Capítulo 9 - O sótão não é lugar de criança

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– Olha, eu achei uma caixa com uma baita papelada. – Eu disse erguendo uma caixa de papelão enorme de cima de uma prateleira. Ela era um pouco pesada, mas parecia ser a correta graças a uma etiqueta enorme onde continha a palavra "Docs".  Coloquei ela no chão e me ajoelhei em frente a ela. – Cara, você está parecendo uma toupeira cega, com todo o respeito.
Observei Luke tentando se localizar no escuro, ele estava com os olhos arregalados fazendo uma cara bem engraçada. Não sabia se ele estava exagerando ou o que, o lugar não estava assim tão mal iluminando como ele disse. Estava um pouco escuro, é claro, mas eu conseguia enxergar a maioria das coisas perfeitamente. Não sei porque ele estava com tanta dificuldade, talvez fosse míope ou sei lá.
O lugar se parecia com um sótão normal, exceto por estar espalhado de souvenirs como na parte de baixo, consegui localizar algumas poucas como uma pele de piton laranja, uma garra de lestrigao. Várias coisas legais por sinal, se tivéssemos mais tempo eu provavelmente gostaria de analisar uma por uma. Mas infelizmente nosso tempo estava apertado e eu precisava descobrir tudo que eu pudesse.
– Será que você pode ligar a porcaria da luz? – Ele acabara de tropeçar mais uma vez no tapete meio enrolado no chão. – Não é possível que você me esteja enxergando alguma coisa.
Eu dei uma risada contida e procurei qualquer coisa que parecesse um interruptor. Apesar de eu estar vendo, ainda era um pouco uma penumbra então não conseguia enxergar pequenos detalhes. Fui apalpando as paredes até que encontrei um quadradinho pequeno que parecia ser um interruptor e pressionei. Quando as luzes iluminaram completamente o sótão, pude ouvir Luke soltar um berro de medo muito espontâneo.  Tomei um susto, é claro. Por um momento pensei que ele tivesse visto algum tipo de assombração ou sei lá e na verdade eu estava certíssima.
– QUE DIABOS É ISSO!? – Ele disse congelado. Mesmo apavorada eu me virei de costas para ver o que era assim tão assustador e aí quem gritou fui eu.
Uma vovó...quer dizer, não era uma vovó. Era um cadáver de alguma coisa muito velha. Tipo uma múmia mesmo, muito muito velha e acabada. O cadáver estava sentado em posição de meditação, usava um vestidinho colorido e uma bandana tie dye, vários colares e brincos como um hiponga dos anos 70. A coisa ( que provavelmente estava morta a muito tempo) nem sequer se moveu ( Felizmente, diga-se de passagem) para nós. Naquele momento eu comecei a repensar sobre tudo, que diabo de lugar era aquele que guardava uma múmia hiponga dentro do sótão!? Alguma coisa estava extremamente errada ali, eu imaginava que nem mesmo em acampamentos para semideuses e essa coisa toda, fosse normal ter um cadáver em cativeiro no sótão. E se nós fossemos os próximos por estar bisbilhotando? Eu não queria ser mumificada com aquelas roupas bregas!
– Meu. Deus. O que é isso!? Meu deus. Meu deus. Será que descobrimos tipo...um cadáver de cena de crime!? – Eu estava me tremendo toda enquanto encarava aquela coisa, paralisada. Comecei a tagarelar e gesticular de tamanho nervosismo.  – A gente não devia estar aqui. Vamos morrer também!
Luke concordou com a cabeça e engoliu em seco. Ele mirou a caixa que eu tinha encontrado e pareceu refletir por um momento. Logo em seguida foi se aproximando devagar da caixa enquanto encarava a múmia-woodstock se certificando de que ela não ia se mexer de verdade. Ele foi andando meio duro para perto da caixa como se ela fosse sair correndo, quando chegou bem pertinho perdeu o medo e se sentou próximo a ela. Ele só podia estar de brincadeira com a minha cara, é óbvio.
– Bem...já estamos aqui mesmo. – Ele deu de ombros e ligeiramente e foi mexendo na caixa em busca de qualquer papel que pudesse nos ajudar.
– Tá brincando, cara? Tem um cadáver de um dos Beatles aqui e você quer ver documentos!? – Eu ainda encarava a coisa que parecia ficar cada vez mais horripilante a cada análise minha. – Esquece essas coisas. Vamos embora.
Eu contei que ela estava sentada em um banquinho como se ainda estivesse viva? Eu sei, horrível.
– Espera, eu achei uma coisa. Fica calma, ela não vai levantar para abraçar você. – Ele encarava as folhas como se fossem bem mais importantes que o fato de termos um cadáver no mesmo ambiente que nós e o fato de que não devíamos estar ali, aquela hora da noite e sem supervisão. – Eu acho.
Ele deu uma risadinha sem olhar pra mim.
– Haha, olha só quem tem senso de humor! – Disse irritada, fazendo uma careta feia para ele. – Na hora errada.
– Esse aqui é sobre mim. – Ele continuou folheando sem me dar mais atenção. Colocou a folha dentro do bolso do casaco meio amassada. – Esse é sobre você.
O tal cadáver emanava uma energia muito engraçada. Algo dentro de mim sabia que estava morto, mas outro algo dizia que alguma coisa forte ainda morava ali. Não conseguia tirar meus olhos de cima daquela coisa, comecei a analisar cada parte daquilo como se estivesse conseguindo absorver algo. Não sabia porque era tão impressionante.
Ainda não entendia porque aquilo estava ali, mas não tinha certeza se eu queria saber a verdadeira história daquilo. Foi aí que depois de uns 15 minutos que estávamos lá, eu senti aquela vibração no chão mais uma vez.
– Você ouviu isso? – Franzi a testa.
– Agnes, é a 3 vez que você diz isso. Não tem ninguém...– Luke mal terminara sua sentença e uma voz ressoou perto da porta me fazendo estremecer completamente:
– Ora, vejo que conheceram nossa querida Oráculo. – Era Dionísio, o diretor do acampamento e o deus do vinho. Senti cada osso do meu corpo se estremecer de vergonha enquanto encarava ele com choque completo em meu rosto.  Eu recém tinha chego no acampamento e já estava completamente encrencada por invadir um lugar proibido. – Espero que não a tenham aborrecido com sua completa falta de apego ao toque de recolher.
E ainda aborrecer a mocinha falecida. Dionísio encarava nos dois com uma cara muito séria, ele parecia prestes a explodir o chão com suas vinhas e nos agarrar pelos pés com elas.
– Eu me perguntou qual a desculpa genial que vocês pirralhos tem para me dar dessa vez? – Ele estava paralisado encarando nós dois. Eu não sei quantas vezes você que está lendo isso já esteve na presença de deus. É, "deus" com d minúsculo, não é das sensações mais confortáveis principalmente quando além de deus, ele é diretor do acampamento onde você mora. Era bem assustador pra dizer o mínimo. – Hein?
Nenhum de nós dois achou seguro responder a pergunta.
Eu não sabia nem o que dizer, fiquei em silêncio encarando a cara feia de Dionisio até que...ele explodiu em uma gargalhada profunda. Sua gargalhada parecia ainda mais assustadora do que se ele estivesse zangado, parecia como uma pegadinha ao mesmo tempo que era muito calorosa.
Eu Franzi a testa sem entender nada.
– Ah o que é esse acampamento sem um pingo de rebeldia adolescente não é? – Ele sorriu cinicamente para nós. Seus olhos diziam explicitamente que ele detestava adolescentes e que estava ali por obrigação. – eu entendo, eu entendo. Vocês não podiam conter a sua curiosidade e acharam uma boa idéia roubar nossos documentos de identificação. Quem nunca foi adolescente não é? Exatamente. Eu.
– Então não vai brigar conosco? – Eu perguntei mansamente, um pouco impressionada pela atitude tão branda do diretor, até me permiti dar um sorriso. Eu estava tão enganada, que analisando agora parece até meio patético, preciso dizer.
– Ah claro que vou. Vocês dois. De castigo por 2 semanas. Sentença: limpar os estábulos dos Pegasus. – Ele cruzou os braços, dizia aquilo com uma alegria e tranquilidade como se fosse uma segunda-feira. – Agora dêem o fora daqui antes que eu transforme vocês em dois cachos de Merlot. E espero que não tenha roubado nada.
Dionísio estalou os dedos e a caixa voltou ao seu lugar de origem como se nunca tivesse saído. No fundo era difícil pra mim acreditar que ele de fato não sabia que Luke tinha roubado o papel, fiquei me perguntando porque ele nos deixaria sair com ele.
– O que é essa coisa? – Luke tinha conseguido esconder os papéis dentro do casaco sem que Dionísio visse. Eu esperava que ele não fosse o deus da leitura da mente também, se não estávamos completamente ferrados. – E por que está morta?
Sr.D soltou um suspiro cansado de quem não estava afim de papo com um garoto que invadira o sótão de seu escritório. A múmia ainda estava sentada como se nós nem estivéssemos ali, seu sono eterno era tão profundo que nem nossa terrível "rebeldia" podia acordá-la.
– Essa é nossa adorável oráculo de Delfos, é claro. Serve para decretar as profecias  para os semideuses que saírem em missão. – Respondeu Sr.D bem superficialmente, mas já foi o suficiente para eu ficar aliviada e conseguir dormir a noite. – Agora SAIAM. Eu quero voltar pra minha confortável cama.
Saímos de lado com os nossos corpos duros de susto, muitas coisas tinham acontecido ao mesmo tempo naquela noite. Como se já não bastasse aquela coisa sinistra de tie dye, estávamos ferrados e ainda tínhamos que voltar pro chalé sem sermos atacados pelas bruxas que rodavam o acampamento pra garantir o toque de recolher.
Mesmo assim, Luke sorriu pra mim enquanto voltamos pro chalé. Ele tinha os documentos em mãos é claro. O cara era bom mesmo, ele bem que podia roubar um banco ou sei lá. É... má idéia, eu nunca escrevi isso okey?

– Toma. Esse é seu – Luke me entregou o documento que tinha uma foto minha criança no topo. Eu peguei, mas fiquei um tempo em silêncio sem conseguir ler. Eu não sabia o que podia ter ali e nem sabia como era possível eles saberem algo sobre mim e eu nada sobre eles. – Não se preocupa, não deve ter nada muito aterrorizante.
Ele deu um sorriso de canto, seu rosto era iluminado apenas por algumas tochas que refletiam na varanda, mas eu conseguia enxergar algumas sardas muito discretas em seu nariz. Voltei meus olhos ao papel.
Eu li. Não tinha nada demais mesmo, listava alguns dos meus incidentes quando pequena, as rachaduras no chão, pequenos cristais perto dos meus pés enquanto eu dormia. Todas coisas de que eu lembrava vagamente.
– Engraçado, você não tem um sobrenome. – Luke apontou para a folha aonde tinha apenas " Agnes" escrito. – Quero dizer...não engraçado tipo "haha", engraçado estranho. Mas não estranho igual um...
Interrompi seu ato falho.
– Cara, eu já saquei. Mas é claro que tenho um sobrenome.  Blackburn. – Disse sem muito refletir no que ele de fato estava falando.
– Bem, esse é o sobrenome dos seus pais adotivos. Eu não entendo muito disso, mas veja bem. – Ele coçou a cabeça loira – Meu sobrenome é Castellan porque é o sobrenome da minha mãe. Os deuses não tem um, então você deveria ter o sobrenome da sua.
– Bem, é. Eu sei. Mas eu não conheci a minha.
– Ah, sinto muito. Não quis ser insensível. – Luke estava se esforçando demais para ser legal, mas sinceramente eu não dava a mínima. Talvez eu fosse mesmo estranha, mais ainda do que todo mundo ali. E não, eu não conhecia a minha mãe. Todos diziam que ela tinha morrido muito antes de eu ter idade para me lembrar dela.
– Não, tudo bem. Eu não tenho como me sentir triste por ela se nem a conheci. – Cruzei casualmente os meus braços largando o papel de maneira displicente ao meu lado. Luke o recolheu e leu mais uma vez, passando os olhos azuis pela folha com cuidado.
Ele franziu a testa.
– É, parece que não ajudou muito. Sinto muito, Agnes. – Ele torceu os lábios.
Eu não. Era a primeira vez que eu tinha um amigo. Eu nem sabia que sensação era essa, mas era muito maneira. Uma pessoa que não tem obrigação nenhuma simplesmente gosta de você e é isso. Ela quer estar perto e quer até falar com você e isso eu não sabia como era até agora.

Agnes Morana e os olimpianos Onde histórias criam vida. Descubra agora