capítulo 4

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Meus Irmãos e Irmãs!

Khayman ergueu-se com dificuldade. Cambaleava, mas continuou
andando, descendo, até sair ao saguão, onde o barulho era um pouquinho mais
abafado, e descansou ali, em frente às portas internas, numa refrescante corrente
de ar fresco.
A calma lhe voltava, mas aos poucos, quando percebeu que dois mortais
tinham parado perto e olhavam para ele ali encostado na parede, mãos nos bolsos,
cabeça baixa.
De repente viu-se como eles o viam. Sentiu o medo deles, misturado a um
senso súbito e irreprimível de vitória. Homens que sabiam sobre a sua raça,
homens que viviam à espera de um momento como esse, ao mesmo tempo
temendo-o, sem nunca ter realmente esperanças de que ele acontecesse.
Ergueu os olhos lentamente. Estavam a uns cinco metros dele, junto ao
apinhado balcão de refrigerantes, como se pudessem esconder-se — cavalheiros
ingleses. Na verdade, eram velhos, cultos, com rostos enrugados e roupas formais.
Inteiramente deslocados, com seus sobretudos cinzentos, colarinho engomado, o
nó brilhante de uma gravata de seda. Pareciam exploradores de outro mundo, em
meio à juventude exuberante que se movia sem descanso de um lado para outro,
muito à vontade em meio ao bárbaro ruído.
E eles o encaravam com uma reticência muito natural, como se fossem
educados demais para ter medo. Decanos da Talamasca procurando Jessica.
Me conhecem? Claro que sim. Não podem me fazer mal. Não me importo.
Suas palavras silenciosas fizeram o que se chamava David Talbot recuar
um passo. A respiração do inglês acelerou-se, e sua testa encheu-se de suor. Mas
mesmo assim, que pose, que elegância! David Talbot apertou os olhos, como se
não quisesse cegar com o que estava vendo; como se pudesse ver as minúsculas
moléculas dançando na luz.
De repente o tempo da vida humana pareceu-lhe muito pequeno; aquele
homem frágil, por exemplo, para quem a educação e o refinamento tinham apenas
aumentado os riscos. Tão simples alterar o padrão dos pensamentos dele, suas
expectativas. Khayman deveria dizer-lhes onde Jesse estava? Devia imiscuir-se?
No final das contas, não faria diferença.
Sentia agora que eles tinham medo de afastar-se e de ficar, ele os tinha
paralisado, quase como se os tivesse hipnotizado. De certo modo, era o respeito
que os mantinha ali, encarando-o. Parecia que ele teria que oferecer alguma coisa,
ainda que fosse para pôr fim àquele horrível escrutínio.
Não se aproximem dela. Seria tolice fazer isso. No momento há outros
como eu tomando conta dela. Melhor irem embora. Eu iria, se fosse vocês.
Como aquilo seria transcrito nos arquivos da Talamasca? Alguma noite
dessas ele poderia descobrir. Para que locais modernos eles tinham transferido
seus documentos e tesouros antigos?
Benjamin, o Demônio. Eis quem sou. Não me conhecem? Sorriu consigo
mesmo. Deixou pender a cabeça e olhou para o chão. Não sabia que possuía
essa vaidade. E de repente não tinha importância o que esse momento significava
para eles.
Pensou nos tempos antigos na França, quando brincava com os da
espécie. "Permita apenas que falemos com você!", eles imploravam. Sábios
empoeirados, com olhos claros eternamente avermelhados e surradas roupas de
veludo, tão diferentes daqueles dois finos cavalheiros para quem o oculto era uma
questão científica, não filosófica. A desesperança daquele tempo de repente
assustou-o; a desesperança do tempo atual era igualmente assustadora.
Vão embora.
Sem erguer os olhos ele viu que David Talbot assentia. Ele e o
companheiro retiraram-se dignamente. Lançando olhares para trás, percorreram o
saguão arredondado e entraram no auditório.
Khayman estava novamente só, com o ritmo da música vindo pelas portas,
sozinho e se perguntando por que viera, o que queria; desejando que pudesse
novamente esquecer; que estivesse em algum lugar bonito, cheio de brisas
cálidas e mortais que não sabiam o que ele era, e luzes elétricas piscando sob
nuvens baças, e calçadas planas e infindáveis onde ele pudesse caminhar até o amanhecer.

Jesse

— Me larga, seu filho da puta! — Jesse chutou o homem a seu lado, que
lhe rodeara a cintura com o braço, erguendo-a do chão e afastando-a do palco. —
Seu babaca!
Curvado de dor no pé, ele não conseguiu equilibrar-se ao receber o
violento empurrão; dobrou-se e caiu no chão.
Cinco vezes ela fora empurrada para longe do palco. Conseguira abrir
caminho entre os motoqueiros que tinham tomado seu lugar, deslizando como um
peixe de encontro aos corpos cobertos de couro e emergindo para agarrar o beirai
de madeira; com uma das. mãos segurou o pano sintético que o enfeitava e
torceu-o em corda.
À luz dos refletores ela viu o Vampiro Lestat saltar bem alto e pousar no
palco sem produzir qualquer som, a voz alteando-se novamente, enchendo o
teatro sem ajuda do microfone, os guitarristas dançando à sua volta como
duendes.
Pelo rosto branco desciam fios de sangue, como no Cristo Coroado de
Espinhos. A longa cabeleira loura voejava quando ele girava; levou a mão à
camisa e rasgou-a no peito, jogando longe a gravata negra. Os olhos azuis
cristalinos estavam vermelhos e embaçados; ele gritava as triviais palavras de
suas canções.
Jesse sentiu o coração tamborilar quando olhou para ele, para os quadris
ondulantes, para a fazenda justa da calça negra revelando os possantes músculos
da coxa. Ele tornou a saltar, erguendo-se sem esforço, como se pudesse chegar
ao teto do teatro.
Sim, você está vendo, e não há engano possível! Não há outra explicação!
Assoou o nariz — estava chorando novamente. Mas tocar nele, merda,
você tem que fazer isso! Tonta, viu-o terminar a canção, batendo o pé no chão nas
três últimas notas, enquanto os músicos dançavam para a frente e para trás, zombeteiros, balançando os cabelos, as vozes abafadas pela voz dele,
esforçando-se para acompanhá-lo.
Meus Deus, como ele adorava aquilo! Não havia o menor fingimento.
Banhava-se na adoração que estava recebendo. Sugava-a como se fosse sangue.
E então, na frenética abertura de outra canção, ele arrancou a capa de
veludo preto, girou-a no ar e arremessou-a na platéia. A multidão ondulou. Jesse
sentiu um joelho em suas costas, uma bota arranhando-lhe o tornozelo, mas essa
foi a sua chance, quando os guardas saltaram de seus postos para acalmar o
tumulto.
Pressionando as duas mãos com força na borda de madeira, ela trepou
para o palco. Endireitando-se, correu direto para a figura que dançava e cujos
olhos de repente olharam dentro dos seus.
— Você! É, você! — ela berrou.
Pelo canto do olho avistou um guarda que se aproximava. Jogou todo o
peso do corpo contra o Vampiro Lestat. Fechando os olhos, prendeu os braços em
volta da cintura dele. Sentiu o choque frio do peito sedoso contra seu rosto; de
repente provou gosto de sangue nos lábios!
— Ah, meu Deus, então é verdade — sussurrou.
O coração parecia prestes a explodir, mas ela não soltou os braços. Sim,
a pele de Mael, igual a esta, e a pele de Maharet, igual a esta, e todos os outros.
Sim, iguais a esta! Real, mas não verdadeira. Sempre. Tudo ali nos braços dela,
ela agora sabia de tudo, era tarde demais para que a impedissem!
Ergueu a mão esquerda e agarrou um grosso chumaço dos cabelos dele.
Ao abrir os olhos viu que ele lhe sorria, viu a pele branca, brilhante e sem poros,
os caninos em ponta.
— Demônio! — sussurrou. Estava rindo como uma louca. Rindo e
chorando.
— Te amo, Jessica — ele sussurrou de volta, sorrindo como se a
estivesse tentando, os cachos louros molhados, caindo-lhe nos olhos.
Atônita, ela sentiu o braço dele em volta de seu corpo. Ele então ergueu-a
até os quadris, girando-a num círculo. Os músicos a gritar eram um borrão; as luzes eram violentos traços de branco, vermelho. Ela gemia, mas continuava de
olhos fixos nele, nos olhos dele — real. Agarrou-se em desespero, pois parecia
que ele pretendia jogá-la bem alto em cima da multidão. Então ele a pousou no
chão e inclinou a cabeça, seus cabelos roçando o rosto dela, e ela sentiu os lábios
dele sobre sua boca.
A música pulsante diminuiu de volume, como se ela tivesse mergulhado
no mar. Sentiu-o respirar dentro de si, suspirar de encontro a ela, os dedos macios
deslizando, subindo-lhe pelo pescoço. Ela tinha os seios apertados contra o pulsar
do coração dele; e uma voz falava com ela, pura, como uma voz já fizera havia
muito tempo, uma voz que a conhecia, uma voz que compreendia suas perguntas
e sabia como respondê-las.
O mal, Jesse. Como você sempre soube.
Mãos a agarraram e a puxaram para trás. Mãos humanas. Ela estava
sendo separada dele. Gritou.
Ele a encarava, perplexo. Estava mergulhando fundo, muito fundo em
seus sonhos, buscando algo de que se lembrava apenas vagamente. O banquete
dos funerais; as gêmeas ruivas ajoelhadas a cada lado do altar. Mas a lembrança
não durou mais que uma fração de segundo, e desapareceu. Ele ficou
desconcertado; seu sorriso fulgurou novamente, impessoal, como uma das luzes
que a cegavam.
— Linda Jesse! — exclamou, erguendo a mão como se em despedida. Ela
estava sendo carregada para' fora do palco, para longe dele.
Quando a colocaram no chão, estava rindo.
Sua camisa branca estava suja de sangue. As mãos estavam cobertas de
pálidas manchas de sangue salgado. Sentia que conhecia esse sabor. Jogou a
cabeça para trás e riu; e era tão curioso não conseguir ouvir seu grito, apenas
senti-lo, sentir o estremecimento percorrê-la, saber que estava chorando e rindo
ao mesmo tempo. O guarda disse-lhe algo em tom grosseiro, ameaçador. Mas
aquilo não tinha importância.
A multidão engolfava-a novamente, empurrava-a, afastava-a do centro.
Um sapato pesado esmagou-lhe o pé direito. Ela tropeçou, virou-se, deixou-se empurrar ainda mais violentamente em direção às portas.
Agora não fazia diferença. Ela sabia. Sabia de tudo. A cabeça girava. Não
conseguiria ficar de pé, se não fossem os corpos que a rodeavam. E nunca sentira
tamanho abandono. Nunca sentira tanto alívio.
A louca cacofonia da música não cessara; rostos brilhavam e
desapareciam numa esteira de luz colorida. Ela sentia cheiro de maconha e
cerveja. Sede. Sim, beber uma coisa, alguma coisa gelada. Ergueu a mão e
lambeu o sal e o sangue. O corpo estremeceu, vibrou, como tantas vezes à beira
do sono. Um tremor leve e delicioso que significava que os sonhos estavam
chegando. Tornou a lamber o sangue e fechou os olhos.
Foi de repente que sentiu-se passar para um espaço aberto. Ninguém a
empurrava. Ergueu os olhos e viu que tinha chegado à porta, à rampa
escorregadia que descia uns três metros até o saguão. A multidão estava atrás e
acima dela. Ali ela poderia descansar. Estava tudo bem.
Deslizou a mão pela parede gordurosa, pisando no mar de copos de papel,
uma peruca barata, de cachos amarelos, caída no chão. Deixou a cabeça pender
para trás e simplesmente descansou, a áspera luz do saguão brilhando em seus
olhos. Tinha gosto de sangue na ponta da língua. Sentia que ia chorar de novo,
uma coisa perfeitamente correta. Naquele momento não havia passado ou
presente, não havia necessidade, e o mundo inteiro estava mudado, das coisas
mais simples às mais grandiosas. Ela estava flutuando no centro do mais sedutor
estado de paz e aceitação que jamais conhecera. Ah, se ao menos pudesse
contar essas coisas a David.... Se de algum modo pudesse compartilhar esse
segredo enorme, avassalador!
Alguma coisa tocou nela. Alguma coisa hostil. Com relutância virou-se e
viu a seu lado uma figura gigantesca. Que é? Lutou para vê-la com clareza.
Membros ossudos, cabelos negros penteados para trás, pintura vermelha
na boca desagradável, mas a pele, a mesma pele. E os dentes em forma de
presas, não-humanos. Um deles!
Talamasca?
Era como um sibilar que atingiu-a no peito. Instintivamente ergueu os braços e cruzou-os sobre os seios, dedos agarrados aos ombros.
Talamasca?
Não produzia som, no entanto o ódio que transmitia era ensurdecedor.
Ela tentou recuar, mas a mão dele agarrou-a, dedos ferindo seu pescoço.
Tentou gritar quando foi erguida do chão.
Então voou pelo saguão, sem parar de gritar até sua cabeça bater com
violência na parede.
Escuridão. Via a dor que brilhava em amarelo e depois branco, ao viajar
por sua coluna vertebral e espalhar-se em milhões de ramificações por seus
membros. O corpo ficou dormente. Atingiu o chão com outro choque de dor no
rosto e nas palmas abertas das mãos, e então girou.
Não conseguia enxergar. Talvez os olhos estivessem fechados, mas o
engraçado era que, se estavam, ela não conseguia abri-los. Ouvia vozes, gente
gritando. Um apito, ou uma campainha. Houve um ruído trovejante, mas tratava-se
da multidão aplaudindo lá dentro. Pessoas discutiam perto dela.
Alguém falou, bem perto de seu ouvido:
— Não toque nela. O pescoço está quebrado! Pescoço quebrado? Isso
não é fatal?
Alguém colocou a mão em sua testa. Mas ela não conseguia senti-la
realmente, a não ser como uma sensação borbulhante, como se estivesse com
muito frio, andando na neve, abandonada por todo sentimento real. Não consigo
enxergar.
— Escute, meu bem. — Voz de rapaz. Uma dessas vozes que se pode
ouvir em Boston ou Nova Orleães ou Nova York. Bombeiro, tira, salvador dos
feridos. — Vamos cuidar de você, meu bem. A ambulância já vem. Agora fique
imóvel, meu bem. e não se preocupe.
Alguém tocando em seu seio. Não, pegando os documentos em seu bolso,
Jessica Miriam Reeves. Sim.
Estava de pé ao lado de Maharet e ambas olhavam para o mapa
gigantesco, com todas as suas luzinhas. E ela entendeu. Jesse nascida de Miriam,
nascida de Alice, nascida de Carlotta, nascida de Jane Marie, nascida de Anne, nascida de Janet Belle, nascida de Elizabeth, nascida de Louise, nascida de
Frances, nascida de Frieda...
— Com licença, por favor, somos amigos dela...
David.
Estavam erguendo-a; ouviu-se gritar, mas não tinha pretendido gritar. Viu
novamente a tela e a grande árvore de nomes. "Frieda, nascida de Dagmar,
nascida de..."
— Cuidado, agora, cuidado! Droga!
O ar modificou-se; ficou frio e úmido; ela sentia a brisa por cima do rosto;
então perdeu completamente a sensação nas mãos e nos pés. Sentia as
pálpebras, mas não conseguia movê-las.
Maharet estava falando:
— Veio da Palestina, desceu a Mesopotâmia e depois subiu devagarinho
a Ásia Menor e entrou na Rússia, e de lá na Europa Oriental. Está entendendo?
Aquilo era um carro fúnebre ou uma ambulância, e parecia silenciosa
demais para ser ambulância, e a sirene, embora constante, vinha de muito longe.
Que acontecera a David? Ele não se afastaria, a não ser que ela estivesse morta.
Mas como é que David podia estar ali? Dissera que nada poderia induzi-lo a vir.
David não estava ali. Ela deve ter imaginado aquilo. O engraçado era que Miriam
também não estava ali.
— Santa Maria, Mãe de Deus. . . agora e na hora da nossa morte...
Prestou atenção: estavam disparando pela cidade; sentiu quando viraram
uma esquina. Mas onde estava seu corpo? Não conseguia senti-lo. Pescoço
quebrado: isso certamente significava que ela tinha que estar morta.
Que era aquilo, a luz que ela avistava através da floresta? Um rio? Parecia
largo demais para ser um rio. Como atravessar? Mas não era Jesse quem estava
caminhando na floresta, e agora ao longo da margem do rio. Era alguém mais. No
entanto ela conseguia ver as mãos à sua frente afastando os cipós e as folhas
molhadas, como se fossem suas mãos.
Quando baixava o olhar via os cabelos vermelhos em cachos
emaranhados, cheios de pedaços de folhas e terra. . .
— Está me ouvindo, meu bem? Estamos com você. Estamos cuidando de
você. Seus amigos estão em outro carro atrás de nós. Não se preocupe.
Ele disse outras coisas. Mas ela perdeu o fio. Não conseguia ouvi-lo,
apenas o tom de carinho e cuidado. Por que ele sentia tanta pena? Nem a
conhecia! Será que sabia que todo aquele sangue não era seu? As mãos?
Culpada. Lestat tentara dizer-lhe que isso era o mal, mas o aviso tivera tão pouca
importância, era tão impossível relacioná-lo ao resto! Não que ela não se
importasse com o certo e o errado; era que no momento isso era maior. Saber. E
ele tinha falado como se ela pretendesse fazer alguma coisa, e ela não tinha
pretendido fazer nada.
Por isso morrer com certeza estava bem. Se ao menos Maharet pudesse
entender. . . E pensar que David estava com ela, no carro logo atrás! David
conhecia alguma coisa da história, e teriam a ficha dela. Reeves, Jessica. E seria
mais evidência. "Um de nossos devotados membros, definitivamente resultado
de... perigosíssimo. . . nunca, em quaisquer circunstâncias, tentar um contato..."
Estava sendo movida novamente. Ar fresco, cheiro de gasolina e éter.
Sabia que logo do outro lado daquela dormência, daquela escuridão, havia uma
dor terrível, e era melhor ficar imóvel e não tentar ir lá. Deixe que a carreguem;
deixe que empurrem a maca pelo corredor.
Alguém chorando. Uma menininha.
— Está me ouvindo, Jessica? Quero que saiba que está no hospital e
estamos fazendo todo o possível. Seus amigos estão lá fora. David Talbot e Aaron
Lightner. Dissemos a eles que você tem que ficar imóvel. . .
Naturalmente. Quando se quebra o pescoço, ou se morre na hora ou se
morre ao se mexer. Era isso. Muitos anos antes ela tinha visto num hospital uma
jovem de pescoço quebrado. Lembrava-se agora. E o corpo da jovem estava
amarrado a uma enorme estrutura de alumínio. De vez em quando uma
enfermeira movia a estrutura para mudar a posição da garota. Vocês vão fazer
isso comigo?
Ele estava falando novamente, mas dessa vez estava mais distante. Ela
caminhou um pouco mais depressa através da floresta, para chegar mais perto, escutar acima do barulho do rio. Ele estava dizendo. ..
— ... é claro que podemos fazer tudo isso, podemos fazer esses testes,
naturalmente, mas vocês têm que entender: o ferimento é fatal. A parte traseira do
crânio foi completamente esmagada. Dá para ver o cérebro. E o estrago causado
ao cérebro é enorme. Em algumas horas ele vai começar a inchar, se é que vai
levar tudo isso. ..
Filho da puta, você me matou. Jogou-me contra a parede. Se eu pudesse
mexer alguma coisa — as pálpebras, os lábios! Mas estou presa aqui dentro. Não
tenho mais corpo, mas estou presa aqui dentro! Quando era pequena, costumava
achar que a morte ia ser assim. A gente fica presa dentro da cabeça, na sepultura,
sem olhos para ver ou boca para gritar. Durante anos e anos e anos.
Ou então fica vagando pelo reino do lusco-fusco com os fantasmas
pálidos; pensando que está viva, quando na verdade está morta. Meu querido
Deus, tenho que saber quando estou morta. Tenho que saber quando começou!
Seus lábios: havia uma levíssima sensação. Alguma coisa úmida, morna.
Alguma coisa separando-lhe os lábios. Mas não há ninguém aqui, há? Estavam lá
fora no corredor, e o quarto estava deserto. Ela saberia se houvesse alguém lá.
No entanto conseguia sentir o gosto do fluido morto que jorrava para dentro da
sua boca.
Que é isso? Que é que está me dando? Não quero perder a consciência!
Durma, minha amada.
Não quero. Quero sentir quando morrer. Quero saber!
Mas o líquido enchia-lhe a boca, e ela engoliu. Os músculos da garganta
estavam vivos. Delicioso, aquele gosto, o sal. Ela conhecia esse sabor! Conhecia
aquela deliciosa sensação borbulhante! Sugou com mais força. Podia sentir a pele
do rosto voltar à vida, e o ar movendo-se à sua volta. Podia sentir a brisa
passando pelo quarto. Um delicioso calor descia-lhe pela espinha, percorria-lhe as
pernas e os braços, pelo mesmo caminho que a dor percorrera, e todo o seu corpo
lhe voltava.
Durma, minha amada.
As costas da cabeça tintilavam e a sensação atravessou a raiz dos cabelos.
Os joelhos estavam machucados mas as pernas não estavam feridas e
ela poderia caminhar novamente, e conseguia sentir o lençol debaixo da mão.
Teve vontade de erguê-la, mas era cedo demais para isso, cedo demais para
mover-se.
Além disso, estava sendo erguida, carregada.
E era melhor dormir agora. Pois se isso era a morte. . . então estava muito
bem. As vozes que mal conseguia ouvir, homens discutindo, ameaçando, isso não
tinha importância agora. Parecia que David estava a gritar por ela. Mas que era
que David queria que ela fizesse? Morresse? O médico estava ameaçando
chamar a polícia. A polícia não podia fazer coisa alguma agora. Aquilo era quase
engraçado.
Desceram a escada, lance após lance. Delicioso ar fresco.
O som do trânsito ficou mais alto: um ônibus que passava. Ela antes
nunca tinha gostado desses sons, mas agora eram como o próprio vento,
igualmente puros. Estava sendo ninada novamente, com suavidade, como se num
berço. Sentiu o carro movimentar-se com um tranco súbito, e depois a velocidade.
Miriam estava ali e queria que Jesse olhasse para ela, mas Jesse agora estava
cansada demais.
— Não quero ir, mamãe.
— Mas, Jesse, por favor. Ainda é tempo. Você ainda pode vir! — Como
David chamando por ela. "A Jessica!"

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora