O universo não funciona de forma livre e desordenada, para tudo existe uma regra ou algo para se seguir.
Quer um exemplo?
Imagine a seguinte cadeia alimentar: existem os produtores que fornecem alimento para os organismos, esses organismos serão devorados por predadores, esses predadores mais tarde serão decompostos por fungos ou bactérias. Após isso, o ciclo se repete.
Se caso o ciclo se quebrar ou algo desaparecer, tudo fica em desordem, podendo prejudicar todo um ecossistema.
Mais um exemplo: Planetas girando em seu próprio eixo, orbitando ao redor de um objeto maior que eles, no nosso caso, de uma estrela. Essa estrela está em uma galáxia e consequentemente é um ponto no vasto universo.
Da mesma forma, existem regras a serem cumpridas no jardim, elas vão além de proibir ou permitir, servem também para moldar nosso caráter, nos ensinar a ter uma boa conduta e disciplina, portar de forma correta o uniforme que carrega o nome da instituição.
Colégio Interno Virtudes.
Saias amarelas, estampa xadrez, mary janes nos pés, meias até os joelhos e suéteres amarelos.
Todos nós possuímos uma rotina repleta de atividades para nos deixar ocupados o dia inteiro.
Se olhassem de forma específica, veríamos Camile pegando uma maçã verde, dando a primeira mordida e esperando, na esperança de encontrar algum bichinho morando na fruta, que nunca tem. Rotina? Não, mania.
Era o horário do almoço, estávamos na fila do refeitório esperando a nossa vez de pegar a comida. O clima estava fresco, uma pequena brisa entrava das janelas abertas trazendo consigo um cheiro de matagal que misturava-se com o cheiro do parmegiana de berinjela. Queijo e molho de tomate.
O aroma invadiu minhas narinas e aumentou a minha fome.
Ouvi a barriga de Giselle roncar e ela me olhou envergonhada, eu escondi uma pequena risada.
Quinta-feira sempre vai ser meu dia favorito.
A fila andou e pegamos as nossas bandejas. O jogo de talher estava quente, a porcelana impecável e a bandeja funcionava como um pequeno espelho de tão limpa.
O vapor da comida aquecia o meu braço enquanto eu distribuía uma colher de cada alimento que estava disposto a nós. Uma colher de risoto, outra da berinjela, legumes e soja.
- Hoje tem aquela torta de morango, lembra? - Ela disse com certo interesse na voz.
Era uma das sobremesas favoritas de Giselle, ela estava me pedindo para pegar mais um pedaço já que não tínhamos permissão para repetir.
Eu fingi ignorar, não dando tanta importância.
Ela fez um biquinho triste por não conseguir me convencer.
Giselle é uma das meninas mais bonitas que estudam aqui, não estou puxando seu saco, é a verdade. Parece que sua aparência e personalidade foram esculpidas de forma cuidadosa e delicada. Sua voz era aveludada, ela tinha a risada mais cativante que existia e possuía longas tranças loiras que caiam até sua cintura.
Se as fadas existissem elas seriam assim.
Ela combinava com a escola até em seu jeito gracioso e aparência, ela misturava-se com a paleta de cor barroca, que variava entre os tons de marrom, amarelo mostarda, branco e azul turquesa. Assim como os detalhes em dourado.
Esperei Giselle ficar de costas, peguei uma fatia da torta de morango e tentei deixar o menos à vista possível.
Essa rotina fazia eu me esquecer dos recentes problemas, pelo menos por alguns instantes. Ultimamente, esses pesadelos têm sido um grande inconveniente. Mais cedo, eu e Giselle resolvemos conversar com a professora de sonhos, ela disse que é normal na minha idade essas coisas acontecerem pois o cérebro estava em desenvolvimento, os pesadelos não passavam de sonhos que deram errado.
Ao final da fila mostramos nossos pratos a monitora e andamos até a mesa de sempre. Ela ficava próxima a uma das janelas, pouco afastada da multidão de garotas que se misturavam por aí.
- Você conseguiu dormir depois? - Giselle perguntou.
- Demorei um pouco, mas consegui - Respirei fundo - Mas eu estou bem, talvez eu esteja um pouco pressionada com toda essa época do final do ano letivo, sabe? Aliás, trocando de assunto.
Ela ficou atenta.
- Hoje é o seu primeiro dia como representante da turma de moda, não é? Estou orgulhosa, aprendeu comigo - Brinquei.
- Ai nem me fala - ela colocou a bandeja na mesa e puxou a cadeira sentando-se.
Logo em seguida ela juntou as mãos e fez uma pequena prece, eu fiz o mesmo
- Não entendo porque eu recebi tantos votos, mal consigo falar com o professor quem dirá com a sala.
- Ei! Não pense assim, vai ser legal. Manter uma certa popularidade durante essa época pode te ajudar nos exames finais, você já vai ser meio que a favorita.
Ela abaixou a cabeça e levou uma quantidade de comida à boca.
E lá estava Camile, algumas coisas nunca mudam.
Ela foi até a cantina esgueirando-se entre as meninas e pegou uma maçã na área de frios. Ela mordeu e esperou enquanto mastigava na esperança de ver algum verme.
Nada além de uma maçã saudável.
Ela ajeitou a franja e caminhou até nós enquanto compensava o peso do corpo na perna esquerda.
- Meus pés estão me matando, estou pensando seriamente em arrancar eles. Não vou sentir dor nos pés se não tiver.
- Se machucou de novo? Meu Deus - Soou como uma pequena bronca, mas ela deu de ombros e logo voltou a sua energia animada.
Giselle deu uma pequena risada
Quando uma pessoa nasce ruiva, ela pode escolher dois tipos de personalidade: durona ou simpática. Camile escolheu a segunda, tudo em seu jeito exalava diversão. Em suas pálpebras havia uma festa de sombras coloridas que iam contra as vestimentas da escola, mas passava despercebido, a menos que olhassem com mais afinco.
- Não é culpa minha se a professora resolveu passar uma sequência inteira de saltos, ela sabe o quanto sou péssima pulando. Pareço uma pata - Camile levantou a cadeira para não fazer ruído e sentou-se.
Giselle levou mais um pouco de comida à boca e esperou para falar.
- Você já começou a fazer o presente para a Eva? - Ela perguntou curiosa.
Revirei os olhos.
O aniversário da Eva era nesse final de semana, estive tão ocupada esses dias que nem prestei atenção.
Camile bateu a palma da mão na testa.
- Nossa, eu quase esqueci. Preciso terminar, as aulas de fotografia têm tomado meu tempo - Ela encostou o indicador no nariz pensando - Estava pensando em fazer um scrapbook, fotos, frases e cheiros que ela gosta. Muito clichê?
- Eu achei super criativo - Giselle virou-se para mim, ia me perguntar a mesma coisa até que hesitou.
Elas continuaram conversando.
Eu e Eva não nos dávamos bem desde longos anos, não me lembro ao certo como tudo isso começou, só sei que começou a infernizar a minha vida.
Eu tirei a torta de morango do canto da bandeja na tentativa de fazer com que elas falassem de outra coisa. Funcionou pois ambas pararam instantaneamente, quase engolindo a sobremesa com os olhos.
Giselle brilhou e sacudiu os punhos em felicidade.
- Deveria ter entrado naquela fila - Camile fez uma careta como se de repente a fruta tivesse perdido o sabor.
- Você falou que não ia pegar! - Giselle abriu um sorriso e me empurrou de leve.
- Eu sabia que você iria querer. Você não vai almoçar Camile? - Perguntei.
- Já estou almoçando. - Ela levantou a mão com a maçã entre os dedos.
- Você vai ficar tão fraca quanto um graveto. Já parou para pensar que talvez seja por isso que você vive se machucando? - Disse lembrando de cada machucado novo que ela arrumava durante a semana.
Camile estreitou os olhos.
- A Eva não come e é forte para caramba.
- Eva só sabe arrumar confusão - Retruquei.
Tudo sempre tinha que voltar para ela, a dona dos boatos e fofocas da escola.
- Você não precisa seguir os passos dela, sabia? Tipo assim, suponhamos que você continue fazendo isso, você pode se machucar ou pior - Eu inclinei o rosto e sussurrei - os monitores podem comunicar isso para alguém e você pode acabar sendo "punida" - Fiz as aspas com as mãos" - você deveria ficar fora dessas coisas, poxa - Falei com certa preocupação. Eu deixei a torta na bandeja de Giselle, ela rapidamente voltou a comer seu almoço.
Na verdade eu queria ter dito que a Eva é uma metida a besta que se acha melhor que os outros, diz que tem personalidade forte mas na verdade é só uma garota sem educação.
Eu amo a Camile, ela é uma ótima pessoa, o problema é quando Eva está por perto. Ela concorda com tudo e faz tudo o que ela pede, como um cachorrinho cheirando os pés do dono.
Uma cúmplice de seus delitos.
A verdade é que Camile tem uma grande paixão incubada. Acho que nem é tão escondida assim, todo mundo desconfia, chega a ser irritante.
Um silêncio instalou-se na mesa, aproveitei para terminar o almoço.
Camile ficou mirando a sua maçã.
Ela levantou a cabeça repentinamente.
- E se fizéssemos uma surpresa pra ela? - Ela pareceu animar-se com a ideia - Acho que ela ia gostar.
Fiz de conta que não escutei e pensei que Camile deveria se escutar também. A Eva opina somente quando à convém, nunca participa de nada, todas as vezes em que tínhamos que apresentar um seminário ela desaparecia por dias ou simplesmente faltava nas aulas. O que é irônico já que moramos na escola, desculpas não funcionam aqui, tipo "sinto muito, faltei essa semana inteira por que meu bairro alagou e não tinha como pegar um transporte público até a escola"
Além disso, ela parece ser do tipo que não gosta de festas.
- Deixa isso pra lá - Giselle tentou apaziguar o clima, não soube dizer se foi para mim ou para Camile - Podíamos aproveitar o tempo bom e dar uma volta no riacho mais tarde, um pequeno piquenique, você poderia assar uns biscoitos...
As portas escancaram. O estrondo da madeira chocando-se contra as paredes ecoou por todo o refeitório, atraindo todos os olhares curiosos e surpresos naquela direção.
Lá estava ela.
Com o rosto suado e o uniforme todo bagunçado. A saia estava torta, o blazer pendia em seus ombros e os seus sapatos estavam sujos de terra, assim como as meias. Mesmo desarrumada, o cabelo cacheado continuava perfeito, cheio e extremamente definido.
Eu me recusei a olhar esse teatrinho.
- Eva! - Camile acenou com um sorriso enorme estampado no rosto.
Ela encontrou a nossa mesa e veio até nós.
Os jovens abriram caminho enquanto observavam os movimentos preguiçosos, até mesmo um pouco arrogantes. Ela pegou uma maçã que estava no freezer, arrancou uma garrafa d'água de uma garota provavelmente mais nova que nós e bebeu sem ao menos encostar a boca no plástico.
A Eva era a pedra no meu sapato, o ponto fora da curva que insistia em sair da rotina ou de qualquer coisa que fosse certa. Eu não fazia ideia de como ainda não foi expulsa.
Eva me irritava, era com certeza o que mais me irritava.
Só então percebi que estava olhando para ela assim como os outros.
De canto de olho, percebi que os monitores fitavam cada passo dela, provavelmente pensando em reportar para a nossa orientadora.
- Onde você esteve? - Giselle perguntou olhando para seu estado.
- Vocês escutaram a nova? - Eva ignorou a pergunta de Giselle logo emendando em um fofoca. Ambas aproximaram os ouvidos - A Naomi do primeiro ano foi vista ficando com o Gabriel do quarto ano, ela recebeu uma punição, não pode mais participar do espetáculo.
Camile abriu a boca pasma.
Eva tomou o seu lugar na mesa, sentou esparramada e largou a maçã mordida e a água na mesa.
- Qual é o Gabriel? O loirinho?
- Esse mesmo, já pediu para ficar comigo, acredita? - Eva falou indiferente.
- Comigo também - Giselle soltou - Mas ele não tava...namorando? - Giselle sussurrou a última palavra, como se fosse um crime.
Bom, é contra as regras, logo...
- Qual era o papel dela? - Camile perguntou
- Não lembro, provavelmente uma das figurantes, mas de qualquer forma, os meninos chamaram ela...
- Você não é tão diferente deles, sabia? - Larguei os talheres e olhei para o seu rosto - Sério, é realmente conveniente você continuar com essas fofoquinhas? Não tem nada melhor para fazer?
- Calma, boneca - Ela afastou algumas mechas dos olhos e deu um sorriso debochado - Eu só comentei porque achei interessante, aliás, porque só a garota foi impedida de participar do espetáculo?- Ela perguntou - Ok, ela estava errada de acordo com as regras da escola, mas o garoto também.
- Não me chame de boneca! - Respirei fundo e recuperei a postura - Ela também deveria saber que estar com um garoto pode comprometer sua reputação, então Naomi - sussurrei o nome dela - tem uma parcela de culpa.
Ela se preparou para começar uma discussão, porém escutamos um pigarro.
Uma mulher alta parou ao lado de nossa mesa. Ela tinha cabelos loiros presos em um coque apertado, sua postura era perfeita e seu nariz fino encarava-nos com autoridade.
Arrumamos nosso comportamento em sinal de respeito.
- Pensei que não precisavam ser corrigidas meninas, afinal, último ano certo? Deveriam saber como agir à mesa.
Patrícia, nossa orientadora, assim como eu tinha pensado. Eles não iam deixar esse comportamento passar.
Fazia um tempo em que não víamos ela na escola desde a reunião geral que tivemos semana passada.
Minhas mãos estavam sobre o colo e minha cabeça estava levemente abaixada, não conseguia ver o rosto de Patrícia ou das meninas. Mas pela visão periférica tive um vislumbre sobre o comportamento estranho de Eva.
Ela ficou tensa, seus ombros caíram para frente como se estivesse tentando se esconder e pude notar a alteração de humor repentina.
O olhar de Patrícia recaiu sobre ela, forçando-a a arrumar suas pernas e roupas.
Ela levantou o rosto enquanto abotoava a camisa, por um instante nossos olhares se cruzaram e fui capaz de notar algo que não costumo enxergar em seu cenho: medo.
- Olívia, quero que me encontre depois do almoço no auditório, tenho um recado importante e é de seu interesse.
Definitivamente eu não estava preparada para esse pequeno contratempo. Ainda tínhamos um longo dia de aulas e atividades, isso certamente me atrapalharia.
Eu ergui o olhar para que pudesse responder Patrícia, mas a minha voz sumiu.
Ela tinha uma cicatriz no rosto, uma cicatriz recente na verdade. Sua face estava coberta com curativos e pequenas faixas que cobriam o olho esquerdo.
Ela empalideceu ao notar que eu analisava o estrago em seu rosto.
- Eu comparecerei, agradeço - Abaixei o queixo exibindo um sorriso, ignorando completamente o que estava estampado em sua feição.
Patrícia cerrou a mandíbula e forçou um sorriso simpático, apontou a cabeça para o lado oposto e marchou para fora do refeitório.
Um pequeno silêncio estendeu-se na nossa mesa.
- Está me dando lições, Olívia? - Eva quebrou o clima - Fica tranquila, vou seguir todas elas pode deixar - Disse ela respondendo à nossa discussão anterior e tudo aquilo que eu jurei ver em sua expressão desapareceu.
Revirei os olhos.
Giselle afastou sua bandeja e apontou para o doce.
- Posso comer?
Acenei positivamente.
O sinal tocou. Levantamos em uníssono empurrando as cadeiras e seguindo o protocolo formamos uma fila para sair do refeitório de forma civilizada
Infelizmente antes de sair da mesa consegui ouvir Camile mendigando pela atenção de Eva.
- Eva, o que você achou da minha maquiagem? Estou bonita? - Ela faz uma cara fofa e depois mexeu as sobrancelhas.
Que vergonha alheia.
Francamente, a Camile é muito mais legal quando Eva não está por perto.
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𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga Moëbius
FantasyGarotas do Éden é uma ficção distópica ambientada em uma realidade em que adolescentes estudam em um colégio interno para tornarem-se pessoas perfeitas. Porém, as coisas começam a dar errado quando Eva descobre um novo mundo em que as pessoas podem...