedos agarrados ao cinto de Armand
para não perdê-lo, os olhos percorrendo a platéia em forma de ferradura, as
fileiras de assentos erguendo-se até o teto. Mortais em toda parte, atropelando-se
pelas escadas de cimento ou empoleirados nas grades de ferro, ou engrossando a
multidão à sua volta.
De repente era tudo um borrão, com um barulho como o ronco baixo de
uma máquina gigantesca. E então, nesse momento de visão deliberadamente
distorcida, ele viu os outros. Viu a diferença simples e iniludível entre os vivos e os
mortos. Seres como ele próprio em todas as direções, escondidos na floresta de
mortais, porém brilhando como os olhos de uma coruja à luz da lua. Nenhuma
maquilagem, nenhum óculo escuro, chapéu de abas largas ou capuz poderia
escondê-los uns dos outros. E não era uma mera questão da cor espectral de
suas faces, suas mãos. Era a graciosidade lenta e ágil de seus movimentos, como
se fossem mais espírito que carne.
Ah, meus irmãos e irmãs, finalmente!
Mas era ódio o que sentia à sua volta. Um ódio um tanto desonesto!
Amavam Lestat e o condenavam ao mesmo tempo. Amavam o próprio ato de
odiar, castigar. De repente seu olhar cruzou-se com o de uma criatura grande e
poderosa, de cabelos negros engordurados, que mostrou as presas num horrível
lampejo e então revelou o plano com espantosa riqueza de detalhes. Longe dos
olhares curiosos dos mortais, eles iam arrancar os membros do corpo de Lestat;
iam cortar-lhe a cabeça fora; o resto seria incinerado numa pira junto ao mar. O
fim do monstro e sua lenda. Você está do nosso lado ou contra nós?
Daniel riu alto.
— Nunca conseguirão matá-lo — disse.
No entanto ficou boquiaberto ao vislumbrar o alfanje afiado que a criatura
segurava de encontro ao peito por dentro do casaco. Então o ser virou-se e
desapareceu. Daniel ergueu os olhos para o alto, para a luz enfumaçada. Agora
sou um deles. Conheço todos os seus segredos! Sentia-se aturdido, à beira da
loucura.
A mão de Armand fechou-se em seu ombro. Tinham chegado bem no
centro do espaço aberto. A multidão ficava cada vez mais densa. Belas garotas
em túnicas de seda preta empurravam os rústicos motoqueiros em suas surradas
roupas de couro preto. Plumas suaves roçaram seu rosto; ele viu um demônio
vermelho com chifres gigantescos; um esqueleto ossudo com cachos dourados e
pentes de madrepérola. Gritos soltos erguiam-se na penumbra azulada.
Os motoqueiros uivavam como lobos; alguém gritou "Lestat!" em tom ensurdecedor, e
imediatamente outros repetiram o grito.
Armand tinha novamente aquela expressão perdida, a expressão que
vinha de uma concentração profunda, como se o que ele visse à sua frente nada
significasse.
— Trinta, talvez — cochichou no ouvido de Daniel. — Não mais que isso,
e um ou dois tão antigos que poderiam destruir todos nós num instante.
— Onde? Diga-me!
— Escute — respondeu Armand. — E veja por si próprio. Não há como se
esconder deles.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora