capítulo 21

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— Está mentindo — rebateu Akasha, a voz mal contendo a fúria. — Você
atraiçoa a própria beleza com que sonho; atraiçoa-a porque não tem visão, não
tem sonhos.
— A beleza está lá fora! — Maharet exclamou. — E não merece a sua
violência! Você é tão impiedosa que as vidas que destruiria não significam nada!
Ah, sempre foi assim!
A tensão era insuportável. Meu corpo estava banhado de suor. Eu via o
pânico à minha volta. Louis inclinara a cabeça e cobrira o rosto com as mãos.
Apenas o jovem Daniel parecia irremediavelmente extasiado. E Armand
simplesmente olhava para Akasha como se tudo aquilo estivesse fora de seu
alcance.
Akasha enfrentava uma luta silenciosa. Depois pareceu recuperar sua
convicção.
— Você mente, como sempre fez — disse desesperadamente. — Mas não
faz diferença ficar ou não do meu lado. Farei o que pretendo fazer; vou recuar
milênios e redimir aquele momento antigo, aquele mal antigo que você e a sua
irmã trouxeram para a nossa terra; vou pegar aquele momento e erguê-lo aos
olhos do mundo, até que ele se torne a Belém da nova era; e finalmente haverá
paz na terra. Não se pode fazer um grande bem sem sacrifício e coragem. E se
todos vocês ficarem contra mim, se todos resistirem a mim, então farei de melhor
qualidade os anjos de que necessito.
— Não fará, não — disse Maharet.
— Akasha, por favor, dê-nos tempo — Marius pediu. — Aceite esperar,
refletir. Concorde que nada deve acontecer agora.
— Sim — concordei. — Dê-nos tempo. Venha comigo. Vamos lá para fora,
você, eu e Marius, sair de sonhos e visões e entrar no mundo real.
— Ah, como você me insulta e me subestima — ela sussurrou. Sua raiva
voltava-se contra Marius, mas estava prestes a voltar-se contra mim.
— Há tantas coisas, tantos lugares que quero lhe mostrar! — disse ele. —
Dê-me só uma chance. Akasha, durante dois mil anos cuidei de você, protegi-a...
— Protegeu a si mesmo! Protegeu sua fonte de poder, sua fonte de maldade!
— Eu lhe imploro — Marius continuou. — Cairei de joelhos diante de você.
Um mês apenas, venha comigo, vamos conversar, examinar os fatos...
— Tão mesquinhos, tão egoístas — Akasha sussurrou. — E vocês não se
sentem em dívida para com o mundo que fez de vocês o que são; não se sentem
obrigados a dar-lhe o benefício de seus poderes, a transformarem-se de demônios
em deuses!
Voltou-se de repente para mim, o choque dominando suas feições.
— E você, meu príncipe, que entrou na minha câmara ccmo se eu fosse a
Bela Adormecida, que me trouxe à vida com seu beijo apaixonado; não vai pensar
melhor? Pelo meu amor! — Havia lágrimas em seus olhos. — Vai juntar-se a eles
e também ficar contra mim? — Estendeu as mãos e colocou-as no meu rosto. —
Como pode me atraiçoar? Como pode atraiçoar um sonho como este? Eles são
seres indolentes, enganadores, perversos. Mas seu coração era puro. Você tinha
uma coragem que transcendia ao pragmatismo. Você também tinha seus sonhos!
Não precisei responder. Ela sabia. Podia vê-lo talvez ainda melhor que eu
mesmo. E tudo que eu via era o sofrimento em seus olhos negros. A dor, a
incompreensão; e a tristeza que ela já estava sentindo por mim.
Parecia incapaz de mover-se ou falar. E nada havia que eu pudesse fazer
agora, para salvá-los ou a mim. Eu a amava! Mas não podia apoiá-la!
Silenciosamente implorei que ela compreendesse e perdoasse.
O rosto dela estava imóvel, como se as vozes a tivessem dominado; era
como se eu estivesse parado diante de seu trono, exposto ao seu olhar imutável.
— Vou matá-lo primeiro, meu príncipe — ela disse, seus dedos
acariciando-me com suavidade. — Quero você desaparecido. Não quero olhar
para o seu rosto e ver esta traição outra vez.
— Faça mal a ele, e esse será o nosso sinal — Maharet murmurou. —
Vamos atacá-la todos juntos.
— E atacarão a si mesmos também! — ela rebateu, olhando de relance
para Maharet. — Quando acabar com este que amo, vou matar aqueles que você
ama; aqueles que já deviam estar mortos; vou destruir todos aqueles que posso destruir; mas quem me destruirá?
— Akasha... — Marius sussurrou.
Ele ergueu-se e foi em sua direção, mas ela reagiu num piscar de olhos e
derrubou-o no chão. Ouvi-o gritar ao cair. Santino foi ajudá-lo.
Novamente ela olhou para mim; e suas mãos fecharam-se em meus
ombros, gentis e amorosas como antes. E através de minhas lágrimas vi-a sorrir
tristemente.
— Meu príncipe, meu lindo príncipe — murmurou. Khayman ergueu-se.
Eric ergueu-se. E Mael. E então os jovens ergueram-se, e por último Pandora, que
foi postar-se ao lado de Marius.
Ela soltou-me. E ergueu-se também. De repente a noite ficou tão
silenciosa que a floresta parecia suspirar de encontro ao vidro.
E foi isso que provoquei, eu, o único que permanecia sentado, olhando,
não para eles, mas para nada. Para minha vida pequena e brilhante, meus
pequenos triunfos, minhas pequenas tragédias, meus sonhos de despertar a
deusa, meus sonhos de bondade, e de fama.
Que estava ela fazendo? Avaliando a força deles? Olhava de um para
outro, e depois para mim. Um desconhecido olhando para baixo, de uma altura
imensa. E então chegou a hora do fogo, Lestat. Não ouse olhar para Gabrielle ou
Louis, para que ela não se volte naquela direção. Morra primeiro, como um
covarde, e então não precisará vê-los morrer.
E a parte horrível é que você não saberá quem vai triunfar — se ela
vencerá ou se morreremos todos juntos. Exatamente como não sei o significado
de tudo isso, ou a razão, ou que diabos significava o sonho das gêmeas, ou como
todo este mundo foi criado. Nunca saberei.
Eu agora chorava, e ela chorava, era novamente aquele ser terno e frágil,
o ser que eu abraçara em São Domingos, o ser que precisava de mim, mas afinal
essa fraqueza não a destruía, embora certamente fosse destruir-me.
— Lestat — ela sussurrou, como se não acreditasse.
— Não posso acompanhá-la — falei, com voz entrecortada, erguendo-me
lentamente. — Não somos anjos, Akasha. Não somos deuses. Humanos é o que queremos ser. O humano é que tornou-se um mito para nós.
Olhar para ela me dilacerava. Pensei em seu sangue fluindo para dentro
de mim, nos poderes que ela me dera, em como tinha sido viajar com ela pelos
céus. Pensei na euforia da aldeia haitiana, quando as mulheres chegaram com
velas, cantando seus hinos.
— Mas é assim que vai ser, meu amado — ela sussurrou. — Encontre sua
coragem! Ela existe. — Lágrimas desciam-lhe pelo rosto; tinha os lábios trêmulos
e a pele lisa de sua testa estava marcada com as rugas do sofrimento.
Então endireitou-se. Desviou o olhar de mim; seu rosto ficou vazio e
maravilhosamente liso outra vez. Olhava por cima de nós, e senti que estava
procurando forças para começar; era melhor que os outros agissem depressa.
Desejei isso, como se enfiasse um punhal nela; seria melhor que a derrubassem
agora. Senti as lágrimas descendo-me pelo rosto.
Mas alguma coisa mais estava acontecendo. Havia um som forte e
musical vindo de algum lugar: vidros partindo-se, grande quantidade de vidro.
Daniel mostrou uma excitação súbita e óbvia. Jesse também. Mas os antigos
ficaram imóveis, escutando. Novamente vidro partindo-se; alguém entrando por
uma das muitas portas dessa casa.
Ela deu um passo para trás. Retesou-se, como se diante de uma visão; e
um som alto e surdo encheu o poço da escada além da porta aberta. Alguém lá
embaixo no corredor.
Ela afastou-se da mesa em direção à lareira. Parecia sentir muito medo.
Era possível? Saberia quem estava chegando, e seria outro antigo? E
seria aquilo o que ela temia — que mais deles conseguissem realizar o que
aqueles poucos não conseguiam?
Afinal não era algo tão calculado. Eu sabia; ela estava sendo derrotada
por dentro. Sua coragem esvaía-se. Era a necessidade, a solidão, afinal!
Começara com a minha resistência, e aqueles ali a tinham intensificado, e então
eu lhe dera outro golpe. E agora parecia paralisada por esse ruído alto,
ressonante e impessoal. No entanto ela sabia quem era essa pessoa, eu podia
senti-lo. E os outros também sabiam.
O ruído aumentava. O visitante subia os degraus. A clarabóia e as velhas
colunas de ferro reverberavam ao choque de cada passo pesado.
— Mas quem é? — perguntei de repente. Não conseguia mais suportar.
Novamente aquela imagem, a imagem do corpo da mãe e das gêmeas.
— Akasha! — disse Marius. — Dê-nos o tempo que estamos pedindo.
Adie o seu momento. Isto basta!
— Basta para quê? — ela gritou agudamente, quase selvagemente.
— Para as nossas vidas, Akasha — disse ele. — Para todas as nossas
vidas!
Ouvi Khayman rir baixinho, ele, o único que nem uma vez falara.
Os passos tinham chegado ao patamar.
Maharet postara-se junto à porta aberta, Mael a seu lado. Eu nem ao
menos os vira mover-se!
Então vi de quem e de quê se tratava. A mulher que eu vislumbrara
caminhando na floresta, erguendo-se da terra, atravessando as longas planícies
de solo árido. A outra gêmea dos sonhos que nunca cheguei a compreender! E
agora ela estava emoldurada pela luz mortiça que vinha da escada, olhos fixos na
figura distante de Akasha, que estava a uns dez metros dela, de costas para a
parede de vidro e a lareira acesa.
Ah, mas que visão, aquela! Todos soltaram suspiros de espanto; até
mesmo os antigos, até mesmo Marius.
Uma fina camada de terra cobria-a inteira, inclusive os longos cabelos.
Rachada, descascando-se, até mesmo manchada de chuva, a lama ainda se
agarrava a ela, a seus braços nus e aos pés descalços, como se ela fosse feita de
lama, feita da própria terra. Fazia de seu rosto uma máscara. E os olhos espiavam
pela máscara, nus, bordejados de vermelho. Trapos cobriam-na, um pano imundo
e rasgado, amarrado na cintura por uma corda de cânhamo.
Que impulso podia fazer tal ser cobrir-se? Que delicada modéstia humana
fizera esse cadáver vivo parar e fabricar aquele traje? Que sofrimento era
remanescente do coração humano?
Ao lado dela, encarando-a, Maharet pareceu fraquejar de repente, como se seu corpo esguio fosse cair.
— Mekare! — exclamou baixinho.
Mas a mulher não a escutou, nem a viu; olhava para Akasha, olhos
lampejando com uma astúcia animal, enquanto Akasha tornava a aproximar-se da
mesa, colocando a mesa entre ela e essa criatura; o rosto de Akasha endurecera,
olhos cheios de ódio indisfarçado.
— Mekare! — Maharet gritou.
Estendeu as mãos e tentou pegar a mulher pelos ombros e virá-la para si.
Mas a mulher empurrou Maharet para trás, jogando-a a muitos metros de distância.
Maharet foi bater na parede.
A grande folha de vidro vibrou, mas não se partiu. Maharet tocou-a com os
dedos; então, com a graça fluida de um gato, saltou para os braços de Eric, que
corria em sua ajuda.
Ele imediatamente puxou-a de volta em direção à porta. Pois a mulher
agora alcançava a imensa mesa, empurrando-a para longe e depois tombando-a
de lado.
Gabrielle e Louis correram para o canto oposto; Santino e Armand foram
para o outro lado, em direção a Mael, Eric e Maharet.
Nós, do outro lado, apenas recuamos, à exceção de Jesse, que se
aproximara da porta. Parou ao lado de Khayman, e quando olhei para ele vi,
atônito, que ele ostentava um sorriso amargo.
— A maldição, minha Rainha — disse, a voz erguendo-se estridente,
enchendo todo o aposento.
A mulher imobilizou-se ao ouvi-lo atrás de si. Mas não se voltou.
E Akasha, o rosto brilhando à luz da lareira, estremeceu visivelmente, e as
lágrimas caíram novamente.
— Todos vocês contra mim! — exclamou. — Nenhum de vocês me
ajudará!
Ela me encarou, enquanto a mulher se aproximava dela.
Os pés enlameados da mulher arranhavam o tapete; a boca pendia aberta
e as mãos ligeiramente retesadas, braços ainda caídos. No entanto, era o próprio retrato da ameaça, avançando a passos lentos.
Mas Khayman falou novamente, fazendo com que ela parasse.
Ele gritou em outra língua, a voz ganhando volume até transformar-se
num rugido. E apenas uma vaga tradução me chegava.
— Rainha dos Condenados... a hora de seu maior perigo ... Vou
erguer-me para destruí-la...
Entendi. Era a profecia e maldição de Mekare — aquela mulher. E todos
ali a conheciam, a compreendiam. Era ligada ao sonho estranho, inexplicável.
— Ah, não, meus filhos! — Akasha gritou de repente. — Não está
terminado!
Eu podia senti-la reunindo suas forças; podia ver seu corpo retesando-se,
os seios jogados para a frente, as mãos erguendo-se como se automaticamente,
dedos dobrados.
A mulher foi atingida, jogada para trás, mas recuperou-se
instantaneamente. E então ela também endireitou-se, olhos arregalados, e
lançou-se para a frente tão depressa que não consegui acompanhá-la, mãos
estendidas para a Rainha.
Vi seus dedos cobertos de lama indo em direção a Akasha; vi o rosto de
Akasha ao ser agarrada pelos longos cabelos negros. Ouvi seu grito. E então vi
seu perfil, quando a cabeça bateu na janela e quebrou o vidro, que caiu em cacos
pontiagudos.
Um choque violento me atingiu; não conseguia respirar nem me mover.
Senti-me cair. Não conseguia controlar as pernas. O corpo sem cabeça de Akasha
escorregava ao longo da parede partida, os cacos ainda caindo em volta dele. O
sangue espirrava. E a mulher segurava a cabeça de Akasha pelos cabelos!
Os olhos negros de Akasha piscaram, arregalaram-se. A boca abriu-se
como se ela fosse gritar novamente.
E então a luz desapareceu à minha volta; era como se o fogo da lareira
tivesse apagado, só que não tinha, e enquanto eu rolava pelo tapete, chorando, as
mãos tentando involuntariamente agarrá-lo, vi as labaredas distantes através de uma névoa vermelho-escura.
Tentei erguer-me; não consegui. Ouvia Marius me chamando, Marius
chamando silenciosamente apenas o meu nome.
Então ergui-me, só um pouquinho, apoiando todo o meu peso nas mãos e
nos braços.
Os olhos de Akasha estavam fixos em mim. Sua cabeça estava caída
quase ao meu alcance, e o corpo jazia de lado, o sangue jorrando do pescoço
cortado. De repente o braço direito estremeceu, ergueu-se e tornou a cair no chão.
Depois tornou a erguer-se, a mão pendente. Estava tentando alcançar a cabeça!
Eu poderia ajudar! Poderia usar os poderes que ela me dera para tentar
movê-la, ajudá-la a alcançar a cabeça. E enquanto eu me esforçava para enxergar
na penumbra, o corpo estremeceu, contraiu-se e desabou mais perto da cabeça.
Mas as gêmeas! Estavam ao lado do corpo e da cabeça. Mekare, olhos
vazios fixos na cabeça; e Maharet, como se com suas últimas forças, agora
ajoelhada ao lado da irmã, acima do corpo da Mãe, enquanto o aposento ficava
mais frio e mais escuro, e o rosto de Akasha começava a ficar pálido,
fantasmagoricamente branco, como se toda a luz dentro dele estivesse se
apagando.
Eu devia ter medo; devia estar aterrorizado; o frio me dominava, e eu
ouvia meus próprios soluços. Mas uma estranhíssima exaltação tomou conta de
mim; percebi de repente o que estava contemplando:
— É o sonho! — exclamei. Ouvia minha voz muito distante. — As gêmeas
e o corpo da Mãe, não estão vendo? A imagem do sonho!
O sangue fluía da cabeça de Akasha para dentro do tecido do tapete;
Maharet estava caindo, as mãos estendidas, e Mekare também estava
enfraquecida, inclinada sobre o corpo, mas ainda era a mesma imagem, e eu
agora sabia por que a vira, sabia o que significava.
— O banquete fúnebre! — Marius exclamou. — O coração e o cérebro,
uma de vocês. Coma-os. E a única chance!
Sim, era isso. E eles sabiam! Ninguém precisara contar-lhes. Sabiam!
Aquele era o significado! E todos o tinham visto, e todos eles sabiam.
Enquanto meus olhos se fechavam eu entendi; e aquela sensação deliciosa intensificou-se, aquele sentimento de alguma coisa completa, finalmente
terminada. De alguma coisa revelada!
Então eu estava flutuando novamente na escuridão gelada, como se
estivesse nos braços de Akasha, e nós nos elevássemos até as. estrelas.
Um ruído agudo me trouxe de volta. Ainda não estava morto, mas
moribundo. E onde estão aqueles que eu amo?
Ainda lutando pela vida, tentei abrir os olhos; parecia impossível. Mas
então vi-as na escuridão que se intensificava — as duas, seus cabelos vermelhos
brilhando à luz do fogo; uma segurava o cérebro ensangüentado nos dedos
cobertos de lama, e a outra, o coração. Estavam quase mortas, os olhos vidrados,
os membros movendo-se como se dentro d'água. E Akasha ainda tinha os olhos
fixos, a boca aberta, o sangue jorrando do crânio arrebentado. Mekare levou o
cérebro à boca; Maharet colocou o coração na outra mão dela; Mekare engoliu os
dois.
Novamente a escuridão. Nenhuma luz do fogo; nenhum ponto de
referência; nenhuma sensação a não ser a dor, que percorria toda a coisa que eu
era e que não tinha membros, nem olhos, nem boca para falar. A dor latejante,
elétrica; e não havia modo de movimentar-me para diminuí-la, empurrá-la para
algum lugar, ou retesar-me contra ela, ou mergulhar dentro dela. Apenas a dor.
No entanto eu estava me movimentando. Estava me contorcendo no chão.
Através da dor senti de repente o tapete; senti meus pés afundando nele como se
eu tentasse subir um rochedo íngreme. E então ouvi o inconfundível ruído do fogo
perto de mim, senti o vento entrando pela janela despedaçada e todos aqueles
cheiros doces da floresta enchendo a sala. Um choque violento me percorreu,
através de todos os músculos e de todos os poros, meus braços e minhas pernas
agitando-se. Então fiquei imóvel.
A dor desaparecera.
Fiquei ali deitado, ofegante, olhos fixos no reflexo brilhante do fogo no teto
de vidro, sentindo o ar encher-me os pulmões, e compreendi que estava chorando
novamente, como uma criança.
As gêmeas estavam ajoelhadas de costas para nós; estavam abraçadas, e tinham as cabeças juntas, os cabelos misturados, enquanto se acariciavam
ternamente, suavemente, como se falassem através dos toques.
Não conseguia conter meus soluços. Virei-me de bruços, coloquei o braço
sob o rosto e chorei.
Marius estava perto de mim. Também Gabrielle. Queria abraçar Gabrielle.
Queria dizer todas as coisas que sabia que devia dizer: que estava tudo acabado
e tínhamos sobrevivido. Mas não conseguia.
Então virei a cabeça devagar e tornei a olhar para o rosto de Akasha, seu
rosto ainda intacto, embora a brancura densa e brilhante tivesse desaparecido, e
ela estivesse clara e transparente como vidro! E os olhos, seus lindos olhos
negros, estavam ficando transparentes, como se neles não houvesse pigmento;
fosse tudo sangue.
Seus cabelos eram macios e sedosos, e o sangue coagulado era brilhante
e vermelho como rubi.
Não conseguia parar de chorar. Tampouco queria. Comecei a dizer o
nome dela, mas ficou-me preso na garganta. Era como se eu não devesse fazer
isso. Nunca deveria ter feito. Nunca deveria ter subido aqueles degraus de
mármore e beijado seu rosto no santuário.
Os outros estavam voltando à vida. Armand segurava Daniel e Louis,
ambos tontos e ainda incapazes de sustentar-se de pé; Khayman adiantara-se,
com Jesse a seu lado, e os outros também estavam bem. Pandora, tremendo, a
boca contorcida de pranto, estava distanciada, abraçando a si mesma como se
sentisse frio.
E as gêmeas agora puseram-se de pé e olharam em volta, o braço de
Maharet rodeando Mekare. E Mekare olhava para a frente, sem expressão, sem
compreensão, uma estátua viva. Maharet disse:
— Vejam. A Rainha dos Condenados.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora