capítulo 16- LESTAT: O REINO DOS CÉUS

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Caribe. Haiti. O Jardim de Deus.
Postei-me no topo do monte ao luar e tentei não ver aquele paraíso.
Tentei visualizar aqueles que amava. Estariam ainda reunidos naquela floresta de
contos de fadas, de árvores monstruosas, onde eu vira minha mãe caminhar? Se
ao menos pudesse ver seus rostos, ouvir suas vozes.. . Marius, não seja o pai
zangado; ajude-me! Ajude-nos a todos! Não desisto, mas estou perdendo. Estou
perdendo a alma e a mente. Meu coração já se foi: pertence a ela.
Mas eles estavam fora do meu alcance; uma grande amplidão nos
separava; eu não tinha forças para vencer aquela distância.
Em vez disso olhei para as colinas verdejantes, agora enfeitadas com
minúsculas fazendinhas, um mundo de livro de figuras, com flores em profusão,
poinsétias vermelhas altas como árvores. E as nuvens sempre em mudança,
levadas como altos veleiros pelos ventos poderosos. O que os primeiros europeus
pensaram quando contemplaram essa terra fecunda, cercada pelo mar brilhante?
Que era o Jardim de Deus?
E pensar que eles tinham trazido tanta mortandade, os nativos destruídos
em poucos anos pela escravidão, pelas doenças, pela crueldade sem fim! Nem
um único descendente existe daqueles seres pacíficos que respiravam esse ar
fragrante e colhiam das árvores as frutas que amadureciam durante todo o ano, e
talvez pensassem que seus visitantes eram deuses que não deixariam de lhes
retribuir a generosidade.
Agora, lá embaixo nas ruas de Port-au-Prince, conflitos e mortes, e não
causados por nós. Simplesmente a imutável história desse lugar sanguinolento,
onde a violência floresceu durante quatrocentos anos como as flores florescem;
porém a visão das colinas erguendo-se na névoa comovia o coração.
Mas tínhamos feito nossa obra direitinho — ela, por ter feito, e eu por nada
ter feito para impedi-la — nas aldeias espalhadas ao longo da estrada
serpenteante que levava a esse bosque no topo do monte. Povoados de casinhas em tons pastéis, e bananeiras silvestres, e o povo tão pobre, tão faminto! Mesmo
agora as mulheres cantavam seus hinos e, à luz de velas e da igreja em chamas,
enterravam os mortos.
Estávamos sozinhos, muito além do final da estrada estreita, onde a
floresta crescera novamente, escondendo as ruínas desta velha casa que
antigamente pairava acima do vale como uma fortaleza. Séculos se passaram
desde que os plantadores saíram daqui; séculos desde que dançavam, cantavam
e bebiam seu vinho dentro desses aposentos em ruínas enquanto os escravos
choravam.
Por cima das paredes de tijolos trepavam as buganvílias, fluorescentes à
luz da lua. £ do chão de laje crescera uma imensa árvore cheia de botões alvos,
empurrando com seus galhos engelhados os últimos remanescentes das velhas
traves de madeira que sustentavam o telhado.
Ah, ficar aqui para sempre, e com ela! E esquecer todo o resto: nada de
morte, nada de matar...
Ela suspirou. Disse:
— Este é o Reino dos Céus.
Na aldeiazinha lá embaixo, as mulheres tinham perseguido os homens
com porretes nas mãos. E o sacerdote vodu havia gritado suas velhas maldições
quando elas o agarraram no cemitério. Eu abandonara a cena da carnificina e
subira a montanha sozinho. Fugindo, furioso, incapaz de continuar assistindo.
E ela viera atrás, encontrando-me nestas ruínas, agarrado a algo que
conseguia entender — o velho portão de ferro, o sino enferrujado; as colunas de
tijolos cobertas de trepadeiras; coisas feitas por mãos humanas, que duravam. Ah,
como ela zombara de mim!
Aquele sino chamara os escravos, declarou; essa era a moradia daqueles
que inundaram esta terra de sangue; por que eu ficava magoado, a ponto de fugir,
por causa dos hinos das almas simples que tinham sido exaltadas? Tomara que
todas as casas como essa virassem ruínas! Nós discutimos. Brigamos de verdade,
como namorados.
— É isso que você quer? — ela perguntara. — Nunca mais provar sangue?
— Eu era um ser simples. Perigoso, sim, mas simples. Fazia o que fazia
para ficar vivo.
— Ah, você me entristece. Tanta mentira... Que posso fazer para que
entenda? Você é tão cego, tão egoísta!
Tornei a vislumbrar a dor em seu rosto, o súbito clarão de sofrimento que
a humanizava tão completamente. Estendi os braços para ela.
E durante horas ficamos nos braços um do outro — pelo menos parecia.
E agora a paz, a imobilidade; afastei-me da borda do rochedo e abracei-a
novamente. Ouvi-a dizer, olhando para as enormes nuvens através das quais a
lua derramava sua pálida claridade:
— Este é o Reino dos Céus.
Essas coisas simples não tinham mais importância; deitado ao lado dela,
ou sentados num banco de pedra, ou de pé, braços a rodeá-la, aquilo era pura
felicidade. E eu beberá novamente o néctar, seu néctar, mesmo chorando e
pensando: ora, bem, você está se dissolvendo como uma pérola no vinho. Você
acabou, seu pequeno demônio. Você sabe. não é, que está se mesclando a ela.
Você ficou vendo-os morrer; você ficou olhando.
— Não há vida sem morte — ela murmurou. — Agora sou o caminho para
a única esperança de vida sem luta que pode existir algum dia.
Senti seus lábios em minha boca. Perguntei-me: ela alguma vez faria o
que fizera no santuário? Nós nos enlaçaríamos daquela maneira, bebendo o
sangue aquecido um do outro?
— Escute os cânticos nas aldeias, você consegue ouvi-los.
— Sim.
— E tente escutar os sons da cidade lá embaixo. Sabe até que ponto a
morte reina na cidade esta noite? Quantos estão sendo assassinados? Sabe
quantos mais morrerão nas mãos dos homens, se não modificarmos o destino
deste lugar? Se não o erguermos para uma nova visão? Sabe há quanto tempo
dura esta batalha?
Há muitos séculos, em minha época, esta tinha sido a mais rica colônia da coroa francesa. Rica em tabaco, anil, café. Fortunas eram feitas aqui numa única
temporada. E agora as pessoas cavavam a terra; caminhavam descalças pelas
ruas sujas de suas cidades; metralhadoras matraqueavam na cidade de
Port-au-Prince; os mortos, em suas camisas de algodão coloridas, jaziam aos
montes no chão calçado de pedras. As crianças recolhiam em latas a água das
sarjetas. Os escravos se rebelaram; os escravos venceram; os escravos perderam
tudo.
Mas é seu destino, seu mundo; eles são humanos. Ela riu baixinho.
— E nós, somos o quê? Somos inúteis? Como justificamos o que somos?
Como podemos ficar olhando aquilo que não estamos dispostos a modificar?
— E se der tudo errado, e se o mundo ficar pior, um grande horror final,
impensável, irrealizável, e então? E todos esses homens sepultados, a terra inteira
um cemitério, uma pira fúnebre. E nada melhora. Está errado, errado!
— Quem disse que está errado?
Não respondi.
— Marius? — Ela riu zombeteiramente. — Não percebe que agora não
existem pais? Zangados ou não?
— Existem irmãos. E existem irmãs — retruquei. — E uns nos outros
encontramos nossos pais e nossas mães, não é assim?
Ela tornou a rir, dessa vez com suavidade.
— Irmãos e irmãs... — falou. — Gostaria de ver seus verdadeiros irmãos e
irmãs?
Ergui a cabeça do ombro dela. Beijei-lhe a face.
— Sim, quero vê-los. — Meu coração disparara novamente. — Por favor
— falei, beijando-lhe a garganta, as faces, os olhos fechados. — Por favor...
— Beba mais — ela sussurrou.
Senti seu seio crescer de encontro a mim. Apertei os dentes em sua
garganta e o pequeno milagre aconteceu novamente, o rompimento súbito da
crosta, e o néctar jorrou para dentro de minha boca.
Uma grande onda quente me consumiu. Nenhuma gravidade; nenhum
tempo ou lugar específicos. Akasha.
Então vi as sequóias; a casa com as luzes ardendo dentro dela, e, no
aposento no topo da alta montanha, a mesa e todos eles em volta, os rostos
refletidos nas paredes de vidro escuro, e o fogo dançando na lareira. Marius,
Gabrielle, Louis, Armand. Estão juntos e estão a salvo! Estarei sonhando? Estão
ouvindo uma mulher de cabelos ruivos. E eu conheço esta mulher. Já vi esta
mulher!
Ela estava no sonho das gêmeas ruivas.
Mas quero ver isso — esses imortais reunidos à mesa. A jovem ruiva,
aquela ao lado da mulher: eu já a vi também. Mas quando ela estava viva. No
show, no frenesi, eu a abraçara e encarara seus olhos enlouquecidos. Beijara-a e
dissera seu nome; e foi como se um poço se abrisse a meus pés, e eu estava
caindo dentro daqueles sonhos das gêmeas que nunca consegui realmente
recordar. Paredes pintadas. Templos.
Tudo desapareceu de repente. Gabrielle! Mamãe! Tarde demais. Eu
estendi a mão, mas estava rodopiando na escuridão.
Você agora tem todos os meus poderes. Só precisa de tempo para
aperfeiçoá-los. Pode trazer a morte, pode mover a matéria, pode criar o fogo.
Agora está pronto para ir até eles.
Mas vamos deixar que terminem suas fantasias, seus planos estúpidos,
suas discussões. Vamos mostrar-lhes um pouco mais de nosso poder...
Não, por favor, Akasha, por favor, vamos até eles.
Ela afastou-se de mim e me bateu.
Cambaleei com o choque. Tremendo, gelado, senti a dor espalhar-se
pelos ossos do meu rosto, como se os dedos dela ainda me apertassem. Mordi os
lábios de raiva, deixando a dor crescer e depois diminuir. Apertei os punhos de
raiva e nada fiz.
Ela caminhou pelas pedras com passos bruscos, os cabelos
balançando-se em suas costas. E então parou junto ao portão desmoronado, os
ombros ligeiramente erguidos, as costas curvadas como se ela se dobrasse ao
meio.
As vozes cresceram; chegaram ao máximo antes que eu conseguisse controlá-las. Então tornaram a diminuir, como a água recuando depois de uma
grande cheia.
Vi novamente as montanhas à minha volta; vi a casa em ruínas. A dor no
rosto desaparecera, mas eu estava tremendo.
Ela voltou-se e olhou para mim, tensa, rosto sombrio, olhos ligeiramente
estreitados.
— Eles significam muito para você, não é? Que acha que vão fazer, ou
dizer? Acha que Marius vai me desviar de meu caminho? Conheço Marius como
você jamais poderia conhecê-lo. Conheço cada atalho de sua mente. Ele é
ambicioso, como você é ambicioso. Que pensa que sou, tão facilmente
influenciável? Nasci Rainha. Sempre governei; mesmo no santuário eu governava.
— De repente seus olhos ficaram opacos. Ouvi as vozes, um murmúrio vago que
crescia. — Governava, mesmo que apenas nas lendas; mesmo que apenas na
mente daqueles que vinham prestar-me tributos. Príncipes que tocavam para mim,
que me traziam oferendas e preces. Que quer de mim agora? Que por você eu
renuncie ao meu trono, ao meu destino?
Que resposta eu poderia dar?
— Você consegue ler meu coração — falei. — Sabe o que quero: que
você vá até eles, que lhes dê uma chance de falar dessas coisas, exatamente
como deu a mim. Eles têm palavras que eu não tenho. Sabem coisas que eu não
sei.
— Mas, Lestat, eu não os amo. Não os amo como amo você. Então que
me importa o que dizem? Não tenho paciência para eles!
— Mas precisa deles. Disse que precisava. Como pode começar sem
eles? Quero dizer começar de verdade, não com essas aldeias perdidas. Estou
falando das cidades, onde as pessoas vão lutar. Seus anjos, foi assim que você os
chamou.
Ela sacudiu a cabeça tristemente.
— Não preciso de ninguém — disse. — A não ser... A não ser...
Ela hesitou, e então seu rosto ficou rígido de pura surpresa. Não consegui
controlar uma exclamação, uma breve expressão de tristeza. Pensei ver seus olhos se apagarem; e parecia que as vozes cresciam de novo, não em meus
ouvidos, mas nos dela; e que ela me encarava, mas não me via.
— Mas destruirei vocês todos se precisar — disse, distraída, os olhos me
procurando sem me encontrarem. — Acredite. Pois desta vez não serei derrotada;
não desistirei. Verei meus sonhos realizados.
Afastei o olhar dela; olhei para o portão desabado, a borda irregular do
rochedo, o vale lá embaixo. O que eu daria para livrar-me daquele pesadelo?
Estaria disposto a morrer por minhas próprias mãos? Meus olhos encheram-se de
lágrimas, contemplando os campos escuros. Era covardia pensar nisso; tudo
aquilo era culpa minha e agora não havia escapatória para mim.
Ela estava imóvel, escutando; e então pestanejou. Os ombros
curvaram-se como se ela carregasse um grande peso dentro de si.
— Por que não acredita em mim? — perguntou.
— Abandone isso! — respondi. — Dê as costas a essas visões! — Fui até
ela e segurei-lhe os braços, e ela me encarou, atordoada. — Estamos num lugar
imemorial — continuei. — E essas pobres aldeias que conquistamos são as
mesmas há milhares de anos. Deixe-me mostrar-lhe o meu mundo, Akasha!
Deixe-me mostrar-lhe uma ínfima parte dele! Venha comigo, como um
espião nas cidades, não para destruir, mas para ver! Os olhos dela brilhavam
novamente; a lassidão se evaporava. Ela me abraçou; de súbito senti vontade de
beber mais sangue. Era tudo em que conseguia pensar, mesmo tentando resistir;
mesmo chorando por causa da minha fraqueza de vontade. Eu queria o sangue.
Desejava-a e não conseguia lutar contra isso; no entanto, minhas antigas
fantasias me voltaram, aquelas visões distantes em que me imaginava
despertando-a e levando-a comigo aos teatros, aos museus e às salas de
concertos, pelas grandes capitais e seus repositórios de todas as coisas belas e
imperecíveis que homens e mulheres tinham fabricado ao longo dos séculos,
artefatos que transcendiam todo o mal, todos os erros, toda a falibilidade da alma
individual.
— Mas que é que eu tenho a ver com coisas tão insignificantes, meu
amor? — ela murmurou. — E você queria me ensinar sobre o seu mundo? Ah, tanta vaidade! Sou além do tempo, como sempre fui.
Mas agora olhava para mim com uma expressão tristíssima. Sofrimento
era o que eu via nela.
— Preciso de você — murmurou. E pela primeira vez seus olhos
encheram-se de lágrimas.
Não consegui suportar. Senti os arrepios que sempre me vinham nos
momentos de dor surpreendente. Mas ela levou os dedos aos meus lábios, para
silenciar-me.
— Muito bem, meu amor — disse. — Iremos até seus irmãos e irmãs, se
você quiser. Iremos até Marius. Mas primeiro deixe-me abraçá-lo mais uma vez,
junto ao meu coração. Sabe, não posso ser outra coisa além do que sou. Foi isto
que você despertou com suas canções; é isto que sou!
Quis protestar, negar. Queria recomeçar a discussão que nos dividiria e a
magoaria. Mas, olhando em seus olhos, não consegui encontrar as palavras. E de
repente compreendi o que acontecera.
Eu encontrara o modo de impedi-la; encontrara a chave, que estivera todo
o tempo à minha frente. Não era seu amor por mim, era sua necessidade de mim;
a necessidade de um aliado em todo o imenso reino, uma alma irmã feita do
mesmo material de que ela era feita. Ela acreditara que poderia fazer-me igual a
ela, e agora via que não podia.
— Ah, mas você está enganado — ela protestou, as lágrimas brilhando. —
Você é apenas jovem e amedrontado. — Sorriu. — Você me pertence. E se tiver
que ser, meu príncipe, vou destruí-lo.
Não falei coisa alguma. Não conseguia. Sabia o que tinha visto, mesmo
que ela não aceitasse. Nunca, em todos os longos séculos de imobilidade, ela
estivera sozinha; nunca sofrerá o isolamento definitivo. Ah, não era uma coisa
simples como Enkil a seu lado, ou Marius depondo suas oferendas a seus pés; era
algo mais profundo, infinitamente mais importante que isso; ela nunca tinha
sustentado sozinha uma guerra de raciocínio com as pessoas à sua volta!
As lágrimas desciam-lhe pelo rosto. Duas violentas faixas vermelhas. A
boca pendia frouxa; as sobrancelhas juntavam-se numa expressão sombria, embora o rosto nunca fosse outra coisa senão esplendoroso.
— Não, Lestat. Você está enganado — repetiu. — Mas agora temos que
levar isso até o fim. Se eles tiverem que morrer, todos eles, para que você me seja
fiel, assim será.
Abriu os braços. Tive vontade de me afastar, de discutir com ela
novamente, de rebater suas ameaças. Mas não me mexi quando ela se
aproximou.
Aqui; a cálida brisa caribenha, as mãos dela subindo pelas minhas costas,
seus dedos acariciando meus cabelos. O néctar novamente jorrando para dentro
de mim, inundando-me o coração. E seus lábios finalmente em minha garganta, a
picada súbita de seus dentes atravessando minha pele. Sim! Como tinha sido no
santuário, há tanto tempo, sim! Seu sangue e meu sangue. E o trovão
ensurdecedor do seu coração, sim! Era o êxtase, e no entanto eu não podia ceder;
não podia fazer isso. E ela sabia.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora