𝐄𝐯𝐚

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Ok. Eu sei o que você acha que sabe sobre mim: rebelde, pecadora, orgulhosa e sedutora. Mas não, uma cobra não falou comigo e eu não saí da costela de um homem. A Eva que vocês estão pensando pertence à criação e a queda, um momento que antecede a fundação da escola. 
Sei que não deveria colocar a culpa em ninguém, mas a minha curiosidade, chamada de rebeldia, é por causa das aulas de história. Uma vez eu perguntei se liberdade realmente existia e adivinha, eu fui expulsa da sala de aula.
Pra ser sincera, acredito que a dúvida nos leva a caminhos diferentes, se só ouvimos as palavras não estamos aprendendo mas sendo doutrinados e eu nunca vi nenhum texto abominando o fato de se questionar. Talvez seja mal de Eva.
Eu não sou santa, na verdade, eu fugi mesmo do jardim.
Mas antes de me odiar quero que pense: por que a árvore do bem e do mal foi colocada lá?

Minha cabeça latejava assim como todo o resto do meu corpo. Joguei minhas sapatilhas no chão e comecei a tirar a infinidade de grampos que prendiam o meu cabelo úmido e meio duro por causa do gel. As mechas caiam aos poucos e eu sentia meu couro cabeludo finalmente respirar.
Acho que o ballet é uma das poucas coisas que eu realmente me esforço para fazer, gosto de chegar mais cedo e ir embora mais tarde. Fico feliz quando finalmente acerto o número de piruetas que a professora pede, mesmo que ela não veja, ela só enxerga a Olívia, aluna perfeita e esforçada. Assim como todo o corpo de professores e autoridades da escola. Sempre tão suficiente, delicada, centrada e muito disciplinada.
Minha avó contou que no meu nascimento meus pais me rejeitaram. Durante a gravidez minha mãe tinha sensações horríveis e vivia doente, achavam que a culpa era minha, então me nomearam como Eva porque eu levaria ruína onde quer que eu fosse. Eu poderia dizer que isso não me afeta, mas estaria mentindo. Acho que o lado bom foi ter a minha avó, quando ficou fraca por conta da velhice vivia falando para eu reencontrar Eva, eu não entendia, até hoje não entendo. Acho que era só uma forma dela falar “Aceite-se como você é”. Eu confesso que é meio difícil, não sinto que pertenço a algum lugar.
Juntei as minhas coisas e me olhei no grande espelho da sala. Vi pelo reflexo as meninas indo até Olívia, querendo bajular sua existência.
- Aí Olívia, eu te admiro tanto, como você tem um equilíbrio tão bom? - Disse uma com um arranjo de flores no coque.
- Obrigada! - Ela apertou os olhos como sempre faz ao sorrir -  Acho que é muita prática mesmo.
- Sua sapatilha parece ser diferente da nossa, ela modela o seu pé, nem parece que dói. - Uma garota loira perguntou.
- Meus pais me mandam uma todo mês, aprendi a costurar com as empregadas lá de casa.
Chata.
Eu mirei minhas sapatilhas jogadas no chão e percebo o quanto estão judiadas. Totalmente rasgadas, o cetim encardido, as fitas frouxas e a ponta toda desgastada. Eu não podia fazer muita coisa para melhorar, mas de fato precisava costurar novamente as fitas, estão frouxas demais e tem uma pontinha que ficava pinicando.
Na verdade, eu precisava de uma sapatilha de ponta nova, mas no momento não estou com dinheiro para isso.
Esperei a sala esvaziar, evitando ao máximo que as pessoas me olhassem. Me despedi em silêncio da sala, lembrando que voltaria para ela no outro dia.
- Você fez bem a sequência hoje - Disse uma voz familiar.
Olhei para trás, o sorriso falso de Olívia me esperava.
Ela estava usando o uniforme de dança, o collant branco modelava seu corpo e a saia transparente chegava até o meio de sua panturrilha. O cabelo estava preso em uma coroa de tranças perfeitas.
- Eu sei - respondi do mesmo jeito.
Chata. Chata.
É assim que eu lido com as coisas, mas enfim.
Os preparativos para o baile de verão começaram muito cedo. Segunda-feira tivemos uma assembleia geral e os professores justificaram que o motivo do adiantamento seria por causa da formatura dos alunos do quarto ano. O lado bom é que vamos apresentar O sonho de uma noite de Verão, minha peça favorita, o lado ruim é que eu era uma das servas da Olívia, isso significava que seria obrigada a segurar a capa pesada de vossa majestade. Ela conseguiu a audição para fazer a rainha das fadas, Titânia.
Sendo sincera, esse papel deveria ser da Giselle.
Senti um arrepio correr pelo meu corpo. Mesmo sendo verão o vento continuava gelado e toda noite começava uma enorme tempestade, aquelas que fecham as portas e fazem as árvores requebrar. Andei pelos corredores seguindo até as escadas do segundo andar. O piso de mármore refinado era coberto por uma tapeçaria azul turquesa e amarela, combinando perfeitamente com os detalhes de ouro nos degraus e o teto.
Cruzei o corredor de cima.
Estava perto do toque de recolher, tudo estava quieto e vazio. Aos poucos as luzes se apagavam, eu apertei o passo. Chegando até a porta da sala de costura olhei para os dois lados apenas por precaução, torcendo para que ainda estivesse aberta.
Girei a maçaneta com expectativa.
Estava, graças ao bom Deus.
Precisei esperar que minha visão se ajustasse à escuridão, graças às longas janelas consegui me localizar. As mesas de madeira escura estavam ocupadas com potes e tecidos, as estantes estavam cheias com todo tipo de linha e agulha que se podia imaginar.
Fui até a minha mesa e acendi a luminária, aliviada por enfim estar sozinha. Abri a gaveta e tirei uma fita de cetim rosa bebê, uma linha da mesma cor e uma agulha. Eu molhei a linha com a ponta da língua e passei pelo buraco da agulha, iniciando o processo.
Outra coisa boa de ter crescido com a minha avó é que ela sempre me ensinava o básico de tudo para que eu pudesse me virar na escola, para que eu não precisasse dos outros.
As aulas de costura não são as minhas favoritas, o professor me odeia, todo trabalho ou atividade que entregava ele esculachava. Pegava, mostrava para a turma e usava como exemplo do que não fazer. Quando eu era mais nova me dedicava mais para as pessoas me aceitarem, confesso que cansei de me esforçar, levo a vida como quero.
De qualquer forma, não esperam o melhor de mim.
Às vezes eu tenho inveja da Olívia.
- Acabei - Falei sozinha erguendo a sapatilha.
Depois de juntar as minhas coisas e encobrir os meus rastros, voltei para o corredor, encontrando-o completamente apagado. A essas horas, as meninas já deveriam estar em seus aposentos e longe do meu caminho.
Segui para o lado oposto, até as escadas que levavam para o terceiro andar e calcei as sapatilhas em um dos degraus. As luzes ainda estavam acesas.
Batuquei a ponta no chão, subindo sobre os meus pés, forçando um grand pliê.
Eu me preparei para fazer uma das sequências da barra, mantive as costas esticadas assim como as pernas.
Tudo extremamente pensado, cada músculo rígido e o rosto sempre leve, não importava a dor, tudo aquilo fazia valer a pena. Estar dançando e ser levada pela música, que não existia naquele momento mas corria em minhas veias. Respiração, pés pra lá, pra cá um adágio e a finalização.
Fiz de conta que os quadros nas paredes eram uma simpática plateia, parei na frente deles. Uma menina com um vestido camponesa me encarava, ela posava com um sorriso simples e sincero. Estava presa em uma moldura dourada com um cenário minimalista, também usando sapatilhas de ponta.
Fiz um reverence.
- Obrigada por ter compartilhado um pouco de seu tempo comigo - Disse para ela - Sei o quão difícil deve ser para você ficar presa em um quadro enquanto os outros vivem uma vida normal.
Ela não me respondeu.
- Mas você não tem muito para fazer também, não é? - Ela nem sequer piscou - Afinal, vai ficar um bom tempo parada aí…
Sem ao menos pensar, meu corpo encolheu com um pulo.
Os cacos despedaçaram no chão partindo-se em pedaços ainda menores, o estardalhaço ecoou pelo andar inteiro.
Tive a coragem de erguer o rosto e visualizar a pequena estátua de Davi destruída. Aquilo que restava de seu rosto sereno estava rachado e espalhado por todo o lance da escada.
Eu desisti da minha pequena apresentação e juntei as minhas coisas, socando no fundo da minha bolsa sem me importar se iria fechar ou não.
Precisava sair correndo o mais rápido possível, mas as coisas insistiam em cair pra fora dos bolso
Eu mantive os olhos nas escadas esperando que alguém aparecesse.
Aquilo ia sobrar para mim, eu ia levar a culpa por algo que nem ao menos fiz. Já não bastava estar fora do quarto depois do toque de recolher, mais isso? Eu ia ser afastada dos ensaios, isso não podia acontecer mas…
Um pequeno corpo de pêlo raso emergiu do corredor acima.
Um gato, apenas um gato preto. Ele cheirou o topo da cabeça de Davi, ou o que sobrou dele, e sentou-se ao seu lado. Seus olhos me encontraram.
Meus pelos eriçaram na mesma hora de forma incomum. Não sentia frio, meu sangue estava quente e sentia ele pulsando por todo o meu corpo em sinal de alerta.
Havia algo de estranho, animais domésticos não eram permitidos no internato e certamente seria difícil um animal como aquele passar pelos muros.
Ou não, pelo visto a presença dele mostrava o contrário.
O som da tempestade e a fria brisa que percorria os corredores havia desaparecido.
Eu aguardei, esperando um monitor aparecer para chutar a minha bunda para meu alojamento e o gato para fora da escola.
Mas estávamos sozinhos.
O gato inclinou a cabeça e adentrou o corredor, como se estivesse me convidando.
Parecia burrice eu sei, mas eu sou uma Eva, preciso matar a curiosidade mesmo que ela me mate.
Deixei a bolsa no chão e o segui

Deixei a bolsa no chão e o segui

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𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga MoëbiusOnde histórias criam vida. Descubra agora