Eu adormeci depois de muito esforço naquela noite. Talvez estivesse pensando demais sobre ter que limpar estábulos de cavalos alados, ou refletindo demais sobre não ter um sobrenome. O que isso significava afinal? Que eu não tinha mãe? Todo mundo tem mãe, ninguém nasce de chocadeira. Ou talvez eu fosse a primeira, só pra me tornar ainda menos atrativa pro mundo. De qualquer maneira, quando eu peguei no sono achei que fosse finalmente descansar, mas quando me dei conta eu tinha sido transportada para um ambiente diferente da minha cama no chalé 11.
Eu estava deitada em um chão de madeira frio e quando eu abri meus olhos eu dei de cara com um telhado com um buraco, ele era cheio de madeiras de suporte, para ser mais exata, treze madeiras. Ele era estilo Vitoriano e tinha um baita rombo por onde passava a luz da lua e eu podia enxergar as estrelas, contei quantas eu podia enxergar e eram treze. Me sentei no assoalho, recobrando meus sentidos que estavam muito confusos naquele momento. Dei uma olhada em volta de mim e consegui localizar que a casa era toda de madeira e toda vitoriana, logo a minha frente tinha um tapete cor-de-berinjela com 13 aves desenhadas, um aparador de madeira escura que carregava um castiçal prateado com 13 velas, um corredor mal iluminado e uma sala de estar às minhas costas. O lugar parecia muito antigo e destruído, eu não conseguia imaginar a razão pela qual eu estava lá e porque estava naquele estado.
Às minhas costas, finalmente eu senti uma presença. Antes que eu me virasse, pude perceber que era algo não-humano, poderoso, divino. Quando me virei, enxerguei uma figura alta, pálida, usava um terno todo preto e sapatos lustrosos, seu cabelo muito bem aparado e seu rosto profundo quase como de uma caveira ou de alguém muito velho e magro. Com coragem, eu encarei seus olhos e meu surpreendeu eu pensar que estava olhando para os meus próprios olhos por um segundo. A única diferença era que os meus eram amarelos e o da entidade eram castanhos escuros.
– Quantas vezes eu terei de lhe dizer até que você aprenda a me obedecer, criança? – Ele me encarou com uma seriedade tão profunda que senti vontade de me ajoelhar aos seus pés e pedir perdão. Mesmo que eu não soubesse o que eu tinha feito ou o porquê pedir desculpas. – Você sabe que eu odeio súplicas. Recomponha-se e vamos pra casa.
– Me desculpe, senhor. Eu juro que tentei tudo que eu pude. – Eu limpei meu rosto sujo de fuligem, engoli em seco o gosto de ferrugem que eu senti na minha língua. Olhei para meu próprio tronco envergonhada e percebi que eu usava um paletó preto com um 13 bordado no bolso em roxo.
Ele molhou os lábios brancos e com toda a paciência possível respondeu em tom muito grave:
– Eu sou o responsável por entregar a uma inexperiente um trabalho tão importante, foi um erro pensar que você teria essa capacidade. – Ele largou a mão sob o meu ombro me encarando de igual, minha alma pareceu ser arrancada do meu corpo e se esconder no bolsinho do terno dele. Arrancou minha dignidade do meu peito sem nem mesmo alterar as sobrancelhas. Uma lágrima de vergonha escorreu pelo meu rosto, o homem a secou com seu dedo indicador. – Se renda, criança. Você não é capaz.
– Por favor, pai. Me dá só mais uma chance, eu não vou pôr a perder novamente. – Desabei.
– Enquanto você deixar terceiros atrapalharem seus objetivos, você não tem outra chance. – Seu olhar era tão frio mas tão profundo que não senti vontade de lutar mais. Estava rendida de verdade.
– Espero que não tenhamos essa conversa novamente, ou as consequências serão graves para você. – Ele caminhou em direção a porta carregando uma bengala de aço escuro. – Você me acompanha, filha?
Concordei com a cabeça e caminhei com rapidez para perto dele. Segurei em seu braço fino e nós dois sumimos do casarão destruído.
Acordei suando muito. Ainda era noite e provavelmente umas 5 horas da manhã, todo mundo ainda dormia no chalé. Eu me sentei na cama e senti um gelo no estômago sem saber porquê. Pensando naquele sonho, me fizeram lembrar o que o Phill me dissera sobre os sonhos dos semideuses e que geralmente eles queriam dizer alguma coisa. Aquele homem era meu pai, mas será que meu pai era como no meu sonho? Rígido, frio, um pouco assustador? Ou será que as coisas estavam embaralhadas justamente porque era apenas um sonho? Eu não sabia dizer e essa era a grande droga em ter esse tipo de visão, só atrapalhava os pensamentos e não ajudava em nada até que se mostrasse real. De qualquer forma, era triste a maneira em que eu me relacionava com essa figura sem ainda nem conhecê-la, eu sempre quis ter uma família feliz e aparentemente não era bem o caso.
Ainda tinha esperanças de que aquele homem não fosse meu pai, talvez eu estivesse no corpo de outra pessoa. Não era possível que só existissem deuses ruins e rígidos, algum deles devia ser leve e divertido e aquele com certeza seria o meu pai.
Ajeitei meu cabelo atrás da orelha enquanto me sentava na cama analisando o chalé inteiro. A janela que ficava perto da minha cama dava vista para o lado de fora, uma estradinha guiando entre os chalés, algumas tochas ficavam acesas do lado de fora e de onde eu estava eu podia contar 13 tochas. 13 pontinhos brilhantes sob a escuridão, a bandeira que cobria o buraco no chalé com 13 estrelas, o enfeite de parede com 13 pontas, eu tinha 13 anos, nascida no dia 13 de outubro, chego no acampamento no dia 13 de agosto. Comecei a suar frio ainda mais intensamente do que quando eu acordara. O que isso significava? Treze, esse número. Em todo o lugar. Não fazia nenhum sentido, não havia chalé 13 algum no acampamento meio-sangue, era impossível aquilo significar alguma coisa para mim. Era ridículo para ser mais específica que justamente o número inexistente fosse o meu número.
– Eu não sei quem é você. Não sei o que você quer. Mas se quer que eu descubra alguma coisa, jogue na minha cara explicitamente pois sou burra demais pra entender charadas. – sussurrei irritadiça para qualquer entidade que estivesse brincando comigo. Pra mim o número 13 remetia aos filmes de terror em que na sexta feira 13 todo mundo era assassinado, o dia do azar, número de que coisas ruins vão acontecer com você. Não conhecia sobre os deuses que dirá qual número representava eles, principalmente porque deus nenhum tinha um chalé com número 13.
Pelo menos...bem, eu achava que todos os deuses estavam bem representados com seus devidos chalés coloridos. O deus dos céus, dos mares, do sol, da guerra e o da morte.
O da morte.
O deus da morte Hades não tinha um chalé no acampamento meio-sangue. Como eu não tinha me dado conta? Faltava ele, faltava seu chalé ali. Comecei a contar mentalmente um por um.
1 Zeus, 2 Hera, 3 Poseidon, 4 Demeter, 5 Ares, 6 Atena, 7 Apolo, 8 Artemis, 9 Hefesto, 10 Afrodite, 11 Hermes, 12 Dionísio, 14 Íris.
Pulava um número.
– Ah meu deus. – O sol estava se erguendo já, entrando de fininho pelas janelas enquanto todo mundo se acordava aos poucos. O conselheiro do chalé iam alertando todo mundo do horário, incansavelmente. Eu estava tremendo um pouco, me sentia ansiosa como se pudesse sair correndo por quilômetros mesmo que eu não tivesse para onde ir.
A hora do café da manhã na mesa de Hermes não tinha sido muito mais calma pra ser sincera, aqueles garotos eram agitados, gritavam demais, estavam sempre falando, falando, falando. Eu definitivamente não era irmã de Luke ou coisa parecida, eles fugiram totalmente a minha personalidade, apesar de eu não ser nenhuma monge silenciosa ou coisa do tipo.
– Você não dormiu nada, hein? – Luke me cutucou com o cotovelo enquanto puxava um prato com ovos mexidos para mais perto dele. – Connor se você jogar mais uma bolinha de papel na minha cabeça, eu faço você engolir ela. Três vezes.
Connor arregalou os olhos e juntou o braço que segurava outra bolinha de papel ao corpo.
– Caramba, cara. Acertei você é? – Connor era meio-irmão de Luke. Ele tinha um irmão "inteiro" que era o Travis e os dois viviam aprontando. Mas eram garotos legais, tenho que admitir.
– Fico feliz que você tenha entendido. – Luke deu um sorriso breve irônico para ele. Voltou sua atenção a mim. – Não conseguiu dormir? Sabe eu sonhei que o senhor D me estrangulava com as vinhas dele.
– É mesmo? Parece divertido. Gostaria de ter sonhado o mesmo. – Apoiei a cabeça no punho encarando minha torrada perfeitamente dourada. Desejei um capuccino de baunilha e meu copo se encheu na mesma hora. – Você sabe alguma coisa sobre H A...D...Eu não consigo soletrar.
– O deus do submundo? Bem. Só o de sempre. – Admtiu Luke. Nenhum de nós sabia soletrar o nome dele e também não podíamos falar, é claro. – Que ele é deus dos mortos, que usa uma capa costurada de almas. Que a banda favorita dos anos 80 dele provavelmente é Joy Division ou Alice Cooper.
Senti um arrepio gélido percorrer minha espinha. Que horror. Aquilo não era nem um pouco convidativo. Fiz uma careta quase instantânea, uma coisa é ser solitário e gótico, outra bem diferente é ser o maior solitário gótico de toda a história da humanidade e ainda por cima ser o meu pai!
– Droga.
– Algum problema? – Luke coçou a testa.
Todos. Mas eu não queria falar sobre isso com ele, já devia ser um esforço tremendo ser meu amigo sem eu nem mesmo ser filha de Hades, imagina sendo. Achei que se eu não falasse, nem pensasse, que isso não seria verdade e meu pai seria algum outro deus qualquer.
– Não, nenhum. Tô numa boa. – Mordi minha torrada contragosto.
– Sabe que é impossível você ser filha dele né? Quer dizer. Impossível não. Improvável. – Ele parecia ter sacado tudo, mesmo que eu não fosse muito discreta.
Senti alguma esperança se acender no meu peito.
– Sério? – Ergui os olhos com curiosidade.
– O "H" é um dos três grandes. Eles tem um pacto de não ter filhos com mortais. – Ponderou ele. – Não que seja um pacto inquebrável, minha amiga Thalia era filha de "Z". Mas é improvável. Entende?
– Ufa. Isso sim é uma boa notícia.
– Mas o porquê da dúvida?
– Eu tive um sonho estranho. – Expliquei a Luke todo o meu sonho e naquele instante sua certeza se esvaiu de seu rosto, para minha infelicidade. Os olhos dele ganharam um tom de dúvida excepcional, parecia estar manejando uma teoria completa na cabeça.
E a partir daquele momento ele nunca mais me deixaria em paz com essa história, até o fim dos tempos.Nós dois tínhamos voltado para o chalé 11 pra matar tempo antes de termos que limpar estábulos. Luke tinha, desde muito jovem, essa mania incessante de ajudar todo mundo com qualquer porcaria que essa pessoa precisasse. Ele era simplesmente viciado em ser útil e cada vez ele demonstrava isso mais e mais, e cada vez as pessoas ficavam sabendo disso e chamando ele pra qualquer coisa. A coisa da vez, era arrastar uns beliches que não estavam no lugar que deveriam, a pedido do conselheiro de chalé, um grande abusado.
– Você parece meio exausto. Por que não larga essas coisas aí e vamos lá pra fora? Tá um dia lindo. – Eu observei Luke carregando algumas coisas pelo chalé 11. Arrasando camas e coisa do tipo. Ele tinha 14 anos, mas já tinha braços bem fortes pra idade e eu nem digo isso de forma positiva. Sabe, é bem mais interessante quando alguém adquire braços fortes porque faz algum esporte e não porque precisava lutar pela sua própria vida nas ruas.
– Agnes, o dia está sempre igual no acampamento. E eu já estou acabando. Você sabe que se eu não ajeitar isso, ninguém vai. – Ele suspirou fundo dando de ombros. Decidi que se eu não podia fazê-lo desistir, era melhor ajudar, mas a verdade é que eu não tinha precisado lutar pela minha vida com meus braços então eles eram fracotes. – Você está bem? Parece preocupada.
Sorri de lado, balançando a cabeça negativamente. Observei os meus próprios tênis. Eu estava passando por um estado de choque, é claro. Tudo aquilo fazia muito sentido, mas ao mesmo tempo só se tornaria verdade quando ele me reclamasse.
– Vai descobrir seu parente olimpiano em breve. Sério. – Ele tirou as mãos apoiadas no beliche e largou a direita sob meu ombro. – Sabe? Tem razão. Acho melhor a gente ir tomar ar lá fora.
– Eu tô legal. Não tô nem aí pra isso. Não preciso de nenhum pai. – Tentei rir, mas não achava graça de verdade. Era claro que eu me importava. Era uma droga quando não sabemos quem nós somos, mas era ainda pior não saber quem nossos ancestrais eram. Não tinha ninguém pra culpar pelos seus problemas de saúde, ou de temperamento. – Eu tive uma idéia. Não vai ajudar em nada, mas pelo menos vai ser divertido.
– Hãn...certo. – Luke pensou e balançou a cabeça positivamente. – Tudo bem. O que você tem?Nós dois fomos para a beira da praia do acampamento. Nós escolhiamos um olimpiano ( sempre dando apelidos é claro. Não tínhamos permissão de dizer o nome deles) e a pedrinha que quicasse mais, era o provável deus que era meu pai. Idéia idiota? Talvez, mas mataria um tempo de mente ociosa muito grande. Além do mais, era divertido caramba.
– Eu aposto no homem gatinho, pai dos bronzeadores solar. Gatinho, a não ser que seja meu pai, bem aí ele é apenas eca. – Eu ri. Escolhi uma pedrinha achatada perto do meu pé. Caso eu não tenha sido clara, estava falando do único deus que me interessava - Apolo.
Luke revirou os olhos.
– Ele é superestimado. Bem. Eu escolho o cara do elmo bizarro e da capa feita de almas mortais – Luke escolheu uma pedrinha também. Cutuquei ele com meu cotovelo e uma expressão contrariada. – Já que ele é uma aposta e tanto.
– Acha que eu sou filha do Ozzy do submundo!? – Franzi a testa cruzando os braços. Luke caiu na risada, achava divertido dizer que eu era filha de...Bem. De Hades, a partir do momento que ele percebeu a probabilidade. O deus dos mortos e tudo o mais. Tudo por causa daquele sonho idiota que não me deixou descansar direito na noite passada. Bem. Não tinha nada a ver. Eu era bem mais parecida com o deus Apolo, do sol, das artes e coisas belas, eu era divertida, feliz e tudo o mais. Não do velho bafo de cadáver, o gótico.
– Bem. Tem certa semelhança.
– você é idiota, isso sim. – Joguei minha pedrinha com muita técnica, torcia para ela ir mais longe que a dele, para provar meu ponto. Antes disse, fechei meus olhos e pedi mentalmente para que " Se Apolo fosse meu pai, que ele tirasse um tempinho do seu dia para me dizer" ainda acrescentei que seria muito gentil da parte dele.
– Boa jogada. Mas a minha vai ir bem mais longe que isso. – Quando Luke tomou impulso para jogar a pedrinha, eu senti um certo tremor no chão. Nada avassalador, mas ainda assim, atípico. Eu geralmente sentia aqueles tremores quando alguém estava chegando, algum perigo, ou o entregador de pizza. Mas nenhum perigo estava por perto ali no acampamento.
A pedra de Luke quicou 3 vezes lago a dentro. A minha nem quicara, óbvio que era por culpa da minha péssima técnica e não porque isso significava alguma coisa mística. Foi aí, que escutei um "Tuc" sem saber de onde viera.
Luke resmungou.
– Ai! Não precisava jogar uma pedra na minha cabeça! Eu só estava tirando com a sua cara!– Ele esfregou o próprio couro cabeludo com uma careta.
– Mas eu não fiz nada! Espera...o que é isso? – Avistei perto do pé de Luke, uma pedrinha vermelha brilhante. Quando agarrei a pedrinha na palma das mãos, erguendo meu corpo novamente, Luke me encarou com uma expressão de incredulidade. – O que foi?
– Olha pra cima. – Ele tinha os olhos arregalados. Movi meus olhos no mesmo instante, uma espécie de fumaça preta rondava minha cabeça, no que parecia ser um formato que eu já vira antes...Um bidente. De duas pontas apenas, como de...– Hades. O deus dos mortos.
Outros temor percorreu pelo chão.
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Agnes Morana e os olimpianos
FantasyAgnes tinha sérios problemas na casa em que vivia com seus pais adotivos. Coisas muito estranhas aconteciam com as paredes quando ela sentia raiva, pedras engraçadas surgiam do chão para protegê-la. Criaturas bizarras vinham em sua procura e uma voz...