capítulo 22

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PARTE V

...SÉCULOS DOS SÉCULOS, AMÉM


Algumas coisas iluminam o cair da noite
e pintam de um sofrimento um Rembrandt.
Mas em geral a rapidez do tempo
é uma piada; à nossa custa. A mariposa
é incapaz de rir. Que sorte.
Os mitos estão mortos.
STAN RICE
"Põem on crawling into bed: bitterness"
Body of work (1983)


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Miami.
Uma cidade de vampiros — quente, apinhada e irresistivelmente bela.
Caldeirão, mercado, parque de diversões. Onde os desesperados e os ambiciosos
são ligados em comércio proibido, e o céu pertence a todos, e a praia é infinita; e
as luzes brilham mais que os céus, e o mar é quente como sangue.
Miami. O feliz campo de caça do demônio.
Por isso estamos aqui, na mansão de Armand, grande, branca e graciosa,
na Ilha da Noite, rodeados por todo conforto imaginável e pela generosa noite
sulina.
Lá fora, do outro lado da água, Miami nos chama; as vítimas esperam; os
gigolôs, os ladrões, os reis da droga, os assassinos. Os anônimos; tantos que são
quase tão maus quanto eu, mas nem tanto.
Ao pôr-do-sol Armand saíra com Marius; e agora estavam de volta,
Armand jogando xadrez com Santino na sala, Marius lendo, como fazia
constantemente, na poltrona de couro junto à janela que dava para a praia.
Gabrielle ainda não aparecera; desde que Jesse partira, ela estava
freqüentemente sozinha.
Khayman estava no estúdio do andar térreo conversando com Daniel —
Daniel, que gostava de deixar a fome aumentar, Daniel, que queria saber tudo
sobre a antiga Mileto, e Atenas, e Tróia. Ah, não esqueça Tróia! Eu mesmo estava
vagamente intrigado pela idéia de Tróia.
Gostava de Daniel. Daniel, que poderia ir comigo mais tarde se eu lhe
pedisse; se eu pudesse me obrigar a deixar esta ilha, coisa que só fiz uma vez
desde que cheguei. Daniel, que ainda achava graça na esteira que a lua fazia na
água, nos borrifos momos em seu rosto. Para Daniel, tudo aquilo — até mesmo a
morte dela — tinha sido um espetáculo. Mas não se podia culpá-lo por isso.
Pandora quase não saía da frente da televisão. Marius trouxera-lhe as
elegantes roupas modernas que ela usava: blusa de cetim, botas até o joelho, saia
de veludo. Colocara pulseiras nos braços dela, e anéis em seus dedos, e todas as
noites escovava seus longos cabelos castanhos. Às vezes presenteava-lhe
perfumes. Se não os abria para ela, ficavam intocados na mesa. Ela tinha os olhos
fixos, como Armand, na infindável série de filmes, interrompendo-se de vez em
quando para ir até o piano na sala de música e tocar baixinho por algum tempo.
Eu gostava de ouvi-la tocar; como a Arte da fuga, suas variações. Mas ela
me preocupava. Os outros não. Os outros todos tinham se recuperado, mais
depressa do que imaginei que pudessem. Mas ela tinha sido ferida de algum
modo crucial, antes de tudo começar.
Mas ela gostava daqui; eu sabia disso. Como poderia não gostar? Mesmo
se não ouvisse uma palavra do que Marius dizia.
Todos nós gostávamos. Até Gabrielle.
Cômodos brancos cheios de lindos tapetes persas e quadros instigantes
— Matisse, Monet, Picasso, Giotto, Géricault. Podia-se passar cem anos
simplesmente contemplando as pinturas; Armand estava sempre mudando-as de
lugar, trazendo do sótão novos tesouros, acrescentando pequenos esboços aqui e
ali.
Jesse também tinha adorado este lugar, embora tivesse ido juntar-se a Maharet em Rangoon.
Ela entrara aqui no escritório e contara-me seu lado diretamente,
pedindo-me para mudar os nomes que ela usara e deixar a Talamasca
inteiramente de fora, o que naturalmente eu não faria. Fiquei sentado em silêncio,
examinando-lhe a mente enquanto ela falava, procurando os detalhes que ela não
mencionava. Depois coloquei tudo no computador, enquanto ela observava,
sentada, pensando, olhos fixos nas cortinas de veludo cinza-escuro e no relógio
veneziano; e nas cores frias do Morandi na parede.
Acho que ela sabia que eu não faria o que me pedira. Sabia também que
não tinha importância. As pessoas não acreditariam na Talamasca, assim como
não acreditariam em nós. Isto é, a não ser que David Talbot ou Aaron Lightner
fossem procurá-las, como Aaron tinha procurado Jesse.
Quanto à Grande Família, bem, não era provável que algum deles
imaginasse ser isto mais do que ficção, com um ou outro toque de verdade; isto é,
se por acaso lessem o livro.
Foi o que todos pensaram sobre Entrevista com o vampiro e sobre a
minha autobiografia, e pensariam o mesmo sobre A rainha dos condenados.
E é assim que deve ser. Até eu concordo com isto agora. Maharet tinha
razão. Não há lugar para nós; não há lugar para Deus ou o Demônio; o
sobrenatural deveria ser uma metáfora, seja a Missa Solene na Catedral de São
Patrício ou Fausto vendendo sua alma na ópera, ou um astro de rock fingindo ser
o Vampiro Lestat.
Ninguém sabia aonde Maharet levara Mekare. Nem Eric provavelmente
sabia, embora tivesse partido com eles, prometendo encontrar-se com Jesse em
Rangoon.
Antes de deixar a casa de Sonoma, Maharet espantara-me com um
cochicho:
— Escreva direitinho a Lenda das Gêmeas.
Isso era uma permissão, não era? Ou indiferença cósmica; não estou bem
certo. Não tinha falado do livro a ninguém; apenas sonhara com ele naquelas
longas horas de sofrimento em que não conseguia realmente pensar, a não ser em termos de capítulos. Um ordenamento, um mapa através do mistério, uma
crônica de sedução e sofrimento.
Naquela última noite Maharet parecera superficial, porém misteriosa, vindo
encontrar-me no bosque, vestida de negro e usando sua pintura da moda, como
ela a chamava — a hábil máscara de maquilagem que a transformava numa
atraente mulher mortal, que só conseguia movimentar-se com olhares de
admiração através do mundo real. Que cintura fina ela tinha, e mãos tão longas,
parecendo ainda mais graciosas por causa das luvas de pelica preta. Tão
cuidadosamente andara em meio aos brotinhos frágeis, quando poderia ter
arrancado as próprias árvores em seu caminho!
Ela estivera em São Francisco com Jessica e Gabrielle; tinham passado
por casas alegremente iluminadas, andando em calçadas estreitas e limpas; onde
viviam pessoas, ela dissera. Como sua fala era fluente, e contemporânea! Não
parecia a mulher intemporal que eu conhecera no aposento no topo da montanha.
E por que eu estava novamente sozinho?, ela perguntara, sentando-se
perto de mim junto ao pequeno regato que atravessava o bosque de sequóias. Por
que não queria falar com os outros? Será que eu sabia como estavam
preocupados e queriam me ajudar?
Ainda hoje me fazem essas perguntas.
Até mesmo Gabrielle, que geralmente nunca se dá ao trabalho de fazer
perguntas, nunca diz muita coisa. Querem saber quando vou me recuperar,
quando vou falar sobre o que aconteceu, quando vou parar de escrever a noite
inteira.
Maharet dissera que logo a veríamos de novo. Na primavera, talvez,
poderíamos ir para a casa dela na Birmânia. Ou talvez ela nos fizesse uma
surpresa, qualquer noite. Mas o importante era nunca nos isolarmos uns dos
outros; tínhamos meios de encontrarmos uns aos outros, não importava onde
estivéssemos.
Sim, sobre este ponto importantíssimo, pelo menos, todos haviam
concordado. Até Gabrielle, a solitária, a errante, havia concordado.
Ninguém queria perder-se no tempo novamente.
E Mekare? Eu a veria de novo? Ela alguma vez sentar-se-ia conosco à
mesa? Falaria conosco numa linguagem de gestos e sinais?
Eu a vira apenas uma vez depois daquela noite terrível. E tinha sido algo
inteiramente inesperado, quando eu atravessava a floresta voltando para casa, à
suave luz púrpura logo antes do amanhecer.
Havia uma neblina agarrada à terra, adelgaçando-se acima das
samambaias e das poucas flores silvestres do inverno, e depois
desmanchando-se inteiramente dentro da fosforescência, ao erguer-se acima das
árvores gigantescas.
E as gêmeas vieram juntas através da névoa, entrando no leito do riacho e
atravessando-o por cima das pedras, braços rodeando a cintura uma da outra,
Mekare usando uma túnica longa de lã tão linda quanto a da irmã, os cabelos
escovados e brilhantes, caindo pelos ombros e em cima dos seios.
Parecia que Maharet vinha falando baixinho no ouvido de Mekare. E foi
Mekare quem parou para olhar para mim, seus olhos verdes muito abertos e o
rosto por um instante indizivelmente assustador em sua inexpressividade,
enquanto eu sentia minha dor como um vento abrasador dentro do meu coração.
Fiquei fascinado, olhando para ela, para ambas, minha dor a me sufocar,
como se meus pulmões estivessem ressecados.
Não sei quais eram os meus pensamentos; só sei que a dor parecia
insuportável. E que Maharet me dirigira um leve aceno de saudação, e que eu
devia continuar o meu caminho. A manhã estava chegando. A floresta despertava
à nossa volta. Nossos preciosos momentos estavam passando. Minha dor
finalmente foi liberada, como um gemido saindo de dentro de mim, e eu a deixei
sair enquanto lhes dava as costas.
Olhei para trás uma vez e vi as duas figuras dirigindo-se para o oriente,
descendo o leito prateado do regato, como se engolidas pela música da água que
seguia seu caminho eterno em meio às rochas.
A velha imagem do sonho se desvaneceu um pouquinho. E quando penso
nelas agora, não penso nos banquetes fúnebres, mas naquele momento, as duas
sílfides na floresta, poucas noites antes de Maharet deixar a casa de Sonoma levando Mekare.
Fiquei feliz quando partiram, porque isso significava que nós também
partiríamos. E não me importaria se nunca mais visse a casa de Sonoma. Minha
estada ali fora uma tortura, embora as primeiras noites depois da tragédia tenham
sido as piores.
Com que rapidez o silêncio chocado dos outros dera lugar a infindáveis
análises, enquanto esforçavam-se para interpretar o que tinham visto e sentido!
Como a coisa tinha sido transferida exatamente? Tinha abandonado os tecidos do
cérebro à medida que eles se desintegravam, correndo pela corrente sangüínea
de Mekare até encontrar o mesmo órgão nela? O coração tivera alguma
importância?
Molecular; nucleônico; solitons; protoplasma — cintilante palavreado
moderno! Ora, vamos, somos vampiros! Bebemos o sangue dos vivos,
assassinamos, e adoramos isso. Precisando ou não.
Eu não suportava ouvi-los; não suportava sua curiosidade silenciosa,
porém obsessiva: Como era com ela? Que fizeram nessas poucas noites?
Tampouco conseguia afastar-me deles; certamente não tinha força de vontade
suficiente para partir; tremia quando estava com eles, tremia quando estava
sozinho.
A floresta não era suficientemente densa para mim; eu caminhava durante
horas em meio às imensas sequóias, e depois dos carvalhais e dos campos
abertos, e novamente nos bosques inexpugnáveis. Não havia como fugir das
vozes deles: Louis confessando como perdera a consciência naqueles instantes
terríveis, Daniel dizendo que ouvira nossas vozes, mas nada vira; Jesse, nos
braços de Khayman, testemunhara tudo.
Quantas vezes tinham conversado sobre a ironia de Mekare ter derrubado
sua inimiga com um gesto humano; de, sem nada saber dos poderes invisíveis,
ela ter golpeado como qualquer humano faria, mas com velocidade e força
inumanas.
Alguma parte dela teria sobrevivido em Mekare? Era o que eu ficava me
perguntando. Esqueçam a "poesia da ciência", como Maharet dizia. Era só isso que eu queria saber. Ou sua alma tinha sido liberada finalmente, quando o cérebro
foi arrancado?
Algumas vezes, no escuro, no porão com suas paredes de metal e seus
inúmeros aposentos impessoais, eu acordava, certo de que ela estava ali ao meu
lado, a não mais que alguns centímetros de meu rosto; sentia novamente seus
cabelos, seus braços em volta de mim, o brilho negro de seus olhos. Tateava na
escuridão e nada encontrava senão as únicas paredes de tijolos.
Então ficava deitado pensando na pobrezinha Baby Jenks, como ela me
tinha mostrado, elevando-se em espiral; via as luzes coloridas que envolviam
Baby Jenks quando ela olhou para a terra pela última vez. Como poderia Baby
Jenks, a pobre motoqueira, ter inventado tal visão? Talvez a gente vá mesmo para
casa, finalmente.
Como podemos saber?
E assim continuamos imortais; continuamos assustados; continuamos
ancorados àquilo que podemos controlar. Tudo recomeça; a roda gira; nós somos
os vampiros; porque não há outros. A nova comunidade está formada.
Deixamos a casa de Sonoma como uma caravana de ciganos, um cortejo
de brilhantes carros negros cortando a noite americana numa velocidade mortal
pelas estradas imaculadas. Foi durante essa longa viagem que me contaram tudo
— espontaneamente, e às vezes sem perceberem, ao conversarem uns com os
outros. As peças juntaram-se como num mosaico — tudo que acontecera antes.
Mesmo enquanto eu cochilava contra o veludo azul do banco do carro,
escutava-os e via o que tinham visto.
Atravessamos os pântanos do sul da Flórida e chegamos à grande e
decadente cidade de Miami, uma paródia tanto do céu quanto do inferno.
Imediatamente tranquei-me nesta pequena suíte de aposentos mobiliados
com bom gosto — sofás, tapetes, as pinturas em pastel de Piero delia Francesca;
um computador na mesa; a música de Vivaldi saindo das pequenas caixas
acústicas embutidas nas paredes forradas de papel. Uma escada particular para o
porão, onde, na cripta forrada de aço, o caixão esperava: laça preta, maçanetas
de bronze, um fósforo e um toco de vela, forro enfeitado com renda branca.
O desejo de sangue, como doía! Você não precisa dele, porém não
consegue resistir, e vai ser assim para sempre; nunca ficará livre disso; você o
deseja mais que antes.
Quando não estava escrevendo, ficava deitado no sofá de brocado
cinzento, contemplando as frondes das palmeiras movendo-se à brisa, escutando
as vozes deles lá embaixo.
Louis pedindo educadamente a Jesse que descrevesse mais uma vez a
aparição de Claudia. E a voz de Jesse, solícita, confidencial:
— Mas, Louis, não era real.
Gabrielle sentia saudades de Jesse, agora que ela partira; Jesse e
Gabrielle passavam horas caminhando na praia. Parecia que não diziam uma
palavra; mas quem pode ter certeza?
Gabrielle fazia cada vez mais coisas para me fazer feliz: usava os cabelos
soltos porque sabia que eu adorava, subia ao meu quarto antes de desaparecer
de manhã. De vez em quando me olhava com preocupação.
— Você quer ir embora, não quer? — eu perguntava temerosamente; ou
qualquer coisa assim.
— Não — ela respondia. — Gosto daqui.
Quando ficava inquieta, ia até as ilhas, que não eram muito distantes.
Gostava das ilhas. Mas não era sobre isso que ela queria conversar. Havia
sempre outra coisa em sua mente. Certa vez quase falou.
— Mas diga-me...
E então se interrompera.
— Se eu a amava? — perguntei. — É isso que você quer saber? Sim, eu
a amava.
E ainda não conseguia dizer o nome dela.
Mael ia e vinha.
Uma semana fora; aqui novamente esta noite, lá embaixo, tentando puxar
conversa com Khayman. Khayman, que fascinou todo mundo. Primeira geração.
Todo aquele poder. E pensar que ele caminhou pelas ruas de Tróia!
Vê-lo era invariavelmente surpreendente, se é que isto não é uma contradição.
Ele esforçava-se muito por parecer humano. Num lugar quente como este,
onde as roupas pesadas chamam atenção, isto não é uma coisa fácil. Às vezes
cobria-se com um pigmento escuro — siena queimada, misturada com um pouco
de óleo perfumado. Parecia um crime fazer isso, macular sua beleza; mas de que
outra maneira ele poderia atravessar a multidão humana como uma faca untada?
De vez em quando ele batia à minha porta.
— Você não vai sair daí? — perguntava.
Olhava para a pilha de laudas junto ao computador, as letras negras: A
rainha dos condenados. Ficava ali parado, deixando-me procurar em sua mente
todos os pequenos fragmentos, os momentos mal recordados quase esquecidos;
ele não se importava. Eu parecia confundi-lo, mas não consigo imaginar por quê.
Que desejava de mim? Então sorria aquele sorriso chocante e santo.
De vez em quando ele pegava o barco, a lancha de corrida de Armand, e
deixava-o à deriva no Golfo, enquanto ele ficava deitado sob as estrelas. Gabrielle
foi com ele uma vez, e fiquei tentado a escutá-los, de toda aquela distância —
suas vozes tão privadas e íntimas! Mas não fiz isso. Não parecia direito.
De vez em quando ele dizia que temia a perda de memória, algo que
aparecia de repente e que lhe impossibilitaria encontrar o caminho de volta. Por
outro lado, isso acontecera no passado por causa do sofrimento, e agora ele
estava feliz. Queria que nós soubéssemos: estava feliz por estar conosco.
Parecia que eles lá embaixo tinham chegado a uma espécie de acordo:
não importava aonde fossem, sempre voltariam. Aquela seria a casa comunal, o
abrigo; nunca mais as coisas seriam como antes.
Estavam estabelecendo muitas coisas novas. Ninguém faria mais alguém
e ninguém escreveria mais livros, embora naturalmente soubessem que era
exatamente isso que eu estava fazendo, retirando deles silenciosamente tudo que
podia; e que não pretendia obedecer a quaisquer regras impostas a mim por
qualquer pessoa, e que nunca o fizera.
Ficaram aliviados porque o Vampiro Lestat morrera nas páginas dos
jornais e o tumulto do show fora esquecido. Não houve mortes comprovadas, nenhum ferimento de verdade; todos foram indenizados generosamente; a banda,
recebendo minha parte de tudo, estava em nova turnê com seu antigo nome.
E os massacres, a breve era de milagres — isto também tinha sido
esquecido, embora jamais pudessem ser satisfatoriamente explicados.
Não, nada de revelações, rupturas, intervenções — foi esse seu juramento
coletivo. E por favor escondam os cadáveres.
Não paravam de dizer ao delirante Daniel que mesmo numa grande selva
urbana apodrecida como Miami era preciso tomar muito cuidado com os restos de
uma refeição.
Ah, Miami. Eu podia ouvir novamente o rugido baixo de tantos humanos
desesperados; o resfolegar de todas aquelas máquinas, grandes e pequenas.
Antes eu deixava suas vozes me dominarem, deitado imóvel no sofá. Não me era
impossível dirigir esse poder; escolher e focalizar, amplificar um coro inteiro de
sons diferentes. No entanto abstinha-me, incapaz ainda de usá-lo realmente com
convicção, assim como não conseguia usar minha- nova força.
Ah, mas adorava estar perto dessa cidade. Adorava sua fragilidade e seu
encanto, os velhos hotéis caindo aos pedaços e suas torres iluminadas; seus
ventos quentes; sua flagrante decadência. Agora eu escutava aquela eterna
música urbana, um murmúrio baixo e latejante.
— Então por que não vai até lá? Marius.
Ergui os olhos do computador — lentamente, só para irritá-lo um pouco,
embora ele fosse o mais paciente dos imortais.
Estava parado contra a moldura da porta do terraço, braços cruzados, um
tornozelo cruzado sobre o outro. As luzes lá fora atrás dele. No mundo antigo
houvera algo assim? O espetáculo de uma cidade eletrificada, densa de torres
brilhando como estreitas grelhas de um fogão a gás.
Ele cortara os cabelos e usava roupas do século XX, simples, porém
elegantes: paletó e calças de seda cinzenta, e dessa vez o vermelho — pois
sempre havia algo vermelho — estava na camisa escura de gola alta.
— Quero que largue este livro e venha se juntar a nós — falou. — Você
está trancado aqui há mais de um mês.
— De vez em quando saio — respondi. Gostava de olhar para ele, para o
azul-neon de seus olhos.
— Este livro. . . qual é o seu propósito? — perguntou.
— Pode me dizer apenas isto?
Não respondi. Ele insistiu mais um pouco, o tom sempre delicado.
— As canções e a autobiografia não foram suficientes?
Tentei descobrir o que o fazia realmente parecer tão amável. Talvez
fossem as minúsculas rugas que ainda apareciam em volta dos olhos, as
pequenas pregas na carne que iam e vinham quando ele falava.
Os grandes olhos, parecidos com os de Khayman, tinham um efeito
atordoante.
Olhei novamente para a tela do computador, a imagem eletrônica da
linguagem. Quase pronto. E todos eles sabiam; sempre souberam. Por isso
ofereceram tantas informações; batiam, entravam, conversavam, iam embora.
— Então por que falar sobre isto? — perguntei. — Quero fazer o registro
do que aconteceu. Você sabia disso quando me contou como tinha sido.
— Sim, mas para quem este registro está sendo feito?
Pensei novamente nos fãs na platéia; na fama; e então naqueles instantes
medonhos ao lado dela, nas aldeias, quando eu fora um deus sem nome. De
repente senti frio, apesar do calor, da brisa que vinha do mar. Ela acertara ao nos
chamar de egoístas e ambiciosos? Quando dissera que era por egoísmo que
queríamos que o mundo permanecesse igual?
— Você sabe a resposta a esta pergunta — ele falou. Aproximou-se e
colocou a mão nas costas da minha cadeira.
— Era um sonho tolo, não era? — perguntei. Doía dizer isso. — Nunca
poderia ser realizado, nem mesmo se a proclamássemos deusa e obedecêssemos
a todas as suas ordens.
— Era loucura — ele respondeu. — Ela seria destruída mais depressa do
que poderia imaginar.
Silêncio.
— O mundo não a quereria — acrescentou. — Foi isto que ela jamais  conseguiu compreender.
— Acho que no final ela soube. Não havia espaço para ela, não havia
modo de ter algum valor e ser a coisa que era. Soube disso quando olhou dentro
de nossos olhos e viu ali a muralha que ela nunca conseguiria derrubar. Tinha
planejado cuidadosamente suas aparições, escolhendo lugares tão primitivos e
imutáveis quanto ela própria.
Ele assentiu.
— Como eu disse, você sabe as respostas às suas perguntas. Então por
que continua a perguntar? Por que se tranca aqui com a sua dor?
Não falei coisa alguma. Tornei a ver os olhos dela.
Por que você não pode acreditar em mim?
— Já me perdoou por tudo? — perguntei de repente.
— Você não teve culpa — ele respondeu. — Ela estava esperando,
escutando. Mais cedo ou mais tarde alguma coisa lhe teria despertado a vontade.
O perigo sempre esteve lá. Foi tão acidental quanto o início, na realidade, que ela
tenha despertado naquele momento. — Ele suspirou. Mostrava amargura
novamente, como nas primeiras noites, quando ele também sofrerá. — Sempre
tive consciência do perigo — murmurou. — Talvez quisesse acreditar que ela era
uma deusa... até ela despertar. Até ela falar comigo. Até sorrir.
Ele estava novamente distante, pensando naquele momento antes de o
gelo desmoronar e o prender durante tanto tempo.
Afastou-se devagar, hesitante, e então saiu para o terraço e olhou para a
praia. Movia-se de um modo muito casual. Os antigos também teriam descansado
assim os cotovelos em balaustradas de pedra?
Levantei-me e fui atrás dele. Olhei para a grande extensão de água negra.
Para o reflexo tremeluzente do horizonte. Olhei para ele.
— Sabe o que é não carregar esse fardo? — perguntou ele baixinho. —
Saber agora pela primeira vez que estou livre?
Não respondi. Mas certamente eu podia senti-lo. No entanto tinha medo
por ele, medo talvez de que aquilo tivesse sido uma âncora, como a Grande Família era a âncora de Maharet.
— Não — disse ele depressa, sacudindo a cabeça. — É como se uma
maldição tivesse acabado. Acordo, penso que tenho que descer ao santuário,
queimar incenso, trazer flores, parar diante deles e falar com eles, tentar
consolá-los se estão sofrendo por dentro. Então me lembro que eles não existem
mais. Está acabado, terminado. Sou livre para ir aonde quiser e fazer o que quiser.
— Silenciou, refletindo, olhando para as luzes. — E você? Por que não está livre
também? Gostaria de compreendê-lo.
— Você me compreende. Sempre me compreendeu — falei. Dei de
ombros.
— Você está ardendo de insatisfação. E não podemos ajudá-lo, podemos?
É o amor deles que você quer. — Fez um gesto em direção à cidade.
— Vocês me ajudam — respondi. — Todos vocês. Não consigo pensar
em deixá-los, pelo menos por muito tempo. Mas sabe, quando eu estava naquele
palco em São Francisco...
Não terminei. De que adiantava dizer aquilo, se ele não sabia? Fora tudo
que eu sempre desejara, até que o grande redemoinho desceu e me carregou.
— Mesmo que nunca tenham acreditado em você? — ele quis saber. —
Pensavam que você era apenas um bom cantor. Um autor de um bom enredo.
— Sabiam meu nome! — retruquei. — Era a minha voz que ouviam. Era a
mim que viam lá no palco.
Ele assentiu.
— Daí o livro, A rainha dos condenados — falou.
Não respondi.
— Desça conosco. Deixe-nos tentar fazer-lhe companhia. Converse
conosco sobre o que aconteceu.
— Vocês viram o que aconteceu.
Senti de repente uma certa confusão. Uma curiosidade que ele relutava
em revelar. Ainda estava olhando para mim.
Pensei em Gabrielle, no modo como ela começava a me fazer perguntas e
depois se interrompia. Então entendi. Ora, eu tinha sido tolo em não perceber
antes. Eles queriam saber quais poderes ela me dera; queriam saber até que ponto o sangue dela me afetara; e todo esse tempo eu guardara segredo dessas
coisas. Guardei segredo agora. Juntamente com a imagem daqueles cadáveres
espalhados pelo templo de Azim; juntamente com a lembrança do êxtase que eu
sentira quando matara todos os homens no meu caminho. E, junto com esses,
outro momento horrendo e inesquecível: a morte dela, quando eu deixei de usar
esses poderes para ajudá-la!
E agora começava de novo, aquela obsessão com o final. Ela teria me
visto deitado ali tão perto de si? Teria percebido minha recusa em ajudá-la? Ou
sua alma partira ao primeiro golpe?
Marius olhou para a água, para os barquinhos que corriam para o
ancoradouro ao sul. Estava pensando em quantos séculos ele levara para adquirir
os poderes que agora possuía. O sangue dela por si só não fizera isso. Só depois
de mil anos ele conseguira elevar-se em direção às nuvens como se fosse uma
delas, solto, sem medo. Agora estava pensando em como essas coisas variam de
um imortal para outro; ninguém sabe os poderes que estão trancados dentro de
outro; ninguém sabe, talvez, quais poderes estão trancados dentro de si mesmo.
Tudo muito delicado; mas eu não queria confiar nele nem em qualquer
outra pessoa por enquanto.
— Escute, deixe-me chorar só mais um pouco — falei. — Deixe-me criar
aqui minhas imagens sombrias e escrever as palavras para os amigos. Então mais
tarde irei até vocês, irei juntar-me a vocês. Talvez até obedeça às regras. Algumas
delas, pelo menos, quem sabe? Aliás, que é que vão fazer se eu não quiser
obedecer? Já não lhe perguntei isto?
Ele ficou obviamente espantado.
— Você é uma criatura incrível! — exclamou. — Você me fez pensar na
velha história sobre Alexandre, o Grande. Ele chorou quando não havia mais
mundos a conquistar. Você vai chorar quando não houver mais regras a
desobedecer?
— Ah, mas sempre há regras a desobedecer. Ele riu.
— Queime o livro.
— Não.
Olhamos um para o outro durante um instante; então abracei-o,
fortemente, com carinho, e sorri. Não sabia por que fizera aquilo, mas ele era tão
paciente e tão zeloso, e acontecera nele uma mudança profunda, como
acontecera em todos nós — mas com ele era tão triste e dolorosa quanto tinha
sido comigo.
Tinha a ver com toda a luta entre o bem e o mal, que ele compreendia
exatamente como eu, porque fora ele quem me ensinara, anos antes. Fora ele
quem me explicara que devemos passar a vida lutando com essas questões, que
a solução simples não era o que queríamos, mas o que devíamos temer sempre.
Abracei-o também porque o amava e queria estar perto dele, não queria
que ele saísse agora, zangado ou decepcionado comigo.
— Você vai obedecer, não vai? — ele perguntou de repente. Uma mistura
de ameaça e sarcasmo. Talvez um pouco de afeto também.
— Claro! — Tornei a dar de ombros. — Quais são as regras, afinal? Já me
esqueci. Ah, não fazermos novos vampiros, não desaparecermos sem aviso, não
deixarmos evidências de morte.
— Você é um travesso, sabia, Lestat? Um moleque.
— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. — Fechei a mão e toquei de leve
seu braço. — Aquela sua pintura, A tentação de Amadeo, na cripta da
Talamasca...
— Sim?
— Você não gostaria de tê-la de volta?
— Deuses, não! Na verdade é uma coisa horrível. Meu período negro,
pode-se dizer. Mas gostaria que a retirassem daquele maldito porão. Que a
pendurassem na sala, entende? Em algum lugar decente.
De repente ele ficou sério. Cheio de suspeitas.
— Lestat! — exclamou rispidamente.
— Sim, Marius?
— Deixe a Talamasca em paz!
— Naturalmente! — Tornei a dar de ombros. Tornei a I sorrir. Por que não?
— Estou falando sério, Lestat. Muito sério. Não se meta com a Talamasca.
Nós nos entendemos, você e eu, não é?
— Marius, você é notavelmente fácil de se entender. Ouviu isso? O relógio
está batendo a meia-noite. Sempre dou um passeio pela Ilha da Noite a esta hora.
Quer vir?
Não esperei a resposta. Quando passei pela porta, ouvi-o soltar um
daqueles deliciosos suspiros de paciência.
Meia-noite. A Ilha da Noite cantava. Caminhei pela galeria apinhada:
jaqueta de veludo, camiseta branca, rosto semi-encoberto por gigantescos óculos
escuros, mãos enfiadas nos bolsos dos jeans. Observei os compradores ávidos
entrando pelas portas abertas, examinando pilhas de malas brilhantes, camisas de
seda embrulhadas em plástico, um esguio manequim negro vestido de mink.
Junto ao chafariz, com suas plumas dançantes de miríades de gotinhas,
uma senhora idosa, recurvada, sentada num banco, segurava na mão trêmula
uma xícara de papel cheia de café fumegante. Era-lhe difícil levá-la aos lábios.
Quando lhe sorri ao passar, ela disse em voz vacilante:
— Quando a gente é velha, não precisa mais dormir...
Uma música suave e adocicada vinha de um bar elegante. Os jovens
valentões vagavam pela loja de vídeo -7- desejo de sangue! Os sons estridentes e
as luzes da galeria de videogames morreram quando eu desviei o olhar. Pela
porta do restaurante francês vislumbrei o gesto sedutor de uma mulher erguendo
uma taça de champanhe; risos abafados. O teatro estava cheio de gigantes
brancos e negros falando francês.
Uma jovem passou por mim; pele morena, quadris voluptuosos, lábios
carnudos. O desejo de sangue cresceu. Continuei andando, forçando-o de volta à
sua jaula. Não preciso do sangue. Agora sou tão forte quanto os antigos. Mas
chegava a sentir o gosto. Olhei para ela, vi-a sentada no banco de pedra, os
joelhos nus sobressaindo da saia curta e apertada, olhos fixos em mim.
Ah, Marius tinha razão sobre isso; tinha razão sobre tudo. Eu estava
ardendo de insatisfação, ardendo de solidão. Tive vontade de arrancá-la daquele
banco: Sabe o que sou? Não, não escolha o outro modo de ser; não a atraia para fora daqui, não faça isto; não a leve para a areia branca, longe das luzes da
galeria, onde os rochedos são perigosos e as ondas estão quebrando
violentamente na pequena gruta.
Pensei no que ela nos dissera, sobre nosso egoísmo, nossa cobiça! Sabor
de sangue em minha língua. Alguém vai morrer se eu continuar aqui.
Final do corredor. Coloco minha chave na porta de aço entre a loja de
tapetes chineses feitos por garotinhas e a tabacaria cujo dono dormia agora entre
os cachimbos holandeses, uma revista sobre o rosto.
Um corredor silencioso nas entranhas da casa.
Um deles estava tocando piano. Fiquei longo tempo escutando. Pandora,
e a música como sempre tinha um brilho escuro e doce, mas era mais que nunca
como um início interminável — um tema sempre crescendo até um clímax que
nunca chegava.
Subi a escada e entrei na sala. Ah, dá para ver que esta é uma casa de
vampiros; quem mais viveria à luz das estrelas e do resplendor de algumas velas?
Brilho de mármore e veludo. O choque de Miami lá fora, onde as luzes nunca se
apagam.
Armand ainda está jogando xadrez com Khayman, e perdendo. Daniel
deitado, fones nos ouvidos, escutando Bach, de vez em quando olhando de
relance para o tabuleiro preto e branco para ver se alguma peça foi movida.
No terraço, contemplando o mar, polegares enganchados nos bolsos
traseiros, estava Gabrielle. Fui até ela, beijei-lhe o rosto e olhei dentro de seus
olhos; quando finalmente ganhei o sorrisinho de que necessitava, virei-me e voltei
para dentro da casa.
Marius na poltrona de couro preto lendo o jornal, dobrando-o como um
cavalheiro faria num clube.
— Louis foi embora — disse, sem erguer os olhos do jornal.
— Que quer dizer?
— Foi para Nova Orleães — disse Armand sem erguer os olhos do
tabuleiro. — Para o apartamento que vocês tinham lá. Onde Jesse viu Claudia.
— O avião está esperando — Marius informou, olhos ainda no jornal.
— Meu empregado pode levá-lo à pista de pouso — Armand completou,
olhos ainda no tabuleiro.
— Que negócio é este? Por que vocês dois estão sendo tão solícitos? Por
que eu devia ir buscar Louis?
— Acho que você devia trazê-lo de volta — Marius declarou. — Não é
bom que ele fique naquele velho apartamento
Nova Orleães.
— Acho que você devia sair e fazer alguma coisa — disse Armand. Está
entocado aqui há tempo demais.
— Ah, já estou vendo como esta comunidade vai ser: conselhos de todos
os lados, e todo mundo observando todo mundo pelo canto do olho. E por que
deixaram Louis ir para Nova Orleães? Não podiam tê-lo impedido?
Pousei em Nova Orleães às duas horas. Deixei a limusine na Praça
Jackson.
Tudo estava tão limpo! Com as novas pedras no pavimento, e as
correntes nos portões, imaginem, para que os vagabundos não possam dormir no
gramado da praça como faziam há duzentos anos. E os turistas enchendo o Café
du Monde onde antes havia as tavernas da beira do rio, aqueles maravilhosos
lugares sinistros onde a caçada era irresistível e as mulheres tão duras quanto os
homens.
Mas eu amava aquele lugar agora, como sempre o amaria. As cores eram
as mesmas. E mesmo naquele frio intenso de janeiro havia o velho sabor tropical,
algo que tinha a ver com as calçadas lisas, os prédios baixos, o céu sempre em
movimento e os telhados pontudos que agora brilhavam com uma pancada de
chuva gelada.
Caminhei lentamente, afastando-me do rio, deixando as lembranças
subirem como se das calçadas, ouvindo a música estridente e metálica da Rua
Bourbon, e depois entrando na escuridão silenciosa e úmida da Rua Royale.
Quantas vezes eu fizera este caminho nos velhos tempos, voltando da
beira do rio ou da ópera, ou do teatro, e parando aqui mesmo, neste exato lugar,
para inserir minha chave no portão das carruagens?
Ah, a casa onde vivi o tempo de uma vida humana, a casa onde quase
morri duas vezes!
Alguém lá em cima no velho apartamento. Alguém que caminha
maciamente, mas faz as tábuas estalarem.
A lojinha do térreo estava arrumada e escura atrás de suas vitrines
gradeadas; objetos de louça, bonecas, leques de renda. Olhei para a sacada do
andar superior, com sua balaustrada de grade; podia imaginar Claudia ali, na
ponta dos pés, olhando para mim aqui embaixo, os dedinhos agarrados à grade.
Cabelos dourados caindo pelos ombros, listras compridas da fita roxa. Minha
pequena e linda imortal de seis anos de idade! Lestat, onde você andou?
E era isso que ele estava fazendo, não era? Imaginando coisas assim.
O silêncio era total; isto é, se não fossem os televisores tagarelando atrás
das persianas verdes e das velhas paredes cobertas de hera; e o ruído estridente
da Rua Bourbon; um homem e uma mulher brigando nas entranhas de uma casa
no outro lado da rua.
Mas não havia pessoa alguma à vista; apenas as calçadas brilhantes e as
lojas fechadas; e os carros grandes e desajeitados estacionados junto ao meio-fio,
a chuva caindo sem ruído em seus tetos curvos.
Ninguém para me ver caminhar para longe e depois dar o salto felino,
como antigamente, até a sacada, caindo silenciosamente nas tábuas do assoalho.
Olhei para dentro através da vidraça suja das portas.
Vazio. Paredes marcadas, como Jesse as deixara. Uma tábua pregada,
como se para impedir que alguém tentasse arrombar; cheiro de madeira queimada,
depois de tantos anos!
Puxei silenciosamente a tábua; mas agora havia a fechadura do outro lado.
Poderia usar meu novo poder? Poderia fazê-la abrir-se? Por que doía tanto fazer
isso? Pensar nela, pensar que naquele último momento eu poderia tê-la ajudado;
poderia ter ajudado a cabeça e o corpo a reunirem-se novamente, mesmo que ela
pretendesse destruir-me, mesmo que ela não tenha chamado o meu nome...
Olhei para a tranca. Gire, abra-se. E com lágrimas nos olhos ouvi o metal
estalar e vi a tranca mover-se. Um pequeno espasmo no cérebro enquanto eu mantinha os olhos fixos nela; e então a porta saltou de sua moldura empenada, as
dobradiças gemendo, como se um vento lá dentro a tivesse empurrado.
Ele estava no corredor, olhando pela porta do quarto de Claudia.
O casaco era talvez um pouco mais curto, um pouco menos rodado que
aqueles antigos paletós de fraque; mas ele parecia-se tanto com ele mesmo no
velho século que senti a dor em mim aumentar insuportavelmente. Por um
momento não consegui mover-me. Ele podia ser um fantasma, os cabelos negros
despenteado s como sempre estavam nos velhos tempos, os olhos verdes cheios
de melancolia e espanto, os braços caídos dos lados.
Certamente não planejara combinar tão bem com o antigo contexto. No
entanto, era mesmo um fantasma nesse apartamento, onde Jesse ficara tão
amedrontada, onde vislumbrara, em clarões aterradores, a velha atmosfera que eu
jamais esqueceria.
Sessenta anos aqui, a família profana. Sessenta anos de  Louis, Claudia, Lestat.
Eu poderia ouvir o som do cravo, se tentasse? Claudia tocando Haydn; e
os pássaros cantando, porque esse som sempre os excitava; e a música vibrando
nas bolhas de cristal que pendiam das cúpulas de vidro pintado das lamparinas a
óleo, e até nos mobiles pendurados na porta dos fundos, diante dos degraus de
ferro.
Claudia. Um rosto para um medalhão; ou um pequeno retrato oval feito em
porcelana e guardado numa gaveta com um cacho de seus cabelos dourados.
Mas como ela detestaria essa imagem, essa imagem perversa!
Claudia, que enfiou uma faca no meu coração e torceu-a, e ficou
observando o sangue manchar minha camisa.
Morra, pai. Vou colocá-lo em seu caixão para sempre.
Vou matá-lo primeiro, meu príncipe.
Vi a pequena criança mortal, deitada ali nos lençóis sujos; cheiro de doença. Vi a Rainha de olhos negros, imóvel em seu trono. E eu beijara ambas, as
Belas Adormecidas! Claudia, Claudia, reviva agora, Claudia... Isto mesmo, querida,
você tem que bebê-lo para ficar boa.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora