capítulo 11

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"Mas o que preocupava nossa mãe, mais que o assédio de Amel, era o
aviso que ele dera a respeito do mal que se aproximava de nós. Aquilo
intensificava a tristeza que ela sentira ao segurar o tablete egípcio. No entanto,
não pediu consolo ou conselho aos bons espíritos. Talvez fosse sábia demais para
isso. Não sei. Fosse qual fosse o caso, nossa mãe sabia que algo ia acontecer, e
obviamente sentia-se impotente para evitá-lo. Talvez compreendesse que às
vezes, quando tentamos impedir um desastre, fazemos exatamente o contrário.
De qualquer maneira, ela ficou doente nos dias que se seguiram, e depois fraca, e
depois incapaz de falar.
"Durante meses ficou paralisada, semi-adormecida. Passávamos noite e
dia ao seu lado, cantando para ela. Trazíamos-lhe flores e tentávamos ler seus
pensamentos. Os espíritos estavam terrivelmente perturbados, pois a amavam. E
fizeram o vento soprar na montanha, arrancando as folhas das árvores. Toda a
aldeia estava triste. Então, certa manhã, os pensamentos de nossa mãe tomaram
forma novamente, mas eram fragmentos. Vimos campos ensolarados, flores,
imagens de coisas que ela conhecera na infância; depois, apenas cores
brilhantes.
"Sabíamos que nossa mãe estava morrendo, e os espíritos também
sabiam. Fizemos o possível para acalmá-los, mas alguns deles estavam furiosos:
quando ela morresse, seu corpo atravessaria o reino dos espíritos e eles a
perderiam para sempre, e por algum tempo enlouqueceriam de dor. Mas
finalmente aconteceu, como era natural e inevitável, e saímos da caverna para
contar aos aldeões que nossa mãe ascendera para as regiões superiores. Todas
as árvores da montanha foram atingidas pelo vento criado pelos espíritos; o ar
estava cheio de folhas verdes. Minha irmã e eu chorávamos; e pela primeira vez
na minha vida achei que estava ouvindo os espíritos; achei que ouvia seus gritos e
seus gemidos no vento.
"Imediatamente os aldeões vieram fazer o que tinha que ser feito. Primeiro
nossa mãe foi colocada numa laje de pedra, como era o costume, para que todos pudessem vir apresentar seu respeito. Estava vestida com a túnica branca que
tanto amara em vida, de linho egípcio, e todas as belas jóias de Nínive e os anéis
e colares de osso que continham pedacinhos de nossas ancestrais, e que logo
passariam para nós.
"Depois de passadas dez horas, depois que centenas de pessoas vieram
vê-la, tanto de nossa aldeia quanto das aldeias vizinhas, preparamos o corpo para
o banquete fúnebre. Para qualquer outro morto da aldeia os sacerdotes fariam
essas honras; mas éramos bruxas e nossa mãe era uma bruxa; só nós
poderíamos tocar nela. E em particular, à luz dos lampiões a óleo, minha irmã e eu
removemos a túnica de nossa mãe e cobrimos todo o seu corpo com flores e
folhas frescas. Serramos seu crânio e erguemos o tampo com cuidado, de modo
que a testa ficasse intacta; removemos o cérebro e o colocamos num prato,
juntamente com os olhos dela. Então, com uma incisão igualmente cuidadosa,
removemos o coração e o colocamos em outro prato. Então cobrimos os pratos
com pesadas redomas de argila, para protegê-los.
"Os aldeões vieram e construíram um forno de tijolos em volta do corpo de
nossa mãe na laje de pedra, com os pratos ao lado dela, e acenderam o fogo
dentro do forno, sob a laje, entre as pedras sobre as quais a laje descansava, e
assim nossa mãe começou a cozinhar. Isso durou a noite inteira. Os espíritos
estavam calmos, pois o espírito de nossa mãe havia partido. Acho que o corpo
não lhes importava e o que fizéssemos em seguida também não tinha importância
para eles; mas certamente tinha para nós.
"Por sermos bruxas e por nossa mãe ter sido bruxa, só nós podíamos
consumir sua carne. Era toda nossa, por costume e por direito. Os aldeões não
poderiam participar do banquete, como poderiam em qualquer outro caso em que
dois filhos tivessem essa obrigação. Não importava quanto tempo levasse, nós
consumiríamos a carne de nossa mãe. E os aldeões vigiariam conosco. Durante a
noite, porém, enquanto os restos de nossa mãe eram preparados no forno, minha
irmã e eu deliberávamos sobre o coração e o cérebro. Dividiríamos esses órgãos,
naturalmente; e o que nos preocupava era quem deveria ficar com qual órgão,
pois tínhamos idéias arraigadas sobre esses órgãos e o que havia em cada um.
"Para muitos, naquela época, o importante era o coração. Para os
egípcios, por exemplo, o coração era o trono da consciência. Isso acontecia até
com o povo de nossa aldeia; mas nós, como bruxas, acreditávamos que o cérebro
era a morada do espírito humano, isto é, da parte espiritual de cada homem ou
mulher que era como os espíritos do ar. E nossa crença de que o cérebro era
importante vinha do fato de que os olhos eram ligados ao cérebro; e os olhos eram
os órgãos da visão. E ver era o que nós, bruxas, fazíamos; víamos dentro dos
corações, víamos o futuro; víamos o passado. Vidente era a palavra para o que
éramos; era o que 'bruxa' significava em nossa língua.
"Por outro lado, porém, estávamos discutindo apenas um ritual, pois
sabíamos que o espírito de nossa mãe tinha partido. Por respeito a ela
consumiríamos aqueles órgãos, para que não apodrecessem. De modo que foi
fácil chegar a um acordo; Mekare ficaria com o cérebro e os olhos; eu ficaria com
o coração. Mekare era mais poderosa como bruxa; era a primogênita e a que
sempre tomava a liderança, aquela que sempre falava primeiro, que agia como
uma irmã mais velha, como sempre acontece com um entre dois gêmeos. Parecia
correto que ela ficasse com o cérebro e os olhos; e eu, que sempre tivera
temperamento mais sossegado e mais lento, ficaria com o órgão que era
associado aos sentimentos profundos, ao amor: o coração.
"Ficamos satisfeitas com a divisão, e quando o céu começou a clarear
dormimos algumas horas, nossos corpos fracos de fome por causa do jejum que
nos preparara para o banquete. Pouco antes do amanhecer os espíritos nos
despertaram. Estavam fazendo o vento vir novamente. Saí da caverna; o fogo
brilhava no forno. Os aldeões que vigiavam estavam adormecidos. Com raiva,
mandei que os espíritos ficassem quietos. Mas um deles, aquele que eu mais
amava, disse que havia desconhecidos reunidos na montanha, muitos, muitos
homens, que estavam impressionadíssimos com o nosso poder e perigosamente
curiosos quanto ao banquete. 'Essas pessoas querem alguma coisa de você e
Mekare', disse-me o espírito. 'Esses homens não vieram para o bem.'
"Respondi que sempre vinham desconhecidos nos visitar; isso não
significava coisa alguma e ele precisava ficar quieto e deixar que fizéssemos o que tinha que ser feito. Mas fui até um dos homens do nosso povo e pedi que a
aldeia ficasse preparada para o caso de algum problema; que os homens
trouxessem armas quando se reunissem para o início do banquete. Não era um
pedido tão estranho; a maioria dos homens carregava armas consigo aonde quer
que fossem. Os poucos que tinham sido soldados profissionais ou que podiam
pagar uma espada costumavam usar uma; os que levavam faca guardavam-na no
cinto. Mas eu não estava muito preocupada com essas coisas; afinal, sempre
vieram desconhecidos à nossa aldeia, e era natural que viessem para aquele
acontecimento especial: a morte de uma bruxa.
"Mas vocês sabem o que iria acontecer. Viram em seus sonhos. Viram os
aldeões reunidos em volta da clareira quando o sol ergueu-se em direção ao
meio-dia. Talvez tenham visto os tijolos sendo retirados lentamente do forno que
esfriava; ou apenas o corpo de nossa mãe, enegrecido, encolhido, no entanto
pacífico em seu sono, revelado na cálida laje de pedra. Viram as flores murchas
que a cobriam, e viram o coração, o cérebro e os olhos em seus pratos.
"Viram-nos ajoelhadas de cada lado do corpo de nossa mãe. E ouviram os
músicos começarem a tocar. O que não podiam ver, mas agora sabem, é que
durante milhares de anos nosso povo reunira-se em banquetes assim. Durante
milhares de anos vivêramos naquele vale e nas encostas da montanha onde
crescia a relva alta e onde as frutas caíam das árvores. Aquela era a nossa terra,
o nosso costume, o nosso momento. O nosso momento sagrado. E, ajoelhadas
uma diante da outra, vestidas com nossos trajes mais finos e usando agora as
jóias de nossa mãe além dos nossos próprios adornos, Mekare e eu víamos diante
de nós, não os avisos dos espíritos ou a tristeza de nossa mãe quando ela tocou
no tablete do Rei e da Rainha de Kemet; víamos nossas próprias vidas - cheias
de esperanças, longas e felizes - vividas ali entre os nossos.
"Não sei por quanto tempo ficamos ali ajoelhadas, preparando nossas
almas. Lembro-me que finalmente, em consonância, erguemos os pratos que
continham os órgãos de nossa mãe; e os músicos começaram a tocar. A música
da flauta e do tambor encheu o ar em volta de nós; podíamos ouvir a respiração
leve dos aldeões e o canto dos pássaros. £ então o mal caiu sobre nós, veio tão epentinamente com o troar de passos e os gritos de guerra dos soldados egípcios,
que mal sabíamos o que estava acontecendo. Jogamo-nos sobre o corpo de
nossa mãe, procurando proteger o banquete sagrado; mas eles nos afastaram, e
vimos os pratos caírem na sujeira e a laje tombada! Ouvi Mekare gritando como
nunca antes eu ouvira um grito humano. Mas eu também gritava ao ver o corpo de
minha mãe jogado nas cinzas.
"Mas ameaças enchiam meus ouvidos, homens acusando-nos de canibais,
de selvagens que deviam ser executadas. Só que ninguém nos fez mal. Gritando
e lutando, fomos amarradas enquanto todo o nosso povo era chacinado diante de
nossos olhos. Soldados pisaram no corpo de nossa mãe; pisaram em seu coração,
seu cérebro, seus olhos. Pisaram e tornaram a pisar, nas cinzas, enquanto seus
companheiros matavam homens, mulheres e crianças de nossa aldeia. £ então,
em meio ao coro de gritos, em meio ao horrível lamento das centenas de pessoas
morrendo na encosta da montanha, ouvi Mekare clamar aos nossos espíritos por
vingança, pedir-lhes castigo para os soldados pelo que tinham feito.
"Mas o que era o vento ou a chuva para homens como aqueles? As
árvores estremeciam, parecia que a própria terra tremia; as folhas enchiam o ar,
como acontecera na noite anterior. Rochas rolavam da montanha e a poeira
erguia-se em nuvens. Mas não houve mais que um instante de hesitação, pois o
próprio Rei, Enkil, avançou e disse a seus homens que o que eles viam era
apenas um truque e que nós e nossos demônios nada mais poderíamos fazer. Era
verdadeiro o que ele dizia, e o massacre continuou. Minha irmã e eu estávamos
prontas para morrer. Mas não nos mataram. Não tinham a intenção de nos matar,
e quando nos arrastaram consigo vimos nossa aldeia em chamas, vimos os
campos de trigo silvestre em chamas, vimos todos os homens e mulheres de
nossa tribo mortos, e sabíamos que seus corpos seriam deixados ali para que os
animais e a terra os consumissem em total desrespeito e abandono."
Maharet parou de falar. Tinha feito uma pequena torre com as mãos, e agora levou as pontas dos dedos à testa, para descansar, parecia, antes de continuar.
Quando prosseguiu, sua voz estava levemente mais rouca e mais baixa, mas tão firme quanto antes.
- O que é um pequeno conjunto de aldeias? O que é um povo, ou até
mesmo uma vida? Sob a terra milhares de pessoas estão enterradas. E assim o
nosso povo, enterrado até hoje. Tudo o que sabíamos, tudo o que tínhamos sido
foi destruído no espaço de uma hora. Um exército treinado massacrara nossos
simples pastores, nossas mulheres, nossas crianças indefesas. Nossas aldeias
estavam em ruínas, os casebres demolidos; tudo que podia queimar estava em
chamas. Acima da montanha, acima da aldeia que ficava no sopé, senti a
presença dos espíritos dos mortos; uma grande nuvem de espíritos, alguns tão
agitados e confusos pela violência que agarravam-se à terra, cheios de dor e
medo, outros erguiam-se acima da carne para não sofrer mais.
"E os espíritos, que podiam fazer? Eles seguiram ncsso cortejo;
atormentavam os homens que nos carregavam numa liteira em seus ombros, duas
mulheres chorando, abraçadas, cheias de medo e de dor. Todas as noites,
quando o exército acampava, os espíritos enviavam o vento para rasgar suas
tendas e espalhá-las. Mas o Rei dizia para os soldados não terem medo. O Rei
dizia que os deuses do Egito eram mais poderosos que os demônios das bruxas.
E os espíritos estavam mesmo fazendo tudo o que eram capazes de fazer; como
as coisas não pioravam, os soldados obedeciam.
"Todas as noites o Rei mandava buscar-nos. Falava nossa língua, que na
época era bem comum, falada em todo o Vale do Tigre e do Eufrates e ao longo
dos flancos do Monte Carmel. 'Vocês são grandes bruxas', ele dizia, a voz suave e
sincera. 'Poupei suas vidas por causa disso, embora sejam comedoras de carne
como era o seu povo, e foram pegas em flagrante por mim e meus homens.
Poupei-as porque quero os benefícios de sua sabedoria. Quero aprender com
vocês, e minha Rainha também. Digam-me o que posso lhes dar para aliviar seu
sofrimento, e o farei. Agora está sob a minha proteção; eu sou o seu Rei."
"Chorando e recusando-nos a olhar para ele, sem dizer coisa alguma,
ficávamos diante dele até ele se cansar e nos mandar de volta para a liteira
apertada, um exíguo retângulo de madeira com pequenas janelas. Sozinhas
novamente, minha irmã e eu conversávamos em silêncio, ou em nossa linguagem,
a linguagem dos gêmeos, feita de gestos e palavras abreviadas que só nós duas compreendíamos. Recordávamos o que os espíritos disseram à nossa mãe; ela
tinha ficado doente depois da carta do Rei de Kemet e nunca se recuperara.
Porém não tínhamos medo. Estávamos sofrendo demais para ter medo. Era como
se já estivéssemos mortas. Tínhamos visto nosso povo massacrado, o corpo de
nossa mãe profanado. Não sabíamos o que poderia ser pior que isso. Estávamos
juntas; talvez a separação fosse pior.
"Mas durante aquela longa viagem para o Egito nós tínhamos um pequeno
consolo, que mais tarde não esqueceríamos. Khayman, o escudeiro do Rei,
olhava-nos com compaixão e fazia tudo o que podia, em segredo, para aliviar
nossa dor."
Maharet tornou a interromper-se e encarou Khayman, que estava sentado
com as mãos cruzadas diante de si na mesa, e tinha os olhos baixos. Parecia
estar profundamente mergulhado na lembrança das coisas que Maharet
descrevera. Aceitou o tributo, mas não pareceu consolar-se com ele. Então
finalmente olhou para Maharet. Parecia confuso e cheio de perguntas. Mas não as
formulou. Passeou o olhar pelos outros, aceitando também os deles, o olhar firme
de Armand e o de Gabrielle; mas permaneceu calado.
Então Maharet continuou:
- Khayman afrouxava nossas cordas sempre que podia; deixava-nos
caminhar um pouco à noite; trazia-nos carne e bebida. E demonstrava grande
bondade ao fazer essas coisas sem falar conosco, sem exigir a nossa gratidão.
Fazia isso com o coração puro. Simplesmente não gostava de ver as pessoas
sofrendo.
"Viajamos uns dez dias para chegar à terra de Kemet. Talvez tenha sido
mais, talvez menos. A certo momento da viagem os espíritos cansaram-se de
seus truques e nós, fracas e desanimadas, não os chamamos. Finalmente
mergulhamos no silêncio, apenas olhando nos olhos uma da outra de vez em
quando. Afinal chegamos a um reino como nunca tínhamos visto igual. Fomos
levadas pelo deserto escaldante até a terra rica e negra que bordejava o Rio Nilo,
a terra negra de onde se deriva a palavra Kemet; e então atravessamos o
poderoso rio de barca, com todo o exército, e entramos numa grande cidade de prédios de tijolos com telhados de palha, grandes templos e palácios feitos dos
mesmos materiais rústicos, mas tudo muito belo.
"Isso foi muito antes da época da arquitetura em pedra pela qual os
egípcios ganharam fama, os templos dos faraós que até hoje estão de pé. Mas já
existia um grande amor pelo enfeite e pela decoração, uma tendência ao
monumental. Tijolos resistentes, juncos do rio, palha, todos esses materiais
simples tinham sido usados para a construção das paredes altas, que depois eram
caiadas e pintadas com lindos desenhos. Na frente do palácio para onde fomos
levadas como prisioneiras reais havia grandes colunas feitas de enormes cipós da
floresta, que tinham sido secos, presos uns aos outros e cobertos de lama do rio;
e dentro de um pátio fechado havia sido feito um lago, cheio de botões de lótus e
rodeado de árvores em flor.
"Nunca tínhamos visto um povo tão rico quanto aqueles egípcios, gente
com tantas jóias, cabelos tão lindamente penteados, olhos pintados. E seus olhos
pintados costumavam nos perturbar, pois a pintura lhes endurecia o olhar, dando
uma ilusão de profundidade onde talvez não houvesse profundidade.
Instintivamente éramos avessas àquele artifício.
"Mas tudo que víamos simplesmente aumentava o nosso sofrimento.
Como odiávamos tudo aquilo! E podíamos sentir naquelas pessoas, embora não
compreendêssemos sua estranha língua, que elas nos odiavam e também nos
temiam. Parecia que nossos cabelos ruivos lhes causavam grande assombro; e o
fato de sermos gêmeas também provocava medo. Pois entre eles tinha sido
costume matar de vez em quando crianças gêmeas; e as ruivas eram
invariavelmente sacrificadas aos deuses. Pensava-se que isso trazia boa sorte.
Tudo isso nos era esclarecido em rompantes de compreensão ao acaso;
prisioneiras, esperávamos tristemente para ver qual seria o nosso destino.
"Como antes, Khayman foi o nosso único consolo naquelas primeiras
horas. Khayman, o escudeiro-mor do Rei, cuidou para que tivéssemos mordomias
em nossa prisão. Trouxe-nos lençóis limpos, frutas para comermos e cerveja para
bebermos. Trouxe até pentes para nossos cabelos e roupas limpas; e pela
primeira vez falou conosco. Disse que a Rainha era bondosa e gentil, que não devíamos ter medo. Sabíamos que ele estava falando a verdade; disso não
duvidávamos. Mas alguma coisa estava errada, como meses antes com as
palavras do mensageiro do Rei. Nossos sofrimentos tinham apenas começado.
"Temíamos também que os espíritos nos tivessem abandonado, que
talvez não quisessem vir àquela terra por nossa causa. Mas não os chamamos,
porque chamar e não obter resposta ... bem, isso seria mais do que poderíamos
suportar.
"Então veio a noite e a Rainha mandou nos chamar; fomos levadas até
diante da corte. Aquele espetáculo nos impressionou, mesmo desprezando-o.
Akasha e Enkil sentavam-se em seus tronos. A Rainha era então, como é hoje,
uma mulher de ombros retos e membros firmes e um rosto quase belo demais
para manifestar inteligência, um ser de beleza enfeitiçadora, com uma voz suave e
frágil. Quanto ao Rei, agora o víamos não como soldado, mas como soberano.
Tinha os cabelos trançados e usava trajes e jóias de gala. Os olhos negros eram
cheios de interesse, como sempre foram; mas ficou claro, instantes depois, que
era Akasha quem governava aquele reino e sempre governara. Akasha tinha a
linguagem, a habilidade verbal.
"Ela nos disse de imediato que nosso povo tinha sido merecidamente
castigado por suas abominações; que tínhamos sido tratados com piedade, pois
todos os comedores de carne eram selvagens e deviam sofrer morte lenta. E disse
que nós duas tínhamos sido poupadas porque éramos grandes bruxas, e os
egípcios queriam aprender conosco tudo o que tivéssemos a ensinar sobre a
sabedoria dos reinos invisíveis. E imediatamente, como se essas palavras fossem
nada, ela começou com suas perguntas. Quem eram os nossos demônios? Por
que alguns eram bons, se eram demônios? Não eram deuses? Como podíamos
fazer chuva?
"Estávamos por demais horrorizadas com sua insensibilidade e não
conseguimos responder. Ficamos perturbadas pela rudeza espiritual de seus
modos, e começamos a chorar de novo. Demos-lhes as costas e caímos nos
braços uma da outra.
"Mas outra coisa estava também se tornando nítida. Algo bem evidenciado pela maneira como aquela pessoa falava. A rapidez das palavras, a exuberância,
a ênfase que ela colocava nesta ou naquela sílaba, tudo isso nos fazia ver que ela
mentia sem saber que mentia. E olhando para as profundezas daquela mentira, de
olhos fechados, vimos a verdade que certamente ela própria negaria.
"Tinha massacrado nosso povo para nos trazer para lá! Mandara seu Rei
e seus soldados para aquela 'guerra santa' simplesmente porque tínhamos
recusado seu convite, e ela nos queria à sua mercê.
Estava curiosa a nosso respeito.
"Era isso que nossa mãe tinha visto ao segurar nas mãos o tablete do Rei
e da Rainha. Talvez os espíritos também o tivessem previsto, a seu modo. Só
agora compreendíamos toda a monstruosidade: nosso povo morrera porque
tínhamos atraído o interesse da Rainha, assim como atraímos o interesse dos
espíritos; tínhamos trazido essa desgraça para todos. Por que os soldados não
tinham simplesmente nos tirado da aldeia? Por que tinham destruído tudo o que o
nosso povo era?
"Mas ali estava todo o horror: sobre as intenções da Rainha tinha sido
jogada uma capa mortal que ela, como qualquer outra pessoa, não conseguia ver.
Convencera-se de que nosso povo devia morrer, sim, que nossa selvageria
merecia isso, apesar de não sermos egípcios e de nossa terra estar tão distante
da dela. Além disso, era muito conveniente que fôssemos poupadas e levadas
para lá para satisfazermos finalmente a sua curiosidade. E naturalmente devíamos
estar gratas e dispostas a responder suas perguntas.
"Mergulhando ainda mais fundo em sua encenação, vimos a mente que
tornava possíveis tais contradições. Essa Rainha não tinha uma moralidade
verdadeira, um sistema ético governando as coisas que fazia. Essa Rainha era um
dos muitos humanos que percebem que talvez não haja nada nem razão alguma
para qualquer coisa que possa ser conhecida. No entanto não conseguia suportar
essa idéia. Portanto criava diariamente seus sistemas éticos, tentando
desesperadamente crer neles, e todos eles eram capas para as coisas que ela
fazia por razões meramente pragmáticas. Sua guerra contra os canibais, por
exemplo, nascera mais de seu desagrado por esse costume do que por qualquer outra coisa. Seu povo em Uruk não comia carne humana, portanto ela não
aceitaria aquela coisa indecente acontecendo perto de si. Não era muita coisa
além disso. Pois nela sempre houvera um lugar escuro e cheio de desespero. E
uma grande força que a impulsionava a criar sempre um sentido qualquer, porque
não havia sentido algum.
"Entendam, não era frivolidade o que percebíamos naquela mulher. Era
uma crença infantil de que poderia fazer a luz brilhar, se quisesse, poderia mudar
o mundo para seu próprio bem; e era também uma falta de interesse no
sofrimento alheio. Sabia que as outras pessoas sofriam, mas não conseguia
pensar realmente nisso.
"Finalmente, incapazes de suportar a extensão daquela óbvia duplicidade,
viramo-nos e a estudamos, pois deveríamos enfrentá-la. Não tinha vinte e cinco
anos, aquela Rainha, e seu poder era absoluto naquela terra que ela encantara
com seus costumes de Uruk. E era quase bonita demais para ser realmente bela,
pois sua beleza superava qualquer ar de majestade ou de mistério; e a voz
continha ainda um eco infantil, que evocava uma ternura instintiva nas outras
pessoas e dava um tom levemente musical às palavras mais simples. Um eco que
achávamos muito desagradável.
"Ela não parava de perguntar. Como fazíamos nossos milagres? Como
enxergávamos no coração dos homens? De onde vinha nossa magia, e por que
afirmávamos conversar com seres invisíveis? Poderíamos conversar do mesmo
modo com os seus deuses? Poderíamos aumentar seus conhecimentos ou dar-lhe
melhor compreensão do que era divino? Estava disposta a perdoar nossa
selvageria, se fôssemos agradecidas; se nos ajoelhássemos diante dos seus
altares e entregássemos nosso conhecimento a seus deuses e a ela própria.
Enfim, expôs seus diversos assuntos com uma veemência que teria feito rir um
sábio.
"Mas aquilo despertou um ódio profundo em Mekare. Ela, que sempre
tomara a liderança em tudo, agora disse o que pensava: 'Pare com suas
perguntas. Você só fala bobagens. Vocês não têm deuses neste reino, porque os
deuses não existem. Os únicos habitantes invisíveis do mundo são os espíritos, e eles brincam com todo mundo. Rá, Osíris, esses são simples nomes inventados
com os quais vocês agradam e lisonjeiam os espíritos, e quando lhes é
conveniente eles lhes dão um pequeno sinal para que vocês saiam correndo a
lisonjeá-los ainda mais.'
"O Rei e a Rainha encararam Mekare com horror. Mas ela continuou: 'Os
espíritos são reais, mas são infantis e caprichosos. E também perigosos. Ficam
maravilhados conosco e nos invejam por sermos ao mesmo tempo espírito e
carne, coisa que os atrai e os deixa ansiosos por obedecer-nos. As bruxas como
nós sempre souberam como utilizá-los; mas para fazer isso é necessário muita
habilidade e grande poder, e isso nós temos e vocês não têm. Vocês são idiotas, e
o que fizeram para nos aprisionar é mau, é desonesto. Vocês vivem na mentira!
Mas nós não mentiremos para vocês.'
"E então, meio chorando, meio engasgada de raiva, Mekare acusou a
Rainha, diante de toda a corte, de duplicidade, de massacrar nosso povo pacífico
simplesmente para nos levar até lá. Nosso povo não caçava carne humana havia
mais de mil anos, ela informou à corte; e era um banquete fúnebre que tinha sido
profanado na nossa captura, e todo aquele mal só para que a Rainha de Kemet
pudesse ter bruxas com quem conversar, a quem fazer perguntas, bruxas de sua
propriedade cujo poder ela tentaria usar para si mesma.
"A corte estava em tumulto; nunca alguém ouvira tamanho desrespeito,
tanta blasfêmia, e assim por diante. Mas os velhos senhores do Egito, aqueles que
ainda não aceitavam inteiramente a proibição ao canibalismo sacro, ficaram
horrorizados com essa menção à profanação do banquete fúnebre. E outros, que
também temiam o castigo dos céus por não terem devorado os restos de seus
pais, emudeceram de medo. Mas em geral instaurou-se a confusão. Com exceção
do Rei e da Rainha, que estavam estranhamente silenciosos e estranhamente
intrigados.
"Akasha não nos deu qualquer resposta, e estava claro que alguma coisa
em nossa explicação soara verdadeira nas regiões mais profundas de sua mente.
Lá brilhava no momento uma curiosidade mortal.
Espíritos que fingem ser deuses?
Espíritos que invejam a carne?
Quanto à acusação de ter sacrificado nosso povo

ANNE RICE  A RAINHA DOS CONDENADOSOnde histórias criam vida. Descubra agora