capítulo 10- A HISTÓRIA DAS GÊMEAS

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PARTE I

Quando Maharet se interrompeu, todos os olhos estavam fixos nela. Ela
então recomeçou, as palavras aparentemente espontâneas, embora lentas e
cuidadosamente pronunciadas. Não parecia triste, e sim ansiosa por reexaminar o
que pretendia descrever:
- Bem, quando digo que minha irmã e eu éramos bruxas, quero dizer o
seguinte: herdamos de nossa mãe, como nossa mãe da mãe dela, o poder de nos
comunicarmos com os espíritos e fazer com que cumprissem nossas ordens em
coisas pequenas e importantes. Podíamos sentir a presença dos espíritos, que
normalmente são invisíveis aos olhos humanos, e os espíritos eram atraídos por
nós.
"E aqueles com tais poderes, como nós, eram muito reverenciados por
nosso povo, que nos procurava pedindo conselhos, milagres e vislumbres do
futuro, e ocasionalmente para fazermos descansarem os espíritos dos mortos. O
que estou dizendo é que éramos consideradas benévolas e tínhamos nosso lugar
no esquema das coisas.
"Sempre houve bruxas, pelo que eu saiba. E ainda agora há bruxas,
embora a maioria delas não compreenda mais seus poderes e como usá-los. Há
também aqueles conhecidos como clarividentes ou médiuns. Ou até mesmo
detetives parapsicológicos. É tudo a mesma coisa. Essas são pessoas que, por
razões que nunca podemos chegar a entender, atraem os espíritos. Os espíritos
as consideram irresistíveis, e para chamar-lhes a atenção farão qualquer tipo de
truque.
"Quanto aos próprios espíritos, sei que vocês estão curiosos quanto à sua
natureza e seus poderes, e que nem todos acreditaram na história no livro de
Lestat sobre como a Mãe e o Pai foram criados. Não tenho certeza se o próprio Marius acreditou nela quando lhe contaram ou quando a narrou a Lestat."
Marius assentiu. Tinha já muitas perguntas a fazer, mas Maharet pediu-lhe
paciência.
- Vou lhes contar tudo o que na época sabíamos sobre os espíritos, que
é o mesmo que sei deles agora. Compreendam, naturalmente, que outras pessoas
podem usar nomes diferentes para essas entidades. Outras pessoas podem
defini-las mais em termos da poesia da ciência do que eu farei.
"Os espíritos falavam conosco telepaticamente; como já disse, eram
invisíveis, mas sua presença podia ser sentida; tinham personalidades distintas, e
ao longo de muitas gerações nossa família de bruxas deu-lhes vários nomes. Nós
os dividíamos em bons e maus, como os feiticeiros sempre fizeram; mas não há
provas de que eles próprios tenham o sentido do certo e errado. Os espíritos maus
eram aqueles abertamente hostis aos seres humanos e que gostavam de fazer
maldades com eles, assim como jogar pedras, criar vento e outros incômodos.
Aqueles que se apossam de seres humanos geralmente são espíritos 'maus';
aqueles que assombram casas e são chamados poltergeists também entram
nessa categoria.
"Os bons espíritos tinham a capacidade de amar e queriam, de maneira
geral, ser amados também. Raramente inventavam maldades. Respondiam
perguntas sobre o futuro, contavam-nos o que ocorria em lugares distantes e, para
bruxas poderosas como minha irmã e eu, para aqueles a quem os bons espíritos
realmente amavam, faziam seu truque maior e mais cansativo: faziam chover.
"Pelo que estou dizendo, vocês podem perceber que rótulos como bom e
mau eram interesseiros. Os bons espíritos eram úteis; os maus eram perigosos e
irritantes. Dar atenção aos maus espíritos, convidá-los a ficarem por perto, era
arriscar-se ao desastre, porque no final das contas ninguém conseguia
controlá-los.
"Havia também provas abundantes de que os que chamávamos de maus
espíritos nos invejavam, porque éramos carne e espírito, tínhamos os prazeres e
os poderes do físico e também a mente espiritual. Provavelmente essa mistura de
carne e espírito nos seres humanos deixa todos os espíritos curiosos. É uma fonte de atração para eles; mas irrita os maus espíritos que, parece, gostariam de
conhecer os prazeres sensuais mas não podem. Os bons espíritos não
demonstravam essa insatisfação.
"Ora, quanto à origem desses espíritos, eles costumavam nos dizer que
sempre estiveram aqui. Gabavam-se de ter visto seres humanos
transformarem-se de animais naquilo que eram. Não sabíamos o que queriam
dizer com esses comentários. Pensávamos que estavam brincando ou mentindo.
Mas agora o estudo da evolução humana torna óbvio que os espíritos
testemunharam esse desenvolvimento. Quanto às perguntas sobre a natureza
deles, como foram criados ou por quem, bem, essas eles nunca respondiam, e
acho que não compreendiam o que estávamos perguntando. Pareciam ofendidos
com essas perguntas, ou até mesmo temerosos, ou então achavam graça.
"Imagino que algum dia a natureza científica dos espíritos será conhecida.
Imagino que sejam matéria e energia num equilíbrio complicado, como é tudo o
mais em nosso universo, e que não são mais mágicos que a eletricidade ou as
ondas de rádio, ou os quasares e os átomos, ou vozes transmitidas por telefone,
coisas que há duzentos anos pareceriam sobrenaturais. Na verdade, a poesia da
ciência moderna ajudou-me a entendê-los em retrospecto mais do que qualquer
outra ferramenta filosófica. No entanto, instintivamente, agarro-me aos velhos
termos.
"Mekare afirmava que de vez em quando conseguia vê-los, e que eles
tinham minúsculos centros de matéria física e enormes corpos de energia a girar,
que ela comparava a tempestades de raios e vento. Disse que havia no mar
criaturas igualmente exóticas em sua organização; e também insetos que se
pareciam com os espíritos. Era sempre à noite que ela via seus corpos físicos, e
eles nunca ficavam visíveis por mais de um segundo, e geralmente só quando
estavam furiosos. Eram enormes, ela dizia, e eles também diziam o mesmo.
Diziam que não podíamos imaginar como eram imensos; mas, por outro lado,
adoravam contar vantagens, e era preciso separar sempre aquilo que não fazia
sentido nas coisas que diziam.
"Não há dúvida de que eles exercem grande poder sobre o mundo físico. Caso contrário, como poderiam mover objetos, como os poltergeists fazem? E
como poderiam reunir as nuvens para fazer chover? No entanto, conseguem
realizar muito pouco, para a energia que gastam. E isso sempre foi uma chave
para controlá-los. As coisas que podem fazer são limitadas, e uma boa bruxa
compreendia isso muito bem.
"Seja qual for sua estrutura material, eles aparentemente não têm
necessidades biológicas. Não envelhecem, não se modificam. E a chave para
entender seu comportamento infantil e caprichoso está aí. Eles não têm
necessidade de fazer coisa alguma; vagam por aí sem pensar no tempo, pois não
há razão física para se preocuparem com isso, e fazem aquilo que lhes dá
vontade. Obviamente enxergam o nosso mundo, fazem parte dele, mas não posso
imaginar como o vêem.
"Também não sei por que as bruxas os atraem. Mas esse é o xis da
questão; eles vêem uma bruxa, vão até ela, dão-se a conhecer e ficam
imensamente lisonjeados quando são percebidos; e cumprem as ordens delas
para terem mais atenção. Em alguns casos, para serem amados. E à medida que
esse relacionamento progride, eles são obrigados, por amor à bruxa, a se
concentrarem em várias tarefas. Isso os deixa exaustos, mas também deliciados
ao verem os seres humanos tão impressionados.
"Mas agora imaginem como eles acham engraçado ouvir orações e tentar
respondê-las, ficar perto dos altares e criar trovões depois que os sacrifícios são
oferecidos. Quando um clarividente chama o espírito de um ancestral morto para
falar com seus descendentes, eles adoram tagarelar fingindo que são esse
ancestral, embora não sejam, e por telepatia extraem informações dos cérebros
dos descendentes para enganá-los com mais facilidade.
"Certamente todos vocês conhecem o padrão de comportamento deles.
Agora não é diferente da nossa época. Mas o que é diferente é a atitude dos seres
humanos quanto ao que os espíritos fazem, e essa diferença é crucial. Quando
um espírito, hoje em dia, assombra uma casa e faz previsões através das cordas
vocais de uma criança de cinco anos, ninguém acredita, exceto quem vê e ouve.
Isso não se torna a base de uma grande religião.
"É como se a espécie humana tivesse se tornado imune a essas coisas;
talvez ela tenha evoluído para um estágio superior, onde as travessuras dos
espíritos não mais a confundem. E embora as religiões continuem, antigas
religiões que se entrincheiraram em épocas mais negras, elas estão perdendo
rapidamente sua influência sobre os mais cultos. Porém falarei disso depois.
Agora vou continuar a definir as propriedades de uma bruxa, pois são coisas que
se relacionam a mim e à minha irmã, e ao que nos aconteceu.
"Era uma coisa hereditária em nossa família. Pode ser uma coisa física,
pois parecia correr em nossa linhagem familiar através das mulheres,
invariavelmente ligada aos atributos físicos de cabelos vermelhos e olhos verdes.
Como todos vocês sabem, como aprenderam de um modo ou de outro desde que
entraram nesta casa, Jesse, minha filha, era uma bruxa. E na Talamasca ela
usava seus poderes para ajudar aqueles que eram atormentados por espíritos e
fantasmas.
"Naturalmente os fantasmas também são espíritos. Mas são sem dúvida
espíritos daqueles que foram humanos na terra, ao passo que os espíritos de que
falei até agora não são. No entanto, ninguém tem certeza absoluta quanto a isso.
Um fantasma muito idoso poderia esquecer que já foi vivo; e possivelmente os
espíritos muito malignos são fantasmas, e por isso anseiam tanto pelos prazeres
da carne; e quando se apoderam de um coitado de um ser humano, arrotam
obscenidades. Para eles a carne é imunda, e eles gostariam que homens e
mulheres acreditassem que os prazeres eróticos e a maldade são igualmente
perigosos e nocivos.
"Mas o caso é que, pelo modo como os espíritos mentem quando não
querem revelar alguma coisa, não há como saber por que agem como agem.
Talvez sua obsessão com o erotismo seja simplesmente algo abstraído das
mentes de homens e mulheres que sempre se sentiram culpados em relação a
essas coisas.
"Voltando ao assunto: na nossa família geralmente as bruxas eram
mulheres. Em outras famílias, acontece com homens e mulheres. Ou pode
aparecer sem mais nem menos num ser humano, por motivos que não conseguimos entender. Mas, seja como for, a nossa era uma família de bruxas
muito, muito antiga. Podíamos contar bruxas em cinqüenta gerações anteriores,
até o que era chamado de Tempo Antes da Lua. Isto é, afirmávamos ter vivido no
primeiro período da história da terra, antes que a lua tivesse entrado no céu
noturno.
"As lendas de nossa família falavam na chegada da lua, nas enchentes,
nos terremotos e nas tempestades que a acompanharam. Não sei se isso
realmente aconteceu. Acreditávamos também que nossas estrelas sagradas eram
as Plêiades, ou as Sete Irmãs, e que todas as bênçãos vinham dessa constelação.
Mas por que, eu nunca soube, ou não consigo me lembrar. Falo agora de antigos
mitos, crenças que eram velhas antes de eu nascer. E aqueles que convivem com
os espíritos tornam-se, por motivos óbvios, bastante céticos.
"No entanto, até hoje a ciência não consegue negar ou verificar as
histórias do Tempo Antes da Lua. A chegada da lua e sua subseqüente atração
gravitacional tem sido usada teoricamente para explicar o deslocamento das
calotas polares e as últimas idades do gelo. Talvez haja verdades nessas velhas
histórias, verdades que algum dia serão esclarecidas. Seja qual for o caso, a
nossa era uma linhagem antiga. Nossa mãe tinha sido uma bruxa poderosa, a
quem os espíritos contaram muitos segredos, lendo as mentes dos homens como
eles fazem. E ela e
xercia grande efeito nos espíritos turbulentos dos mortos.
"Em Mekare e em mim, parecia que os poderes dela foram duplicados,
como costuma acontecer com gêmeas. Isto é, cada uma de nós era duas vezes
mais poderosa que nossa mãe. Quanto ao poder que tínhamos juntas, era
incalculável. Conversávamos com os espíritos ainda no berço. Quando
brincávamos, estávamos cercadas deles. Como gêmeas, inventamos uma
linguagem secreta, que nem mesmo nossa mãe conseguia compreender. Mas os
espíritos conseguiam. Os espíritos entendiam qualquer coisa que disséssemos;
conseguiam até responder-nos em nossa linguagem secreta.
"Compreendam, não lhes conto isso por orgulho, seria absurdo.
Conto-lhes para que possam saber o que nós éramos uma para a outra e para o
nosso povo antes que os soldados de Akasha e Enkil entrassem em nossa terra.
Quero que entendam por que esse mal, a criação dos bebedores de sangue,
acabou por acontecer!
"Éramos uma grande família. Sempre vivemos nas cavernas do Monte
Carmel. E nosso povo sempre construiu seus acampamentos no vale ao pé da
montanha. Viviam de criar cabras e carneiros. E de vez em quando caçavam;
tinham pequenas lavouras, para fazer as drogas alucinógenas que bebíamos para
entrar em transe, que era parte da nossa religião, e também para fazer cerveja.
Colhiam o trigo silvestre, que na época crescia em profusão.
"Nossa aldeia consistia em pequenas casas de tijolos de barro com tetos
de palha, mas havia outras aldeias que tinham crescido e virado pequenas
cidades, e outras onde se entrava nas casas pelo telhado. Nosso povo fazia uma
cerâmica bem típica, que levava para vender nos mercados de Jericó. De lá
traziam lápis-lazúli, marfim, incenso e espelhos de obsidiana, e outras coisas
igualmente belas. Naturalmente sabíamos da existência de muitas outras cidades,
grandes e bonitas como Jerico, cidades agora inteiramente soterradas e que
provavelmente jamais serão descobertas.
"De um modo geral éramos um povo simples. Conhecíamos o que era a
escrita, isto é, o conceito da escrita. Mas não nos ocorria usá-la, pois as palavras
tinham grande poder, e não ousaríamos escrever nosso nome, ou as maldições e
as verdades que conhecíamos. Se uma pessoa sabia o nome de alguém, poderia
chamar os espíritos para amaldiçoá-lo; podia sair do corpo em transe e viajar até
onde ele estava. Quem poderia saber o poder que o inimigo teria nas mãos se
pudesse escrever o nome de alguém na pedra ou num papiro? Até mesmo
aqueles que não tinham esse temor achavam o assunto desagradável.
"Nas grandes cidades, a escrita era usada principalmente para os
registros financeiros, que nós podíamos guardar na cabeça. Na realidade, todo o
conhecimento de nosso povo era guardado na memória; os sacerdotes que faziam
sacrifícios para o deus touro do nosso povo (em quem, aliás, nós duas não
acreditávamos) confiavam suas crenças e tradições à memória, e as ensinavam
aos sacerdotes mais jovens através de prosa e verso. E as histórias das famílias
também eram contadas de cabeça.
"Mas usávamos a pintura; elas cobriam as paredes dos santuários do
touro em nossa aldeia. E minha família, morando nas cavernas do Monte Carmel,
cobria nossas grutas secretas com pinturas que ninguém via, além de nós. Ali
mantínhamos uma espécie de arquivo. Mas isso era feito com cuidado. Nunca
pintei ou desenhei minha própria imagem, por exemplo, até depois que veio a
catástrofe e eu e minha irmã nos tornamos a coisa que nós todos somos.
"Voltando ao nosso povo: éramos pacíficos; pastores, às vezes artesãos,
às vezes comerciantes, não mais, não menos. Quando os exércitos de Jerico iam
para a guerra, de vez em quando nossos rapazes juntavam-se a eles; mas era o
que desejavam fazer. Queriam aventuras, queriam ser soldados e conhecer esse
tipo de glória. Outros iam para as cidades, para conhecer os grandes mercados, a
majestade das cortes, o esplendor dos templos. E alguns iam para os portos do
Mediterrâneo para ver os grandes navios mercantes. Mas em geral a vida na
aldeia foi a mesma durante muitos séculos, sem mudança. E Jericó nos protegia,
quase com indiferença, porque era o ímã que atraía para si a força dos inimigos.
"Nunca, nunca caçamos homens para comer-lhes a carne! Esse não era o
nosso costume! E não posso dizer-lhes que abominação esse canibalismo teria
sido para nós, comer a carne do inimigo. Porque éramos canibais, e comer carne
tinha uma importância muito especial: comíamos a carne de nossos mortos."
Maharet fez uma pausa, como se quisesse que a importância daquelas
palavras ficasse bem clara para todos. Marius viu novamente a imagem das duas
ruivas ajoelhadas diante do banquete fúnebre. Sentiu a cálida imobilidade do
meio-dia e a solenidade do momento. Tentou limpar a mente e ver apenas o rosto
de Maharet.
- Compreendam - continuou ela - acreditávamos que o espírito
deixava o corpo na hora da morte; mas acreditávamos também que o resíduo de
todas as coisas vivas contém uma quantidade ínfima de poder, depois que a vida
se vai. Por exemplo, os pertences pessoais de um homem retêm parte da sua
vitalidade; e o corpo, os ossos, certamente.
E naturalmente quando consumíamos
a carne de nossos mortos esse resíduo, por assim dizer, também seria consumido.
"Mas a verdadeira razão para comermos os mortos era o respeito. Era, em
nossa opinião, a maneira apropriada de tratar os restos daqueles que amávamos.
Levávamos para dentro de nós o corpo daqueles que nos tinham dado vida, os
corpos de onde nossos corpos vieram. E assim se completava o ciclo. E os restos
sagrados daqueles que amávamos eram poupados do hediondo horror da
putrefação dentro da terra, ou de serem devorados por animais selvagens, ou
queimados como se fossem lixo.
"Há nisso uma grande lógica, se pensarem bem. Mas o importante é
entender que isso era parte de nós, como povo. O dever sagrado de todo filho era
consumir os restos dos pais; o dever sagrado da tribo era consumir os mortos.
Nem um único homem, mulher ou criança morria em nossas aldeias sem ser
consumido por amigos ou parentes. Nem um único homem, mulher ou criança de
nossa aldeia deixou de consumir a carne de um morto."
Novamente Maharet fez uma pausa, os olhos percorrendo lentamente os
outros, antes de continuar.
- Bem, não era tempo de grandes guerras - disse. - Jerico estava em
paz desde que nos lembrávamos. E Nínive também estava em paz. Mas bem
longe, a sudoeste, no Vale do Nilo, o povo selvagem daquela terra guerreava,
como sempre fizera, contra os povos da floresta ao sul, para conseguirem cativos
para seus espetos e seus caldeirões. Pois não apenas devoravam seus mortos
com todo o respeito devido, como nós fazíamos, mas comiam também os corpos
dos inimigos. Acreditavam que a força do inimigo entrava em seus corpos quando
lhe consumiam a carne. Além disso, gostavam do sabor da carne.
"Nós éramos contra o que eles faziam, pelas razões que já expliquei.
Como alguém podia querer a carne de um inimigo? Mas talvez a- diferença crucial
entre nós e os guerreiros habitantes do Vale do Nilo não fosse o fato de eles
comerem os inimigos, mas de serem belicosos e nós pacíficos. Não tínhamos
inimigos.
"Bem, na época em que eu e minha irmã fizemos dezesseis anos, uma
grande mudança ocorreu no Vale do Nilo. Pelo menos foi o que nos disseram. A
idosa Rainha de lá morreu sem uma filha para perpetuar o sangue real. E entre muitos povos antigos o sangue real passava apenas pela linhagem feminina.
Como nenhum homem pode ter plena certeza da paternidade do filho de sua
esposa, era a Rainha ou a Princesa que levava consigo o direito divino ao trono.
Por isso os faraós egípcios das épocas posteriores freqüentemente se casavam
com as irmãs. Era para assegurar seu direito real.
"E assim teria sido com aquele jovem Rei Enkil se tivesse uma irmã, mas
ele não tinha. Nem uma prima ou uma tia de sangue real com quem se casar. Mas
era jovem, forte e decidido a governar sua terra. Finalmente escolheu uma noiva,
não entre seu próprio povo, mas na cidade de Uruk, no vale entre o Tigre e o
Eufrates. Era Akasha, uma bela mulher da família real e devota da grande deusa
Inanna; ela poderia trazer para o reino de Enkil a sabedoria de sua terra. Pelo
menos era o que diziam os mexericos nos mercados de Jericó e Nínive e nas
caravanas que vinham comprar nossas mercadorias.
"Ora, o povo do Nilo já cultivava a terra, mas costumava negligenciá-la
para caçar carne humana. E isso horrorizou a linda Akasha, que decidiu
imediatamente afastá-lo desse hábito bárbaro, como certamente qualquer pessoa
mais evoluída faria. Provavelmente trouxe consigo a escrita, pois o povo de Uruk a
usava, eram grandes arquivistas. Porém, como nós desprezávamos a escrita, não
tenho certeza disso. Talvez os egípcios já tivessem começado a escrever por si
próprios.
"Não podem imaginar a lentidão com que tais coisas afetam uma cultura.
Registros de impostos são mantidos durante gerações antes que alguém escreva
um poema num tablete de argila. Uma tribo cultiva pimenta ou ervas durante
duzentos anos antes que alguém pense em cultivar trigo ou milho. Como sabem,
os índios da América do Sul tinham brinquedos com roda quando os europeus
invadiram suas terras; e jóias, feitas de metal. Mas não usavam a roda em
qualquer outra forma, e não usavam metal em suas armas. Portanto, foram
derrotados pelos europeus quase que instantaneamente.
"Seja qual for o caso, não conheço toda a história do conhecimento que
Akasha trouxe consigo de Uruk. O que sei é que nosso povo ouviu muitos boatos
sobre a proibição de qualquer forma de canibalismo no Vale do Nilo, e os que desobedeciam eram cruelmente mortos. As tribos que durante muitas gerações
caçaram carne humana ficaram furiosas por não mais poderem praticar esse
esporte; mas ainda maior foi a fúria de todas as pessoas por não poderem, comer
seus mortos. Não caçar, isso era outra coisa, mas entregar um ancestral à terra
era tão horrível para eles quanto teria sido para nós.
"Assim, para que a ordem de Akasha fosse obedecida, o Rei decretou que
todos os cadáveres deveriam ser tratados com ungüentos e embrulhados. Não
apenas não se podia comer a carne sagrada da mãe ou do pai, mas essa carne
tinha que ser enrolada em panos de linho muito dispendiosos, e os corpos intactos
tinham que ser expostos para todos verem, e depois colocados em tumbas com
oferendas e preces de um sacerdote.
Quanto mais cedo se fazia isso, melhor, porque ninguém poderia comer a carne.
"E para motivar o povo a cumprir essas novas ordens, Akasha e Enkil
convenceram a todos que os espíritos dos mortos estariam melhor no reino para
onde tinham ido se seus corpos fossem preservados naquele embrulho na terra.
Em outras palavras, diziam ao povo: 'Seus amados ancestrais não estão
negligenciados; pelo contrário, estão bem guardados.'
"Achamos aquilo muito engraçado quando soubemos: embrulhar os
mortos e colocá-los em quartos mobiliados acima ou abaixo da areia do deserto!
Achamos engraçado que os espíritos dos mortos pudessem ser ajudados pela
manutenção de seus corpos na terra. Pois qualquer um que tenha se comunicado
com os mortos sabe que é melhor que esqueçam seus corpos; só quando
renunciam à sua imagem terrena é que podem ascender para um plano superior.
E então, no Egito, nas sepulturas dos muito ricos e muito religiosos, havia aquelas
coisas, aquelas múmias em que a carne apodrecia.
"Se alguém nos tivesse afirmado que esse costume de mumificação criaria
raízes naquela cultura, que durante quatro mil anos os egípcios iriam praticá-lo,
que ele se tornaria um grande e duradouro mistério para o mundo inteiro, que
criancinhas do século XX iriam a museus para ver múmias, nós não teríamos
acreditado. No entanto, para nós realmente não fazia diferença. Estávamos muito distantes do Vale do Nilo. Nem mesmo conseguíamos imaginar como era aquela
gente. Sabíamos que a religião deles viera da África, que eles adoravam o deus
Osíris e o deus solar Rá, e também deuses animais. Mas na realidade não os
compreendíamos. Não compreendíamos sua terra de inundação e deserto.
Quando segurávamos nas mãos objetos finos feitos por eles, percebíamos um
vago resquício de suas personalidades, mas era uma coisa desconhecida.
Tínhamos pena deles por não poderem comer seus mortos.
"Quando perguntávamos aos espíritos, eles pareciam achar muita graça
nos egípcios. Diziam que os egípcios tinham 'belas vozes' e 'belas palavras' e que
era agradável visitar seus templos e altares; gostavam da língua egípcia. Depois
perdiam o interesse nessas perguntas e freqüentemente se afastavam.
"O que eles diziam nos fascinava, mas não nos surpreendia. Sabíamos
como os espíritos gostavam de nossas palavras, nossos cânticos e nossa música.
De modo que os espíritos estavam brincando de deuses com os egípcios. Faziam
esse tipo de coisa o tempo todo.
"Os anos foram passando e soubemos que Enkil, para poder unir seu
reino e acabar com a revolta e a resistência dos canibais, reunira um grande
exército e se dedicara a conquistar o norte e o sul. Enviava seus navios para o
grande mar. Era um velho truque: coloque-os juntos lutando contra um inimigo e
eles vão parar de brigar em casa.
"Mas o que isso tudo tinha a ver conosco? Nossa terra era um lugar de
beleza e serenidade, de árvores repletas de frutas e campos de trigo silvestre para
quem quisesse colher. A nossa terra era um lugar de grama verde e brisa fresca.
Mas não havia lá coisa alguma que alguém quisesse tomar de nós. Pelo menos
era o que imaginávamos.
"Minha irmã c eu continuávamos a viver em perfeita paz nas suaves
encostas do Monte Carmel, muitas vezes conversando em silêncio com nossa
mãe e uma com a outra, ou usando poucas palavras só nossas, que
compreendíamos perfeitamente; e aprendendo com nossa mãe tudo o que ela
sabia sobre o coração dos espíritos e dos homens. Bebíamos as poções que
nossa mãe fazia com as plantas que cultivávamos na montanha, e em nossos transes viajávamos ao passado e falávamos com nossas ancestrais, bruxas
poderosas cujos nomes conhecíamos. Em suma, atraíamos os espíritos dessas
ancestrais de volta à terra para nos ensinarem algumas coisas. Também
viajávamos fora do corpo, voando bem alto.
"Eu poderia passar horas contando o que víamos nesses transes; certa
vez Mekare e eu caminhávamos de mãos dadas pelas ruas de Nínive, admirando
maravilhas que jamais imagináramos; mas essas coisas não são importantes
agora. Quero apenas dizer o que a companhia dos espíritos significava para nós,
a suave harmonia na qual vivíamos com todas as coisas vivas à nossa volta e com
os espíritos. Em certos momentos, o amor dos espíritos tornava-se palpável, como
os místicos cristãos descreveram o amor de Deus ou de seus santos. Vivíamos
felizes juntas: minha irmã, eu e nossa mãe. As cavernas de nossas ancestrais
eram quentes e secas; e tínhamos tudo o que necessitávamos: roupas finas, jóias,
lindos pentes de marfim e sandálias de couro nos eram ofertados, pois ninguém
jamais nos pagou pelo que fazíamos.
"E todos os dias o povo de nossa aldeia vinha nos consultar, e nós
passávamos as perguntas para os espíritos. Tentávamos ver o futuro, coisa que
naturalmente os espíritos conseguem fazer até certo ponto, isto é, partindo do
princípio de que as coisas tendem a seguir um curso inevitável. Perscrutávamos
as mentes com nosso poder telepático e dávamos os melhores conselhos que
podíamos. De vez em quando traziam-nos pessoas possuídas. E nós
expulsávamos o demônio, ou o mau espírito, pois era apenas disso que se tratava.
E quando uma casa era mal-assombrada, íamos até lá e ordenávamos que o
espírito mau se afastasse.
"Dávamos a poção dos sonhos àqueles que pediam. E eles entravam em
transe, ou dormiam e sonhavam em imagens vividas, que nós então tentávamos
interpretar ou explicar. Para isso não precisávamos realmente dos espíritos,
embora às vezes procurássemos sua ajuda. Usávamos nossos poderes de
compreensão e de visão profunda, e muitas vezes também a informação que nos
era revelada quanto ao significado das várias imagens.
"Mas nosso maior milagre, que necessitava de toda a nossa força e que nunca podíamos garantir, era fazer chuva. Ora, fazíamos esse milagre de dois
modos básicos: a 'chuva pequena', que era principalmente simbólica, uma
demonstração de poder e um grande remédio para a alma do nosso povo; ou a
'chuva grande', que era necessária à lavoura e muito difícil de lazer, quando
chegávamos a conseguir.
"Ambas requeriam muita lisonja aos espíritos, muitos chamados e muitos
pedidos para que se reunissem, se concentrassem e usassem sua força para nos
obedecer. A 'chuva pequena' costumava ser feita pelos nossos espíritos mais
familiares, aqueles que amavam particularmente a mim e a Mekare, e tinham
amado nossa mãe e a mãe dela e todas as nossas antepassadas antes de nós, e
com os quais sempre podíamos contar para fazer os trabalhos mais difíceis
apenas por amor.
"Mas a 'chuva grande' requeria a ajuda de muitos espíritos, e como alguns
deles pareciam não gostar de outros e odiar trabalhar em conjunto, era preciso
adulá-los muito. Tínhamos que entoar cânticos e dançar muito, durante horas, até
que os espíritos gradualmente se interessavam, reuniam-se, apaixonavam-se pela
idéia e finalmente punham-se a trabalhar. Mekare e eu conseguimos fazer a
'chuva grande' apenas três vezes. Mas que coisa maravilhosa ver as nuvens
juntarem-se sobre o vale, ver os espessos lençóis de chuva a cair! Todo o nosso
povo corria para a chuva; a própria terra parecia inchar, abrir-se, agradecer.
"Fazíamos sempre a 'chuva pequena'; para cs outros, por prazer. Mas foi
a 'chuva grande' que realmente espalhou nossa fama. Sempre fôramos
conhecidas como as bruxas da montanha; mas depois as pessoas começaram a
vir das cidades do extremo norte, de terras cujos nomes não conhecíamos. Os
homens esperavam na aldeia a sua vez de ir à montanha e beber a poção para
que lhes estudássemos os sonhos. Esperavam sua vez de procurar nossos
conselhos, ou, de vez em quando, apenas para nos ver. E naturalmente nossa
aldeia lhes servia carne e bebida e aceitava um presente em troca, e todos se
beneficiavam, era o que parecia. E nesse ponto não fazíamos algo tão diferente
do que fazem os psicólogos deste século: estudávamos imagens e as
interpretávamos, procurávamos alguma verdade no subconsciente; e os milagres da 'chuva pequena' e da 'chuva grande' apenas avivavam a fé que os outros
tinham em nossa capacidade.
"Um dia, acho que seis meses antes da morte da nossa mãe, chegou-nos
uma carta. Um mensageiro a trouxera do Rei e da Rainha de Kemet, que era a
terra do Egito como os próprios egípcios a chamavam. Era uma carta escrita num
tablete de argila, como se fazia em Jericó e em Nínive, e havia na argila pequenas
figurinhas, o início do que os homens mais tarde chamariam de escrita cuneiforme.
Claro que não a lemos; na verdade, ficamos assustadas com a carta e achamos
que ela podia ser uma maldição. Não queríamos tocar nela, mas tínhamos que
fazer isso se quiséssemos captar alguma coisa que precisássemos saber sobre
ela.
"O mensageiro disse que seus soberanos Akasha e Enkil tinham ouvido
falar em nosso grande poder e ficariam honrados se fôssemos visitar sua corte;
tinham mandado uma grande escolta para nos acompanhar a Kemet e nos
enviariam de volta para casa com muitos presentes. Nós três ficamos
desconfiadas desse mensageiro. Ele estava falando a verdade conforme seu
próprio conhecimento, mas havia mais que isso.
"Então nossa mãe tomou o tablete de argila nas mãos. Imediatamente
sentiu alguma coisa nele, algo que passou através de seus dedos e lhe causou
grande perturbação. A princípio não quis nos contar o que tinha visto; depois,
chamando-nos de lado, disse que o Rei e a Rainha de Kemet eram maus, grandes
derramadores de sangue, e desrespeitadores das crenças alheias. E que um mal
terrível cairia sobre nós, vindo daquele casal, não importava o que a carta dizia.
"Então Mekare e eu tocamos na carta e também sentimos o mau
pressentimento. Mas havia um mistério ali, um nó escuro, e misturado ao mal
havia um elemento de coragem e algo que parecia bom. Em resumo, aquilo não
era uma simples conspiração para nos roubar e ao nosso poder; havia uma
curiosidade e um respeito genuínos. Finalmente perguntamos aos espíritos -
àqueles que Mekare e eu mais amávamos. Eles se aproximaram de nós e leram a
carta, o que lhes era muito fácil fazer. Disseram que o mensageiro falara a
verdade. Mas que um perigo terrível nos adviria se fôssemos visitar o Rei e a Rainha de Kemet.
"'Por quê?', perguntamos aos espíritos. E eles nos responderam: 'Porque
o Rei e a Rainha vão lhes fazer perguntas, e se responderem a verdade, coisa
que farão, o Rei e a Rainha ficarão muito zangados, e vocês serão destruídas.'
Naturalmente nós nunca teríamos ido mesmo ao Egito. Não queríamos deixar
nossa montanha. Mas agora sabíamos com certeza que não devíamos ir.
Dissemos ao mensageiro com todo o respeito que não podíamos deixar o lugar
onde tínhamos nascido, que nenhuma bruxa de nossa família jamais saíra de lá, e
lhe pedimos que dissesse isso ao Rei e à Rainha. O mensageiro partiu e a vida
voltou à rotina normal.
"Porém aconteceu que várias noites mais tarde veio até nós um espírito
mau, a quem chamávamos Amel: enorme, poderoso e cheio de ódio. Aquela coisa
ficou dançando na clareira diante da nossa caverna, tentando fazer com que
Mekare e eu lhe déssemos atenção e declarando que logo poderíamos precisar de
sua ajuda. Estávamos acostumadas com o assédio dos espíritos maus; eles
ficavam furiosos porque não falávamos com eles, como as outras bruxas e os
feiticeiros faziam. Mas sabíamos que essas entidades não eram de confiança,
eram incontroláveis; nunca fôramos tentadas a usá-las, e achávamos que nunca o
faríamos.
"Esse Amel em particular ficava furioso porque o 'desprezávamos', como
ele dizia. E declarava muitas vezes ser 'Amel, o poderoso' e 'Amel, o invencível', e
que devíamos mostrar-lhe respeito. Pois poderíamos precisar dele um dia.
Poderíamos precisar dele mais do que imaginávamos, pois havia problemas em
nosso caminho.
"Nesse momento nossa mãe saiu da caverna e perguntou ao espírito qual
era o problema que ele via. Aquilo nos chocou, porque ela sempre nos proibira de
falar com os espíritos maus; e quando falava com eles, era sempre para
amaldiçoá-los, expulsá-los ou para confundi-los com enigmas e truques para que
ficassem zangados, sentindo-se estúpidos, e desistissem. Amel, o terrível, o
perverso, o poderoso - como quer que se chamasse em sua eterna gabolice -
declarou apenas que sérios problemas se aproximavam e que devíamos demonstrar-lhe respeito, se fôssemos espertas. Então gabou-se de todo o mal que
fizera sob as ordens dos feiticeiros de Nínive: podia atormentar as pessoas,
endemoniá-las e até mesmo picá-las como se ele fosse um enxame de mosquitos!
Podia tirar sangue dos humanos, declarou, e gostava do sabor; e tiraria sangue de nós.
"Minha mãe riu dele. 'Como poderia fazer isso?', ela quis saber. 'Você é
um espírito, não tem corpo, não consegue sentir sabor!' É o tipo de coisa que
sempre deixou os espíritos furiosos, pois invejavam nossa carne, como já lhes
contei. Bem; esse espírito, para demonstrar seu poder, caiu sobre nossa mãe
como um furacão. Imediatamente os bons espíritos o combateram, e houve uma
comoção terrível na clareira, mas quando tudo terminou e Amel tinha sido
afastado por nossos espíritos guardiães, vimos que havia minúsculas picadas na
mão de nossa mãe. Amel, o maligno, tirara sangue dela, exatamente como dissera
que fazia: como se um enxame de mosquitos a tivesse atormentado com suas
mordidas.
"Mamãe olhou para aquelas pequenas feridas; os bons espíritos ficaram
furiosos por ela ter sido tratada com tanto desrespeito, mas ela mandou que
ficassem quietos. Meditou silenciosamente sobre aquilo, como tinha sido possível
e como o espírito poderia sentir o sabor do sangue que tirara. Foi então que
Mekare explicou que, segundo suas visões, aqueles espíritos possuíam núcleos
infinitesimais de matéria, bem no centro de seus enormes corpos invisíveis, e era
possivelmente através desse núcleo que o espírito sentia o gosto do sangue.
Imaginem, explicou ela, o pavio de uma lamparina, apenas uma coisinha
minúscula dentro da labareda. O pavio poderia absorver o sangue. E assim era
com os espíritos, que pareciam ser apenas chamas mas que tinham dentro de si
aquele pavio minúsculo.
"Nossa mãe zombou, mas não gostou daquilo. Disse ironicamente que o
mundo estava suficientemente cheio de mistérios sem espíritos maus que
gostavam de sangue. 'Vá embora, Amel', ordenou, e amaldiçoou-o, disse que ele
era trivial, pouco importante, não contava, não seria reconhecido e era melhor que
fosse para longe. Em outras palavras, as coisas que sempre dizia para livrar-se de espíritos importunos. As coisas que até hoje os padres dizem, de forma um pouco
diferente, quando tentam exorcizar crianças possuídas.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora