capítulo 14

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Fiquei sem fala, dominado pela tristeza. Como minhas visões de poder
eram pequenas! Vencer um mero punhado de inimigos, ser visto e amado pelos
mortais como uma imagem; encontrar um lugar qualquer no grande drama das
coisas, que era infinitamente maior que eu, um drama cujo estudo ocuparia a
mente de um ser durante mil anos. E subitamente estávamos fora do tempo, além
da justiça, capazes de derrubar sistemas inteiros de pensamento. Ou era apenas
uma ilusão? Quantos outros tinham tentado alcançar tal poder, de uma forma ou
de outra?
— Não eram imortais, meu amado. — Era quase uma súplica.
— Mas nós somos imortais por acidente — retorqui. — Somos coisas que
nunca deveriam ter existido.
— Não diga isto!
— Não posso fazer nada.
— Agora não tem importância. Você não consegue entender a pouca
importância de qualquer coisa. Não lhe dou uma razão sublime para o que estou
fazendo porque minhas razões são simples e práticas; como nós nascemos é
irrelevante. O que importa é que sobrevivemos. Não entende? Aí está a beleza de
tudo isso, a beleza de onde todas as outras belezas nascerão: que nós tenhamos
sobrevivido.
Sacudi a cabeça. Estava em pânico. Vi novamente o museu que os
camponeses da ilha acabavam de incendiar. Vi as estátuas enegrecidas,
tombadas no chão. Uma horrível sensação de perda me dominou.
— A História não tem importância — ela continuou. — A Arte não tem
importância. Essas coisas representam continuidades que na realidade não
existem. Elas suprem nossa necessidade de um padrão, nossa fome de um
sentido para as coisas. Mas no fim somos enganados. Temos que criar esse
sentido.
Dei-lhe as costas. Não queria ser influenciado por sua firmeza ou sua
formosura, pelo brilho da luz em seus olhos negros. Senti suas mãos em meus
ombros, seus lábios em meu pescoço.
— Depois de passados anos, quando meu jardim tiver desabrochado em
muitos verões e adormecido durante muitos invernos; quando os velhos costumes
de estupro e guerra forem apenas lembranças, e as mulheres assistirem a filmes
antigos cheias de pasmo por tais coisas terem sido feitas; quando o jeito feminino
estiver inculcado em cada membro da população, de um modo natural, como a
agressividade é inculcada agora, então talvez os machos possam voltar. Seu
número pode aumentar aos poucos. As crianças crescerão num ambiente onde o
estupro é impensável, onde a guerra é inimaginável. E então... então pode haver
homens. Quando o mundo estiver pronto para eles.
— Não vai dar certo. Não pode dar certo!
— Por que diz isso? Vamos estudar a natureza, como você queria fazer
agora mesmo. Saia para o jardim que cerca esta casa; estude as abelhas nas
colméias e as formigas trabalhando como sempre fizeram. São fêmeas, meu
príncipe, aos milhões. O macho é apenas uma aberração, uma necessidade
funcional. Esses animais aprenderam, muito antes de mim, o sábio truque de
limitar os machos. E agora podemos viver numa época em que os machos são
inteiramente desnecessários. Diga-me, meu príncipe: qual é a principal utilidade
dos homens hoje em dia, senão proteger as mulheres dos outros homens?
— O que faz você me querer aqui? — perguntei desesperadamente,
virando-me para encará-la. — Por que me escolheu para consorte? Pelo amor de
Deus, por que não me mata com os outros homens? Escolha outro imortal
qualquer, algum ser antigo que anseia por tal poder! Deve haver um. Não quero
governar o mundo! Não quero governar coisa alguma! Nunca quis!
O rosto dela mudou só um pouquinho. Parecia haver uma tristeza vaga,
evanescente, por um instante, que tornou seus olhos ainda mais profundos em
sua escuridão. Os lábios estremeceram como se ela quisesse dizer alguma coisa
mas não conseguisse. Finalmente respondeu:
— Lestat, ainda que todo mundo fosse destruído, eu não destruiria você.
Suas limitações são tão deslumbrantes quanto as suas virtudes, por razões que
eu própria não compreendo. Mas talvez seja mais verdadeiro dizer que o amo
porque você é tão inteiramente aquilo que está errado com tudo que é masculino: agressivo, cheio de ódio e inquietação e de eternas desculpas eloqüentes para a
violência. Você é a essência da masculinidade, e há nesta sua pureza uma
qualidade esplêndida. Mas ela precisará ser controlada. — Por você.
— Sim, meu amor. Foi para isso que nasci. Por isso estou aqui. E não
importa se ninguém apóia meu propósito; farei com que seja assim. Agora mesmo
o mundo está ardendo com fogo masculino. Ê uma guerra. Mas quando isso for
corrigido, seu fogo arderá ainda mais forte, como uma tocha.
— Akasha, você acaba de me dar razão! Não acha que as almas
femininas anseiam exatamente por esse fogo? Meu Deus, você mexeria até nas
estrelas?
— Sim, a alma anseia. Mas por vê-lo numa tocha, como mencionei, ou na
chama de uma vela. Mas não devorando as florestas, as montanhas, os vales.
Não há uma única mulher que já tenha desejado ser queimada por ele! Elas
querem a luz, meu querido, a luz! E o calor! Mas não a destruição. Como
poderiam querer? São apenas mulheres. Não são loucas.
— Está bem. Digamos que você consiga o que quer. Que comece essa
revolução e ela domine o mundo. Compreenda que não acredito que isso vá
acontecer. Mas se acontecer, não há nada que possa vir a exigir explicação pela
morte de tantos milhões? Se não existem deuses ou deusas, não há algum modo
pelo qual os próprios humanos, juntamente com você e eu, sejam obrigados a
pagar?
— É o portal para a inocência, e assim será lembrado. E nunca mais a
população masculina terá possibilidade de crescer tanto, pois quem desejaria tais
horrores outra vez?
— Force os homens a obedecer-lhe. Enlouqueça-os como enlouqueceu as
mulheres, como me enlouqueceu.
— Mas, Lestat, o caso é justamente este: eles nunca obedeceriam. Você
vai obedecer? Prefeririam morrer, como você preferiria morrer. Seria mais uma
razão para a revolta, como se elas não sobrassem. Juntar-se-iam em magnífica
resistência. Imagine, combater uma deusa! Do jeito que está sendo, já teremos
bastante disso. Eles não conseguem deixar de ser homens. E eu só poderia governar pela tirania, pelo terror. E haveria o caos. Assim, haverá um rompimento
na grande corrente de violência. Será uma era de paz completa e total.
Fiquei em silêncio. Podia pensar em mil propostas, mas todas seriam
refutadas. Ela estava demasiado segura de seus propósitos. E na verdade estava
certa em muitas coisas.
Ah, mas era uma fantasia, o mundo sem homens. O que, exatamente,
seria conseguido? Ah, não. Não aceito essa idéia nem por um instante. Nem
mesmo... No entanto a visão retornou, a mesma que eu vislumbrara naquela
aldeia miserável na selva, de um mundo sem medo.
Imagine tentar explicar a elas como os homens tinham sido. Imagine
tentar explicar que houve um tempo em que uma pessoa podia ser assassinada
nas ruas das cidades; imagine tentar explicar o que o estupro significava para o
macho da espécie... imagine! E eu via os olhos delas em mim, olhando sem
compreensão, tentando entender, tentando dar esse salto de entendimento. Senti
suas mãos macias me tocarem.
— Mas é loucura! — sussurrei.
— Ah, como você me combate, meu príncipe — ela sussurrou também.
Havia um travo de raiva, mágoa. Ela se aproximou. Se me beijasse de novo eu
começaria a chorar. Pensava que sabia o que era a beleza nas mulheres, mas ela
ultrapassava todas as palavras que eu tinha para isso.
— Meu príncipe — repetiu, num murmúrio suave. — A lógica disso é
perfeita. Um mundo onde apenas um punhado de homens são mantidos para
reprodução será um mundo feminino. E esse mundo será o que nunca
conhecemos em nossa história infeliz e sangrenta, em que homens hoje cultivam
germes em frascos para matar continentes inteiros na guerra química, e
constroem bombas que podem desviar a terra de seu caminho em volta do sol.
— E se as mulheres se dividirem em princípio feminino e masculino, como
os homens costumam fazer quando não há mulheres?
— Sabe que é uma pergunta tola. Essas distinções são apenas
superficiais. Mulheres são mulheres! Pode imaginar uma guerra feita por
mulheres? Responda honestamente. Pode? Pode conceber bandos de mulheres dedicadas à destruição? Ou ao estupro? Essas coisas são ridículas. Para as
poucas aberrações, a justiça será imediata. Mas, no geral, vai acontecer uma
coisa inteiramente imprevista. Não vê? A possibilidade de paz na terra sempre
existiu, e sempre houve pessoas que gostariam de realizá-la, preservá-la, e essas
pessoas são mulheres. Se retirarmos os homens.
Sentei-me na cama, consternado, como um mortal. Apoiei os cotovelos
nos joelhos. Meu Deus, meu Deus! Por que aquelas duas palavras me voltavam
sempre? Não havia Deus! Eu estava no quarto com Deus. . .
Ela riu triunfalmente.
— Sim, tesouro — falou. Pegou minha mão, virou-me e puxou-me para si.
— Mas diga-me, isso não o excita nem um pouquinho?
Encarei-a.
— Que quer dizer?
— Você, o impulsivo! Você, que transformou aquela criança, Claudia,
numa bebedora de sangue, só para ver o que acontecia! — Havia zombaria em
seu tom, mas também afeição. — Vamos, não quer ver o que vai acontecer se
todos os homens morrerem? Não está nem um pouco curioso? Procure a verdade
dentro da sua alma. É uma idéia interessante, não é?
Não respondi. Sacudi a cabeça.
— Não — falei finalmente.
— Covarde — ela sussurrou.
Ninguém jamais me chamara disso, ninguém!
— Covarde — ela repetiu. — Um ser pequenininho com sonhos
pequenininhos!
— Talvez não houvesse guerra, estupro ou violência — falei — se todos
os seres fossem pequeninos e tivessem sonhos pequeninos, como você diz.
Ela riu carinhosamente. Com perdão.
— Poderíamos ficar discutindo isso para sempre — murmurou. — Mas
logo saberemos. O mundo será como eu desejo que seja; e veremos o que
acontece.
Sentou-se ao meu lado e por um instante parecia que eu estava enlouquecendo. Deslizou os suaves braços nus em volta do meu pescoço. Parecia
que nunca houvera um corpo feminino mais macio, maleável e sensual que o dela.
No entanto era rija e forte.
As luzes no quarto diminuíram. E o céu lá fora parecia ainda mais vivido e
escuro em seu azul.
— Akasha... — murmurei.
Olhei para as estrelas acima do terraço aberto. Queria dizer alguma coisa
importante, que pudesse varrer todos os argumentos, mas não conseguia
raciocinar. Estava tonto; certamente por obra dela. Era um feitiço que ela me
lançava, mas saber disso não me libertava. Senti seus lábios nos meus outra vez,
e em minha garganta. Senti o cetim frio de sua pele.
— Sim, descanse agora, meu tesouro. Quando acordar, as vítimas estarão
esperando.
— As vítimas... — Eu estava quase sonhando, segurando-a nos braços.
— Mas agora precisa dormir. Ainda é jovem e frágil. Meu sangue está
agindo em você, modificando-o, aperfeiçoando-o.
Sim, destruindo-me. Destruindo meu coração e minha vontade. Eu estava
vagamente cônscio de estar me mexendo, deitando-me na cama. Caí nos
travesseiros de seda, e depois senti a seda dos cabelos dela perto de mim, o
toque de seus dedos, e novamente seus lábios em minha boca. Sangue em seu
beijo; sangue troando sob ele.
— Escute o mar — ela sussurrou. — Escute as flores desabrochando.
Agora consegue ouvi-las, sabe? Consegue ouvir as minúsculas criaturas do mar,
se prestar atenção. Pode ouvir os golfinhos cantando, pois eles cantam.
Vagando. A salvo nos braços dela; ela, a poderosa; ela, aquela que todos
temiam.
Esqueça o cheiro acre dos corpos queimando; sim, escute o mar
estourando como tiros na praia lá embaixo; escute o som de uma pétala de rosa
soltando-se e caindo no mármore. O mundo está virando um inferno, e não posso
fazer nada, e estou nos braços dela, e vou dormir.
— Isso já não aconteceu milhões de vezes, meu amor?
— ela murmurou. — Num mundo cheio de sofrimento e morte, você deu
as costas como milhões de mortais fazem todas as noites!
Escuridão. Esplêndidas visões. Um palácio ainda mais lindo que este.
Vítimas. Servos. A existência mítica dos paxás, dos imperadores.
— Sim, meu querido, qualquer coisa que você desejar. O mundo inteiro
aos seus pés. Vou construir muitos palácios para você. Elas farão isso; elas, que o
veneram. Isso não é coisa alguma. Apenas a parte mais simples. E pense na
caçada, meu príncipe. Até acontecer a morte, pense na perseguição. Pois eles
certamente fugiriam, iriam esconder-se de você, mas você os encontraria.
À luz que decrescia — pouco antes da chegada dos sonhos
— eu conseguia ver tudo isso. Via a mim mesmo viajando pelos ares,
como os heróis de antigamente, acima dos campos onde tremeluziam as fogueiras
dos acampamentos deles.
Eles viajariam em alcatéias, como lobos, através de cidades e florestas,
ousando mostrar-se apenas durante o dia — pois só então estariam a salvo de
nós. Quando a noite caísse, nós viríamos e os seguiríamos pelos pensamentos e
pelo sangue deles, e pelas confissões sussurradas das mulheres que os tinham
visto e talvez até mesmo ajudado. Para o ar livre eles poderiam correr, disparando
suas armas inúteis. E nós desceríamos e destruiríamos um por um, nossos alvos,
exceto aqueles que queríamos vivos, aqueles cujo sangue beberíamos sem
pressa, sem piedade.
E dessa guerra sairá a paz? Desse jogo horrível nascerá um jardim?
Tentei abrir os olhos. Senti o beijo dela em minhas pálpebras.
Sonhando.
Um planalto nu, o solo crestado. Alguma coisa surgindo, empurrando
torrões de terra para fora de seu caminho. Essa coisa sou eu. Essa coisa
caminhando pelo planalto árido enquanto o sol se põe. O céu ainda está cheio de
luz. Olho para o pano manchado que me cobre, mas esse não sou eu. Sou
apenas Lestat. E estou com medo. Gostaria que Gabrielle estivesse aqui. E Louis.
Talvez Louis pudesse fazê-la compreender. Ah, Louis, de todos nós o que sempre soube...
E novamente o sonho costumeiro, as ruivas ajoelhadas junto ao altar com
o corpo — o cadáver de sua mãe —, prontas para consumi-lo. Sim, é o dever
delas, seu direito sagrado, devorar o cérebro e o coração. Porém não farão isso,
porque alguma coisa horrível vai acontecer. Chegam soldados... Eu gostaria de
saber o que isso significa.
SANGUE
Despertei assustado, horas depois. O quarto esfriara um pouco. O céu
estava assombrosamente claro através das janelas abertas. E a luz que vinha dela
enchia o aposento.
— As mulheres estão esperando, e as vítimas. Elas estão com medo.
As vítimas! Minha cabeça girava. As vítimas estariam cheias de sangue
suculento. Homens, que de qualquer maneira morreriam. Jovens rapazes, todos
para mim.
— Sim. Mas venha, acabe com o sofrimento deles. Levantei-me
cambaleante. Ela colocou uma capa comprida em meus ombros, algo mais
simples que seus próprios trajes, porém quente e macio. Com as duas mãos
acariciou meus cabelos.
— Masculino e feminino. Será que a questão sempre foi só essa? —
sussurrei.
Meu corpo queria dormir mais um pouco. Mas o sangue... Ela estendeu a
mão e tocou minha face. Lágrimas de novo?
Saímos juntos do quarto para um comprido patamar com corrimão de
mármore, de onde descia uma escadaria que se curvava até um salão imenso.
Candelabros por toda parte. Lâmpadas elétricas de baixa potência criavam uma
agradável penumbra.
Exatamente no centro do salão reuniam-se as mulheres, talvez umas
duzentas ou mais, imóveis, olhando para nós, mãos postas como em oração.
Mesmo em seu silêncio elas pareciam bárbaras em meio à mobília
européia, os painéis italianos com suas bordas douradas, a lareira antiga com
seus enfeites de mármore. Subitamente pensei nas palavras dela: "A História não
tem importância, a Arte não tem importância". Sentia-me atordoado. Nas paredes havia aquelas alegres pinturas do século XVIII cheias de nuvens reluzentes e
anjos de bochechas gordas, e céus de um azul luminescente.
As mulheres não olhavam para aquela riqueza que nunca as tocara e na
realidade nada significava para elas; olhavam, sim, para a visão no patamar, que
agora desmanchava-se e materializava-se subitamente ao pé da escadaria num
clarão de luz colorida e num forte ruído sibilante.
As mulheres suspiraram e ergueram as mãos às cabeças inclinadas,
como se para protegê-las de um clarão de luz importuno. Então todos os olhos
fixaram-se na Rainha dos Céus e seu consorte, parados no tapete vermelho,
poucos metros acima do grupo, o consorte um tanto perturbado, mordendo os
lábios e tentando ver com clareza aquela coisa horrenda que estava acontecendo,
aquela horrível mistura de culto e sacrifício sangrento, enquanto as vítimas eram
trazidas.
Tão belos espécimes! Homens do Mediterrâneo, de pele morena e
cabelos escuros. Tão belos quanto as mocinhas. Homens com aqueles corpos
rijos, de bela musculatura, que durante milhares de anos inspiraram os artistas.
Olhos negros e rostos sombreados pela barba feita; e muita astúcia; e uma raiva
profunda daquelas criaturas sobrenaturais e hostis que decretaram a morte de
todos os seus irmãos.
Estavam amarrados com tiras de couro — provavelmente seus próprios
cintos e os cintos de dezenas de outros; mas as mulheres tinham trabalhado bem.
Até os tornozelos estavam atados, de modo que eles conseguiam caminhar, mas
não correr ou chutar. Despidos até a cintura, e apenas um deles tremia, mais de
raiva que de medo. Subitamente ele começou a debater-se. Os outros dois
voltaram-se, olharam para ele e começaram também a debater-se.
Mas a massa feminina cercou-os, obrigando-os a ajoelharem-se. Senti o
desejo crescer dentro de mim ao ver isso, ao ver as tiras de couro cortando a pele
morena e nua dos braços dos homens. Por que isso era tão sedutor? E as mãos
das mulheres segurando-os, essas mãos duras e ameaçadoras que sabiam ser
tão suaves! Eles não poderiam enfrentar tantas mulheres. Suspirando, eles
desistiram, mas o que tinha começado a rebelião olhou acusadoramente para mim.
Demônios, diabos, coisas do inferno, era o que sua mente lhe dizia: pois
quem mais faria tais coisas? Ah, é o início da escuridão, de uma terrível escuridão!
Mas o desejo era forte demais. Você vai morrer e eu vou fazer isso! E ele
pareceu ouvir, e compreender. E cresceu nele um ódio selvagem pelas mulheres,
repleto de imagens de estupro e vingança que me fizeram sorrir. No entanto, eu
compreendia. Até bem demais. Tão fácil desprezá-las, ofender-se por elas se
tornarem o inimigo nessa batalha imemorial, elas, as mulheres! E essa vingança
imaginada era a escuridão inominável.
Senti os dedos de Akasha em meu braço. A sensação de felicidade voltou;
o delírio. Tentei resistir, mas senti-a como antes. No entanto o desejo não foi
embora. O desejo agora estava em minha boca. Eu sentia o gosto dele.
Sim, entrar no momento; entrar na função pura; deixar que começasse o
sacrifício sangrento...
As mulheres se ajoelharam em massa, e os homens, já ajoelhados,
pareceram acalmar-se, os olhos vidrados quando olharam para nós, os lábios
frouxos e trêmulos.
Olhei para os ombros musculosos do primeiro, aquele que se revoltara.
Imaginei, como sempre faço nesses momentos, a sensação daquela garganta
áspera e mal barbeada quando meus lábios a tocassem, e meus dentes
perfurassem a pele — não a pele gelada da deusa, mas uma pele quente, salgada,
humana.
Sim, amado. Tome-o. Ele é o sacrifício que você merece. Você agora é
um deus. Tome-o. Sabe quantos o esperam?
Parecia que as mulheres sabiam o que fazer. Elas o ergueram quando
avancei um passo; ele tornou a lutar, mas foi pouco mais que um espasmo
muscular quando peguei-o nos braços. Minha mão fechou-se com demasiada
força em sua cabeça; eu não conhecia minha nova força, e ouvi os ossos
estalando exatamente quando enfiava os dentes. Mas a morte foi quase
instantânea, tão grande foi o meu primeiro gole de sangue. Estava ardendo de
fome; e a porção inteira não tinha sido suficiente. Nem perto disso!
Peguei imediatamente a vítima seguinte, tentando ir devagar, para poder
despencar-me na escuridão, como fizera tantas vezes antes, com apenas a alma
falando comigo. Sim, contando-me seus segredos enquanto o sangue jorrava para
dentro de minha boca, enquanto eu enchia a boca antes de engolir. Sim, meu irmão. Lamento, meu irmão. E então, cambaleando para a frente, pisei no cadáver
diante de mim, esmagando-o com os pés.
— Agora o último.
Nenhuma resistência. Ele me encarava em completa imobilidade, como se
uma luz qualquer lhe tivesse ocorrido, como se ele tivesse encontrado, numa
teoria ou numa crença, um socorro perfeito. Puxei-o para mim — devagar, Lestat
— e aquela foi a verdadeira fonte que eu desejava, aquela foi a morte lenta e
poderosa pela qual eu ansiava, o coração batendo como se jamais fosse parar,
um suspiro escapando-lhe dos lábios, meus olhos ainda nublados, mesmo quando
o soltei, com as imagens desvanecentes de sua vida breve e sem registro,
subitamente comprimidas num único e raro segundo de sentido.
Deixei-o cair. Agora não havia sentido algum. Havia apenas a luz diante
de mim, e o êxtase das mulheres que finalmente tinham sido redimidas através de
milagres.
O aposento estava em silêncio; nada se movia; o ruído do mar chegava
como um som distante e monótono.
Então a voz de Akasha:
Os pecados dos homens agora foram redimidos; e agora aqueles que
foram poupados serão bem cuidados, e amados. Mas nunca dêem liberdade
àqueles que ficaram, àqueles que as oprimiram.
E então, em silêncio, sem palavras distintas, veio a lição: O desejo voraz
que elas tinham acabado de testemunhar, as mortes que tinham visto em minhas
mãos, tudo aquilo deveria ser o eterno lembrete da ferocidade que vivia em todas
as coisas masculinas e que nunca mais poderia ter permissão para ser livre. Os
homens tinham sido sacrificados à personificação de sua própria violência.
Em resumo: aquelas mulheres tinham assistido a um ritual novo e
transcendente; um novo santo sacrifício da Missa. E iriam ver isso de novo; e tinham que lembrar-se sempre.
Aquele paradoxo fazia minha cabeça girar. E meus ínfimos planos não
muito anteriores estavam ali para me atormentar: desejara que o mundo dos
mortais me conhecesse, desejara ser a imagem do mal no teatro do mundo, e
assim fazer o bem...
E agora eu era mesmo essa imagem, sua personificação literal,
transformando-me num mito nas mentes daquelas almas simples, como ela tinha
prometido. E havia uma vozinha sussurrando em meu ouvido, martelando-me com
o velho ditado: tome cuidado com aquilo que desejar, pois seu desejo pode se
realizar.
Sim, aquele era o cerne da questão: tudo que eu sempre desejara estava
se tornando realidade. No santuário eu a beijara e ansiara por despertá-la, e
sonhara com seu poder; e agora estávamos juntos, ela e eu, e os hinos cresciam
à nossa volta. Hosanas. Cânticos de alegria.
As portas do palazzo foram escancaradas.
E nós partimos; subimos no ar em magia e esplendor, saímos pelas portas,
passamos acima dos telhados da antiga mansão e depois acima das águas
cintilantes do oceano, até alcançarmos a amplidão silenciosa das estrelas.
Não sentia mais medo de cair; não mais temia algo tão trivial. Porque
minha alma — insignificante como era e sempre fora — conhecia agora terrores que eu antes jamais imaginara.

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora