capítulo 13- LESTAT: ESTE É O MEU CORPO, ESTE É O MEU SANGUE

18 1 0
                                    


Estava tudo quieto quando acordei, e o ar era limpo e quente, com cheiro
de mar.
Eu estava agora inteiramente confuso quanto ao tempo. Sabia, pelo meu
atordoamento, que não dormira um dia inteiro. E tampouco estava em lugar
protegido.
Tínhamos seguido a noite em volta da terra, talvez, ou melhor,
movendo-nos ao acaso dentro dela, pois Akasha talvez não tivesse necessidade
de dormir.
Eu tinha, era óbvio. Mas estava curioso demais para querer dormir. E,
francamente, infeliz demais. Além disso, tinha sonhado com sangue humano.
Encontrava-me num quarto espaçoso, com terraços para o oeste e para o
norte. Podia sentir o cheiro do mar e ouvi-lo, mas o ar era perfumado e bastante
parado. Aos poucos estudei o aposento.
Luxuosa mobília antiga, provavelmente italiana - delicada e enfeitada -,
misturava-se a luxos modernos em toda parte. A cama onde eu estava deitado era
dourada e tinha um dossel de onde pendiam cortinas de gaze; almofadas de
plumas e lençóis de seda. Um espesso tapete branco escondia o assoalho antigo.
Havia uma penteadeira atulhada de objetos de prata e cristal, e um
curioso telefone branco de modelo antiquado. Cadeiras de veludo; um monstruoso
televisor e estantes com equipamento de som estereofônico; e por toda parte
mesinhas envernizadas, cobertas de jornais, cinzeiros, garrafas de vinho.
Pessoas haviam morado ali até uma hora antes; mas agora essa gente
estava morta. Na verdade, havia muitos mortos naquela ilha. E enquanto eu ficava
mais um instante deitado ali, desfrutando da beleza que me cercava, vi, em
pensamento, a aldeia onde estivéramos antes. Vi a imundície, os telhados de lata,
a lama. E agora eu estava deitado naquela mansão.
E havia morte ali também. Nós a trouxéramos.
Levantei-me da cama, saí para o terraço e olhei por cima do parapeito de
pedra para a praia branca. Não se via terra no horizonte; apenas o mar ondulado.
A espuma rendada das ondas brilhava ao luar. E eu estava num velho palazzo
gasto pelo tempo, provavelmente construído quatro séculos antes, enfeitado de
urnas e querubins e coberto de estuque manchado - um belo lugar. A luz elétrica
brilhava através das venezianas verdes de outros aposentos. Aninhada num
terraço abaixo de onde eu estava havia uma pequena piscina.
E à frente, onde a praia curvava-se para a esquerda, vi outra habitação
antiga e bela aconchegada dentro dos rochedos. Tinha morrido gente ali também.
Aquela era uma ilha grega, eu tinha certeza; aquele era o Mediterrâneo.
Quando prestei atenção, ouvi gritos vindos da terra atrás de mim, do outro
lado do monte. Homens sendo assassinados. Apoiei-me à moldura da porta.
Tentei impedir que meu coração disparasse.
Assaltou-me uma lembrança súbita do massacre no templo de Azim - um
vislumbre de mim mesmo atravessando o rebanho humano, usando a lâmina
invisível para penetrar na carne sólida. Sede. Ou era apenas luxúria? Vi
novamente aqueles corpos retorcidos no combate final, rostos sujos de sangue.
Não fui eu, eu não poderia... Mas tinha sido eu.
E agora sentia o cheiro de fogo, como aquelas fogueiras no pátio de Azim
onde os corpos eram incinerados. Aquele cheiro me dava náuseas. Voltei-me
novamente em direção ao mar e respirei fundo. Se eu deixasse as vozes viriam,
vozes de toda a ilha, e de outras ilhas, e do continente próximo, também.
Eu podia sentir o som pairando por ali, esperando; tinha que fazê-lo
recuar.
Então ouvi ruídos mais próximos. Mulheres nessa velha mansão. Estavam
se aproximando do quarto. Voltei-me bem a tempo de ver as portas duplas se
abrirem e as mulheres entrarem, usando modestas saias e blusas, com lenços nos
cabelos.
Era um grupo variado, de todas as idades, inclusive belas jovens e
matronas mais idosas, e até mesmo algumas criaturas frágeis, de pele muito enrugada e cabelos brancos como neve. Traziam consigo jarros de flores e os
colocavam por toda parte. E então uma das mulheres, uma delicada coisinha
jovem com um lindo e longo pescoço, adiantou-se com encantadora graça natural
e pôs-se a acender as muitas lâmpadas.
O cheiro do sangue delas! Como podia ser tão forte e tentador, se eu não
sentia sede?
De repente todas se reuniram no centro do quarto e me encararam; era
como se tivessem entrado em transe. Eu estava parado no terraço, simplesmente
olhando para elas; então percebi o que elas viam. Minha fantasia rasgada - os
farrapos de vampiro: paletó preto, camisa branca e a capa - e toda manchada de
sangue.
E minha pele, ela tinha mudado perceptivelmente. Eu estava mais branco,
mais assustador de se ver, sem dúvida. E meus olhos deviam estar mais
brilhantes; ou então estava sendo enganado pela reação primitiva delas. Quando
tinham visto um de nós antes?
De qualquer maneira... tudo aquilo parecia uma espécie de sonho,
aquelas mulheres imóveis com seus olhos negros e seus semblantes carregados
- até mesmo as gordinhas tinham rostos emaciados - reunidas ali a me encarar
e caindo de joelhos, uma a uma. Ah, de joelhos! Suspirei. Tinham aquela
expressão alucinada de pessoas que foram arrebatadas da vida comum; estavam
contemplando uma visão, e a ironia era que para mim elas é que pareciam uma
visão.
Li seus pensamentos com relutância.
Tinham visto Nossa Senhora. Era isso que ela era ali: a Madona, a Virgem.
Viera às aldeias e ordenara que matassem seus filhos e seus maridos; até os
bebês tinham sido chacinados. E elas obedeceram, ou testemunharam essas
coisas sendo feitas; e agora estavam dominadas por uma onda de fé e alegria.
Eram testemunhas de milagres; tinham falado com Nossa Senhora em pessoa. E
ela era a Mãe arcana, a Mãe que sempre habitara as grutas dessa ilha, antes até
de Cristo; a Mãe cujas pequenas imagens nuas de vez em quando eram encontradas na terra.
Em nome dela tinham derrubado as colunas dos templos em ruínas que
os turistas vinham ver; tinham incendiado a única igreja da ilha, despedaçando
suas janelas com paus e pedras. Murais antigos tinham se queimado na igreja. As
colunas de mármore, partidas em pedaços, tinham caído no mar.
Quanto a mim, que era para elas? Não apenas um deus. Não apenas o
escolhido da Mãe Abençoada. Não, alguma coisa mais. Aquilo me deixava
perplexo, parado ali, encurralado pelos olhos delas, sentindo repulsa por suas
convicções, mas fascinado e temeroso.
Não por elas, é claro, mas por tudo que estava acontecendo. Aquela
deliciosa sensação de mortais olhando para mim, como quando eu estava no
palco. Mortais olhando para mim e sentindo meu poder depois de tantos anos
escondido; mortais vindo venerar-me. Mortais como todas aquelas pobres
criaturas caídas na trilha das montanhas. Mas eram devotos de Azim, não eram?
Tinham ido lá para morrer.
Pesadelo. Era preciso reverter aquilo, impedir; parar de aceitar qualquer
aspecto daquilo!
Quero dizer; eu poderia começar a acreditar que era realmente... Mas sei
o que sou, não sei? E essas mulheres são pobres ignorantes, para quem
televisores e telefones são milagres, essas mulheres para quem a mudança em si
é uma forma de milagre... E amanhã despertarão e verão o que fizeram!
Mas agora a sensação de paz nos dominou - às mulheres e a mim. O
aroma familiar das flores, o feitiço. Em silêncio, através do pensamento, as
mulheres estavam recebendo suas instruções.
Houve algum movimento; duas delas puseram-se de pé e entraram num
banheiro contíguo, um daqueles negócios feitos de mármore maciço que italianos
e gregos parecem adorar. A água quente jorrou e o vapor entrou no quarto pelas
portas abertas.
Outras mulheres dirigiram-se aos armários, em busca de roupas limpas.
Rico, fosse quem fosse, o pobre filho da puta que tinha sido dono daquele
pequeno palácio, o pobre filho da puta que deixara aquele cigarro no cinzeiro e as
marcas de gordura de seus dedos no telefone branco.
Outro par de mulheres veio em minha direção: queriam levar-me para o
banheiro. Não fiz coisa alguma. Senti-as tocando em mim - quentes dedos
humanos tocando em mim - e todo o choque e a excitação delas quando
sentiram a textura peculiar da minha carne. Aqueles toques me causavam um
arrepio forte e delicioso. Os olhos escuros eram lindos, a olharem para mim. Elas
me puxavam com suas mãos quentes; queriam que eu fosse com elas.
Está bem. Deixei que me levassem. Mármore branco, metais de ouro
trabalhado; o velho esplendor romano, com brilhantes frascos de sabonetes e
perfumes nas prateleiras de mármore. E a torrente de água quente na banheira,
com os jorros produzindo milhares de bolhas, tudo muito convidativo, ou teria sido
em qualquer outra ocasião.
Despiram minhas roupas. Uma sensação absolutamente fascinante. Só
tinham feito isso comigo, desde que eu era vivo, quando era muito pequeno.
Fiquei parado na nuvem de vapor da banheira, observando todas aquelas
mãozinhas morenas e sentindo meus pêlos arrepiarem-se por todo o corpo;
sentindo a adoração nos olhos das mulheres.
Através do vapor olhei-me no espelho - na verdade uma parede de
espelho - e vi-me pela primeira vez desde que se iniciara aquela sinistra odisséia.
Por um instante não consegui suportar o choque. Este não pode ser eu.
Estava muito mais pálido do que imaginara. Empurrei delicadamente as
mulheres e fui até a parede de espelho. Minha pele tinha um brilho fosforescente e
meus olhos estavam ainda mais brilhantes, reunindo todas as cores do espectro e
misturando-as com uma luz gelada. Mas não me parecia com Marius. Não me
parecia com Akasha. As rugas do meu rosto ainda estavam lá!
Em outras palavras: eu fora modificado pelo sangue de Akasha, mas
ainda não me tornara liso. Mantinha minha expressão humana. E o mais estranho
era que o contraste tornava essas rugas ainda mais visíveis. Até mesmo as
minúsculas ruguinhas em meus dedos estavam mais nítidas que antes.
Mas que consolo era esse, se eu estava mais que nunca diferente,
espantoso, distante da aparência de um ser humano? De certa maneira, isso era
pior que aquele primeiro momento duzentos anos antes, quando mais ou menos uma hora depois da minha morte eu me olhara num espelho e tentara encontrar
minha humanidade naquilo que via. E agora sentia o mesmo medo.
Estudei meu reflexo. Meu tronco era como um torso de mármore num
museu, igualmente branco. E o órgão, o órgão de que necessitamos, como se
estivesse pronto para aquilo que ele nunca mais saberia como ou teria vontade de
fazer - mármore. Príapo no portão.
Tonto, vi as mulheres se aproximarem. Lindas gargantas, seios, membros
úmidos e escuros. Observei-as tocando em mim de novo. Para elas eu era mesmo
lindo.
O cheiro do sangue delas era mais forte ali, em meio ao vapor. No entanto
eu não estava realmente sedento. Akasha me fartara, mas o sangue estava me
atormentando um pouco. Não. Muito.
Eu queria o sangue delas - e não tinha coisa alguma a ver com sede.
Queria como um homem pode querer um vinho bom, embora tenha bebido água.
Isso multiplicado por vinte, trinta, cem. Na verdade, era um desejo tão poderoso
que eu podia imaginar-me tomando todas elas, rasgando suas gargantas macias
uma após outra e deixando os corpos caídos no chão.
Não, isso não vai acontecer, raciocinei. E a qualidade aguçada e perigosa
daquele desejo me dava vontade de chorar. Que fizeram comigo? Mas eu sabia,
não sabia? Sabia que agora era tão forte que vinte homens não conseguiriam
dominar-me. E o que eu podia fazer com eles... Podia sair pelo teto, se quisesse,
e sumir dali. Podia fazer coisas com que nunca sonhara. Provavelmente tinha
agora o dom do fogo; podia queimar coisas como ela fazia, como Marius disse que
podia fazer. Era só uma questão de força; só isso. E estonteantes graus de
consciência, de aceitação...
As mulheres me beijavam. Beijavam meus ombros. Uma sensaçãozinha
gostosa, a suave pressão dos lábios em minha pele. Não consegui reprimir um
sorriso, e suavemente abracei-as e beijei-as, acariciando seus pescocinhos
quentes e sentindo seus seios em meu peito. Estava inteiramente cercado por
aquelas criaturas maleáveis, rodeado por suculenta carne humana.
Entrei na banheira funda e deixei que me lavassem.
A água quente me molhava deliciosamente, limpando facilmente toda a sujeira que na realidade
nunca se agarra a nós, nunca penetra em nós. Olhei para o teto e deixei que
passassem água quente em meus cabelos.
Sim, extraordinariamente prazeroso, tudo aquilo. No entanto, nunca me
sentira tão solitário! Estava mergulhado naquelas sensações hipnóticas porque
não havia outra coisa que pudesse fazer.
Quando terminaram, escolhi os perfumes que queria e mandei que se
livrassem dos outros. Falei em francês, mas elas pareceram compreender. Então
vestiram-me com as roupas que escolhi entre as que me apresentaram. O dono
da casa gostava de camisas de linho feitas a mão, que eram apenas um
pouquinho grandes para mim. E gostava também de sapatos feitos a mão, que me
serviam razoavelmente.
Escolhi um terno de seda cinzenta, de trama muito fina e corte moderno. E
jóias de prata. O relógio de prata do homem, e suas abotoaduras, que tinham
pequenos diamantes incrustados. E até mesmo um minúsculo alfinete de
diamante para a lapela estreita do paletó. Mas eu me sentia estranho com aquelas
roupas; era como se pudesse sentir a superfície de minha própria pele e ao
mesmo tempo não senti-la. E então veio o déjà vu. Duzentos anos antes. As
velhas perguntas mortais. Por que diabos isto está acontecendo? Como posso
controlá-lo?
Durante um momento perguntei-me: seria possível não me importar com o
que acontecesse? Recuar e observá-los a todos como criaturas alienígenas,
coisas com as quais eu me alimentava? Eu fora cruelmente arrancado do mundo
deles! Onde estava a antiga amargura, a antiga desculpa para a crueldade sem
fim? Por que essa crueldade sempre escolhera coisas tão pequeninas? Não que
uma vida seja pequenina. Ah, não, nunca, vida nenhuma! Na verdade, aquele era
todo o problema. Por que eu, que podia matar com tanto abandono, recuava ante
a perspectiva de ver suas preciosas tradições destruídas?
Por que meu coração subia-me à garganta agora? Por que eu estava
chorando por dentro, como se eu próprio fosse alguma coisa moribunda?
Talvez um outro qualquer tivesse adorado aquilo; um imortal doente e sem consciência teria rido das visões dela, no entanto vestiria as roupagens de um
deus tão facilmente quanto eu entrara naquele banho perfumado.
Mas nada me daria essa liberdade, nada. As permissões dela nada
significavam; seu poder era apenas outro grau daquilo que nós todos possuíamos.
E o que nós todos possuíamos nunca tornara essa luta simples; tornara-a uma
agonia, não importava quantas vezes tivéssemos ganho ou perdido.
Não poderia acontecer, aquela dominação de um século por uma vontade;
aquele plano tinha que ser frustrado de alguma forma, e se eu mantivesse a calma
encontraria os meios.
No entanto, os mortais infligiram muitos horrores uns aos outros; hordas
de bárbaros tinham marcado continentes inteiros, destruindo tudo em seu caminho.
Seria ela meramente humana em seus delírios de conquista e domínio? Não
importava; tinha meios inumanos de ver seus sonhos tornados realidade!
Eu começaria a chorar novamente se não parasse de procurar uma
solução; e aquelas pobres e ternas criaturas à minha volta ficariam ainda mais
magoadas e confusas que antes.
Quando levei as mãos ao rosto, elas não se afastaram. Estavam a
escovar-me os cabelos. Arrepios desciam por minhas costas. E de repente o ruído
suave do sangue em suas veias ficou ensurdecedor.
Disse-lhes que queria ficar sozinho. Não conseguiria agüentar por mais
tempo a tentação. E poderia ter jurado que elas sabiam o que eu desejava.
Sabiam, e cediam. Pele escura e salgada bem perto de mim. Tentação demais.
Fosse como fosse, elas obedeceram instantaneamente, um pouco temerosas.
Saíram em silêncio, recuando como se não fosse apropriado dar-me as costas.
Olhei para o mostrador do relógio. Achei muito engraçado aquilo: eu
usando um relógio que marcava o tempo. E de repente fiquei com raiva. E então o
relógio estourou! O vidro partiu-se e tudo voou para fora do estojo de prata. A
correia quebrou e a coisa caiu do meu pulso. As pequenas peças brilhantes
perderam-se no tapete.
- Meu Deus! - exclamei.
No entanto, por que não, se eu conseguia romper uma artéria e explodir um coração? Mas a questão era controlar aquela coisa, dirigi-la, não deixar que
escapasse assim.
Ergui os olhos e escolhi um pequeno espelho ao acaso, que ficava numa
moldura prateada sobre a penteadeira. Pensei: Quebrar e ele explodiu em cacos
brilhantes. Na imobilidade eu ouvia os fragmentos batendo nas paredes e no
tampo da penteadeira.
Bem, aquilo era útil, muito mais útil que a capacidade de matar. Fixei os
olhos no telefone sobre a escrivaninha. Concentrei-me, deixei que o poder se
juntasse, depois conscientemente enfraqueci-o e dirigi-o para empurrar o telefone
devagar por cima do vidro que cobria o mármore. Sim. Certo. Os frascos
tombavam quando o telefone batia neles. Fiz com que parassem; mas não
consegui endireitá-los. Ah, mas espere um pouco! Imaginei uma mão
endireitando-os. E certamente o poder não estava literalmente obedecendo àquela
imagem, mas eu a usava para organizar o poder. Endireitei todos os frascos;
recuperei o que tinha caído no chão e coloquei-o de volta no lugar.
Estava tremendo um pouco. Sentei-me na cama para pensar, mas estava
curioso demais para isso. O importante era entender que se tratava de uma coisa
física, uma energia. E não mais que uma extensão dos poderes que eu possuía
antes. Por exemplo: mesmo no início, nas primeiras semanas depois que Magnus
me fez, eu conseguira certa vez derrubar alguém - meu amado Nicholas, com
quem estava discutindo - como se o tivesse atingido com um punho invisível.
Estava furioso, na ocasião; mais tarde não consegui repetir aquele truque. Mas
era o mesmo poder, o mesmo dom verificável e mensurável.
- Você não é deus - afirmei. Mas esse aumento de poder, essa nova
dimensão, como dizer tão acuradamente neste século... Hummmmm...
Olhando para o teto, decidi que queria erguer-me lentamente e tocá-lo,
passar as mãos pelo friso de gesso que corria em volta do fio do lustre. Senti
náuseas, e então percebi que estava flutuando logo abaixo do teto. E minha mão,
ora, parecia que minha mão atravessara o gesso! Baixei um pouco e olhei para o
quarto abaixo de mim.
Meu Deus, eu tinha feito aquilo sem levar o corpo comigo! Ainda estava sentado ali na beirada da cama. Estava olhando para mim mesmo por cima da
minha própria cabeça! Eu - pelo menos o meu corpo - estava ali sentado,
imóvel, sonhador, olhando. Voltar. E lá estava eu novamente, graças a Deus, e
meu corpo estava bem. Olhei para o teto, tentando entender aquela coisa toda.
Bem; sabia o que era aquela coisa toda. A própria Akasha me contara que
seu espírito podia viajar fora do corpo. E os mortais sempre fizeram essas coisas,
ou diziam fazer. Os mortais escreviam sobre essas viagens invisíveis desde os
tempos mais antigos.
Eu quase fizera isso quando tentara ver dentro do templo de Azim, ido lá
para ver, e ela me impedira porque quando deixei o corpo ele começou a cair. E
muito antes disso, houve algumas vezes... Mas em geral eu nunca acreditara em
todas as histórias dos mortais.
Agora sabia que podia fazer isso também. Mas certamente não queria
fazê-lo acidentalmente. Tomei a decisão de subir até o teto de novo, mas dessa
vez com meu corpo, e isso aconteceu instantaneamente! Estávamos lá juntos,
pressionando o gesso, e dessa vez minha mão não o atravessou. Muito bem.
Voltei para baixo e decidi tentar a outra forma de novo. Agora só em
espírito. Veio a náusea, olhei para o meu corpo lá embaixo, e de repente saí
voando pelo telhado do palazzo. Estava viajando sobre o mar. No entanto, as
coisas pareciam diferentes e eu não tinha certeza se se tratava do céu de verdade,
do mar de verdade. Era mais como uma vaga concepção de ambos, e eu não
gostei nem um pouquinho disso. Não, obrigado! Vou voltar para casa! Ou devia
trazer meu corpo para mim? Tentei, mas nada aconteceu, e na verdade isso não
chegou a me surpreender. Era uma espécie de alucinação; eu não tinha realmente
deixado o corpo, e precisava aceitar esse fato.
E Baby Jenks, e as coisas lindas que Baby Jenks viu quando subiu? Tinha
sido alucinação? Eu nunca saberia, não era mesmo?
Voltar!
Sentado. Beirada da cama. Confortável. O quarto. Levantei-me e andei
por ali durante alguns minutos, apenas olhando as flores, a maneira estranha
como as pétalas brancas capturavam a luz da lâmpada e como as vermelhas pareciam escuras; e como a luz dourada refletia-se na superfície dos espelhos, e
todas as outras coisas lindas.
De repente era esmagadora a presença dos puros detalhes que me
cercavam, a extraordinária complexidade de um simples quarto.
Então praticamente caí na cadeira ao lado da cama. Recostei-me no
veludo e fiquei ouvindo meu coração batendo com força. Ficar invisível, deixar o
corpo, eu tinha odiado! Não faria de novo!
Então ouvi uma risada suave, baixa. Percebi que Akasha estava ali, em
algum lugar atrás de mim, talvez junto à penteadeira.
Senti uma onda de alegria ao ouvir sua voz, sentir sua presença. Na
realidade, fiquei surpreso com a força dessas sensações. Tinha vontade de vê-la,
mas não me movi imediatamente.
- Viajar fora do corpo é um poder que você compartilha com os mortais
- ela disse. - Fazer esse truquezinho de viajar sem o corpo o tempo todo.
- Sei disso - respondi melancolicamente. - Podem continuar fazendo.
Se eu puder viajar com meu corpo, é o que pretendo fazer.
Ela tornou a rir; um riso suave, acariciante, que eu ouvira em meus
sonhos.
- Nos tempos antigos os homens iam aos templos para isso. Bebiam as
poções que os sacerdotes lhes davam; era viajando nos céus que os homens
encontravam os grandes mistérios da vida e da morte.
- Sei - falei de novo. - Sempre pensei que estavam bêbados ou
doidões, como se diz hoje em dia.
- Você é uma aula de brutalidade - ela sussurrou. - Suas reações são
tão rápidas...
- Isto é ser brutal? - perguntei.
Tornei a sentir uma lufada dos incêndios que grassavam na ilha.
Nauseabundo. Meu Deus! E nós aqui conversando como se isso não estivesse
acontecendo, como se não tivéssemos invadido o mundo deles com estes
horrores...
- E voar com o corpo não o assusta? - ela quis saber.
Assusta, sim, você sabe disso - respondi. - Quando é que vou
descobrir meus limites? Posso me sentar aqui e mandar a morte para mortais a
qualquer distância?
- Não. Você vai descobrir seus limites mais cedo do que pensa. É como
qualquer outro mistério: na verdade não há mistério.
Ri. Por uma fração de segundo ouvi novamente as vozes, a onda
crescendo, e depois caindo até tornar-se um som realmente audível - gritos no
vento, gritos vindos das aldeias da ilha. Tinham queimado o pequeno museu com
as antigas estátuas gregas, os ícones e as pinturas bizantinas.
Toda aquela arte virando fumaça. A vida virando fumaça!
De repente precisei vê-la. Não consegui encontrá-la nos espelhos, pela
posição deles. Levantei-me.
Ela estava parada junto à penteadeira; e também mudara suas vestes, e o
penteado. Ainda mais puramente linda, no entanto intemporal como antes.
Segurava um pequeno espelho de mão e contemplava-se nele; mas parecia não
estar olhando para coisa alguma - estava ouvindo as vozes, e eu também podia
ouvi-las novamente.
Um arrepio me percorreu; ela se parecia como antigamente, congelada,
sentada no santuário.
Então pareceu despertar, olhar para o espelho novamente, e depois para
mim, ao deixá-lo de lado.
Os cabelos estavam soltos, as tranças tinham desaparecido. E agora as
ondas negras desciam livres pelos ombros, pesadas, brilhantes e convidando ao
beijo. O vestido era parecido com o antigo, como se as mulheres o tivessem feito
com a seda magenta escura que ela encontrara ali. Dava-lhe um leve rosado às
faces, e aos seios, apenas semi-encobertos pelas pregas soltas que iam até os
ombros, presas ali por pequenos broches de ouro.
Os colares que usava eram todos jóias modernas, mas a profusão fazia
parecerem arcaicos - pérolas, correntes de ouro, opalas e até mesmo rubis.
Contra o brilho de sua pele, todos aqueles enfeites pareciam irreais.
Mesclavam-se ao brilho geral da sua figura; eram como a luz em seus olhos, o brilho em seus lábios.
Era algo próprio para o mais luxuoso palácio da imaginação; algo ao
mesmo tempo sensual e divino. Senti desejo do seu sangue outra vez, o sangue
sem perfume e sem morte. Tive vontade de ir até ela, erguer a mão e tocar aquela
pele que parecia absolutamente impenetrável mas que se rompia de repente como
a mais frágil casca.
- Todos os homens da ilha estão mortos, não estão? - perguntei,
chocando a mim mesmo.
- Todos, menos dez. Havia setecentos nesta ilha. Sete serão poupados.
- E os outros três? - São para você.
Encarei-a: para mim? O desejo de sangue modificou-se um pouco,
reajustou-se, passou a incluir, além do dela, sangue humano - o tipo quente,
perfumado, o tipo que... Mas não havia uma necessidade física real. Eu ainda
podia chamar aquilo de sede, tecnicamente, mas na realidade era algo muito pior.
- Você não os quer? - ela perguntou, zombeteira, sorrindo para mim. -
Meu deus relutante, que foge ao dever! Sabe, todos esses anos em que eu o
escutava, muito antes de você fazer canções para mim, eu adorava ver você
pegar apenas os durões, os machos. Adorava que você caçasse ladrões e
assassinos e que gostasse de engolir inteiro o mal que havia neles. Onde está sua
coragem agora? Sua impulsividade? Sua disposição para mergulhar de cabeça?
- São perniciosas, essas vítimas que me esperam? Ela apertou os olhos
por um instante.
- Finalmente a covardia? - perguntou. - A grandeza do plano o
assusta? Pois com certeza matar não significa muito...
- Ah, mas você está errada - respondi. - Matar sempre significa
alguma coisa. Mas sim, a grandeza do plano me aterroriza. O caos, a total perda
de todo equilíbrio moral, significa tudo. Mas isso não é covardia, ou é?
Eu parecia muito calmo, seguro de mim. Não era verdade, e ela sabia.
- Então vou liberá-lo de qualquer obrigação de resistir - respondeu. -
Você não pode me impedir. Eu o amo, como lhe disse. Adoro olhar para você Fico cheia de felicidade. Mas você não pode me influenciar, tal idéia é ridícula.
Ficamos a nos encarar em silêncio. Eu tentava encontrar palavras para
dizer a mim mesmo como ela era linda, como parecia com as antigas pinturas
egípcias de princesas de tranças brilhantes cujos nomes estão perdidos para
sempre. Estava tentando entender por que meu coração doía só de olhar para ela;
no entanto não me importava com a sua beleza, mas sim com o que dizíamos um
para o outro.
- Por que escolheu este caminho? - perguntei.
- Você sabe por quê - ela respondeu com um sorriso paciente. - É o
melhor caminho. É o único caminho! É a visão clara, depois de séculos buscando
uma solução.
- Mas esta não pode ser a verdade, não consigo acreditar.
- Claro que pode. Acha que isso é só um impulso meu? Não tomo
minhas decisões como você faz, meu príncipe. Sua exuberância juvenil é algo que
admiro, mas possibilidades tão pequenas há muito desapareceram para mim.
Você pensa em termos de vidas, em termos de pequenas conquistas e prazeres
humanos. Eu passei milhares de anos pensando em planos para o mundo que
agora é meu. E não faltam evidências de que devo continuar. Não posso
transformar esta terra num jardim, não posso criar o Éden da imaginação
humana... a não ser que elimine os machos quase por completo.
- Você quer dizer matar quarenta por cento da população da terra?
Noventa por cento de todos os homens?
- Você nega que isto porá fim à guerra, ao estupro, à violência?
- Mas acontece que...
- Não. Responda à minha pergunta. Nega que isso porá fim à guerra, ao
estupro, à violência?
- Matar todo mundo poria fim a essas coisas!
- Não faça joguinhos comigo. Responda.
- Isso não é um jogo? O preço é inaceitável. É loucura, é genocídio, é
contra a natureza.
- Acalme-se. Nada do que diz é verdadeiro. Natural é aquilo que
simplesmente tem que ser feito. E acha que os povos desta terra não limitaram suas filhas mulheres no passado? Acha que não as mataram aos milhões, porque
queriam apenas filhos homens que pudessem ir para a guerra? Ah, você não pode
imaginar como essas coisas foram feitas. Então agora a mulher será escolhida em
vez do homem, e não haverá mais guerra. E os outros crimes cometidos por
homens contra mulheres? Se qualquer nação do mundo perpetrasse esses crimes
contra outra nação, não seria marcada para o extermínio? No entanto, noite e dia,
em toda a terra, esses crimes são cometidos sem cessar.
- Certo, é verdade. Sem dúvida é verdade. Mas a sua solução é melhor?
É inominável, o massacre de todos os machos! Certamente, se você quer
governar...
Mas até isso era impensável. Pensei nas antigas palavras de Marius, ditas
a mim há muito tempo, ainda na época das perucas empoadas e dos chinelos de
cetim: que a velha religião, o Cristianismo, estava morrendo, e talvez não surgisse
uma nova.
"Talvez uma coisa mais maravilhosa aconteça", Marius dissera. "O mundo
realmente avançará, deixará para trás todos os deuses e deusas, os demônios e
os anjos..."
Não era aquele realmente o destino deste mundo? O destino para o qual
ele caminhava sem nossa intervenção?
- Ah, você é um sonhador, minha coisa linda - ela disse bruscamente.
- Como escolhe suas ilusões! Olhe para os países orientais, onde as tribos do
deserto, agora ricas com o petróleo que puxaram da areia, matam-se aos milhares
em nome de Alá, seu deus! A religião não está morta nesta terra; nunca estará.
Você e Marius, que grandes jogadores de xadrez! Suas idéias nada mais são que
peças de xadrez. E vocês não conseguem enxergar além do tabuleiro onde as
colocam neste ou naquele padrão que combine com suas alminhas éticas.
- Está errada - respondi com raiva. - Talvez não a respeito de nós.
Nós não temos importância. Está errada nisto tudo que começou. Está errada!
- Não estou, não - ela retrucou. - E não há quem possa me impedir,
homem ou mulher. E vamos ver, pela primeira vez desde que o homem ergueu um
porrete para golpear seu irmão, o mundo que as mulheres fariam e o que as mulheres têm a ensinar aos homens. E só quando puderem ser ensinados é que
os homens terão permissão para andarem livres entre as mulheres.
- Deve haver outro meio! Pelos deuses, eu sou uma coisa defeituosa,
uma coisa fraca, uma coisa que não é melhor que a maioria dos homens que já
viveram. Não posso argumentar em favor da vida deles agora. Não conseguiria
defender a minha espécie. Mas, Akasha, pelo amor a todas as coisas vivas, eu lhe
imploro que deixe isto, este assassinato em massa. . .
- Você me fala de assassinato? Diga-me o valor de uma vida humana,
Lestat. Não é infinito? E quantos você mandou para a sepultura? Temos sangue
nas mãos, todos nós, exatamente como em nossas veias.
- Exatamente. E não somos sábios e onipotentes. Eu lhe imploro que
pare, pense... Akasha, Marius certamente...
- Marius! - ela riu baixinho. - Que foi que Marius lhe ensinou? Que foi
que ele lhe deu? Deu realmente?
Não respondi. Não podia. E a beleza dela estava me confundindo!
Confundia-me olhar para as curvas de seus braços, a minúscula covinha na
bochecha.
- Meu querido - fez ela, o rosto terno de repente, tão suave quanto a
voz. - Pense em sua visão do Jardim Selvagem, no qual os princípios estéticos
são os únicos princípios duráveis, as leis que governam a evolução de todas as
coisas grandes e pequenas, das cores e padrões em gloriosa profusão, e a
beleza! A beleza em qualquer lugar que se olhe! Esta é a natureza. E a morte está
nela em toda parte. E o que vou fazer é o Éden, o Éden pelo qual todos anseiam,
e ele será melhor que a natureza! Vou levar as coisas um passo à frente; e a
violência abusiva e amoral da natureza será redimida. Não entende que os
homens jamais farão mais do que sonhar com a paz? Mas as mulheres podem
realizar esse sonho! Minha visão está amplificada no coração de toda mulher. Mas
não consegue sobreviver ao calor da violência masculina! E esse calor é tão
terrível que a própria terra pode não sobreviver!
- E se houver alguma coisa que você não compreende?
- perguntei, fazendo um esforço para encontrar as palavras. - Suponha que a dualidade masculino-feminino seja indispensável ao
animal humano. Suponha que as mulheres queiram os homens; suponha que elas
fiquem contra você e tentem proteger os homens. O mundo não é essa ilhazinha
primitiva! Nem todas as mulheres são camponesas cegas por visões!
- Acha que os homens são aquilo que as mulheres querem? - ela
retrucou. Aproximou-se de mim, o rosto modificando-se imperceptivelmente no
jogo de luz. - É o que está dizendo? Se é assim, então vamos poupar mais
alguns homens, e mantê-los onde possam ser olhados como as mulheres olhavam
para você, e tocados como elas tocaram em você. Vamos mantê-los onde as
mulheres possam tê-los quando quiserem, e eu lhe asseguro que não serão
usados como as mulheres têm sido usadas por eles.
Suspirei. Era inútil discutir. Ela estava absolutamente certa e
absolutamente errada.
- Você está cometendo uma injustiça consigo mesmo - ela continuou.
- Conheço seus argumentos. Estudei-os durante séculos, como estudei muitas
outras questões. Acha que faço o que faço com limitações humanas? Não é assim.
Para me compreender, você tem que pensar em termos de capacidades ainda
inimaginadas. Seria mais fácil você entender o mistério da fissão do átomo ou dos
buracos negros no espaço.
- Tem que haver um jeito sem morte. Tem que haver um jeito que triunfe
sobre a morte!
- Ora, isso aí, meu querido, é verdadeiramente contra a natureza. Nem
mesmo eu posso acabar com a morte, - Ela fez uma pausa; de repente parecia
abstraída, ou melhor, profundamente entristecida pelas palavras que acabara de
dizer. - Acabar com a morte... - sussurrou. Parecia que um sofrimento pessoal
imiscuíra-se em seus pensamentos. - Acabar com a morte - repetiu.
Mas estava se afastando de mim. Vi-a fechar os olhos e levar os dedos às
têmporas. Estava ouvindo as vozes de novo, deixando-as vir. Ou talvez até fosse
incapaz de impedi-las. Disse algumas palavras numa linguagem antiga, que não
compreendi. Fiquei perturbado com sua súbita vulnerabilidade, o modo como as
vozes pareciam estar separando-a de mim, o modo como seus olhos pareciam examinar o quarto; depois fixaram-se em mim e encheram-se de brilho.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora