𝐎𝐥í𝐯𝐢𝐚

17 1 0
                                    

Eu estou a um passo de surtar, acho que os céus estão me testando, pois imprevistos não param de acontecer.
Antes de encontrar Giselle no depósito com aqueles dois garotos eu estava com Patrícia. Ela tinha dito que precisava falar comigo, então assim que fui liberada do almoço ela já me esperava nos corredores. Ela andava com o queixo erguido, fazendo todos os alunos calarem a boca apenas com a sua presença. Seus saltos pipocaram sobre o chão de madeira maciça.
- Olívia, acompanhe-me, por favor.
Eu obedeci e andei ao seu lado.
As pessoas olhavam em nossa direção, porém logo em seguida desviavam por questão de respeito a ela e sua posição. Isso certamente ajudava Patrícia a esconder o estrago que estava no seu rosto.
- Soube que conseguiu o papel principal para o Espetáculo, meus parabéns - Ela disse sem ao menos abaixar a cabeça.
- Obrigada, professora - Meneei levemente - Usei todas as técnicas e dicas que a senhora me ensinou ao longo dos anos, minha gratidão.
Chegamos às escadas que levavam ao andar de cima, uma placa apontava a direção do auditório.
- Você sabe que desde o início investimos muito em você, não é mesmo Olívia? - Ela perguntou retoricamente como sempre fazia - sempre mostrou aptidão, reverência, boa conduta e boas notas. Assim como a sua mãe.
Ah.
Estávamos de frente para a porta, ela empurrou e liberou o caminho para eu passar.
- Tome um lugar por favor - Ela pediu enquanto subia na estrutura de madeira que ficava pouco acima do chão.
O auditório era uma sala oval, grande e com eco. O chão era de um carpete escuro para abafar nossos passos e as velas pendiam-se nas paredes como luminárias que de forma sútil iluminavam o local. O cheiro de madeira e cera penetraram em meu nariz, assim como o forte perfume de Patrícia que estendia-se aos poucos pelo lugar.
Eu desci as escadas e sentei na primeira fileira, bem de frente para minha orientadora.
Em doze meses e 365 dias minha mãe sempre me mandava doze cartas, elas continham frases motivacionais e memórias do seu último ano na escola. Ela me ajudava mesmo distante a ter uma rotina organizada, com horário e limite para todas as atividades.
- O que é o internato, Olívia?
Já ouvi essa pergunta várias e várias vezes, minha resposta era a mesma que me ensinaram desde cheguei aqui:
- Virtudes é um colégio interno que preza pela formação de jovens puros para uma sociedade perfeita - Fiz uma pequena pausa - Ele resgata valores morais e virtudes humanas como sabedoria, disciplina, obediência  e honestidade.
- Como se conquista cada uma dessas virtudes? - Ela caminhou lentamente pelo palco com as mãos atrás do corpo.
- A sabedoria se adquire ao ouvir, a disciplina se adquire pela resiliência, a obediência pelo respeito e a honestidade pela confiança.
Um silêncio estendeu-se pelo auditório. Ela meneou levemente a cabeça enquanto olhava para o teto parecendo analisar cada palavra que saiu de minha boca.
- O que pode atrapalhar... um aluno a conquistar essas virtudes?
Pensei que estava sendo testada, precisei conter um sorriso pois amava responder perguntas ao qual já sabia as respostas.
- Arrogância, preguiça, mentira e desconfiança.
Eu respondi segura.
A luz branca dos canhões de luz que ficavam acima do palanque cobriram todo seu corpo, fazendo o terno azul marinho cintilar e o cabelo loiro ficar quase branco. Suas emoções estavam escondidas por camadas de curativos e uma pele lisa, com poucas rugas.
Ela olhou para mim, deixando o silêncio preencher todo o ambiente.
- Má influência.
Eu franzi o cenho sem entender.
- No tempo que antecede a fundação da escola, o mundo era perfeito. Seres humanos e animais viviam em harmonia, usufruindo da natureza entre si e vivendo em um ciclo saudável. Até que um dia, uma mulher escutou um animal astuto e mentiroso, ele ofereceu para ela um novo caminho e ela aceitou - Disse ela resumindo a história dos nossos antepassados - Isso trouxe a desgraça sobre o mundo e sobre seu marido que era um homem bom.
Acho que minha confusão transpareceu, ela sorriu de lado.
- Algumas amizades ou companhias podem nos influenciar para o mal caminho, isso se você não tiver uma conduta sólida, o que não é o seu caso - Ela levantou as sobrancelhas - Mas... peço que se afaste da senhorita Kinoshita.
Eu estreitei as sobrancelhas. Sempre dei atenção aos conselhos que me davam, mas eu tenho certeza que esse aviso não serve para mim, eu praticamente não falava com Eva. Não tínhamos nenhum vínculo forte, pelo menos não mais.
- Não me olhe com essa cara Olívia - Ela inclinou levemente o rosto em minha direção, abaixei a cabeça envergonhada - Sua mãe e eu decidimos isso juntas, ela disse que é importante tirar do seu caminho aquilo que não vai agregar.
- Perdoe minha reação, orientadora - Eu me recompus - Creio que isso não será um problema.
Ela esboçou um leve sorriso vazio.
- Além disso, ela compareceu a uma reunião do conselho, e adivinhe só - Ela parou me fitando - Ela escolheu, juntamente comigo, o seu parceiro de vida.
Eu devia ter perdido a cor do rosto ou simplesmente fiquei sem reação.
Meu rosto murchou em segundos, aquilo que eu tentava esconder no fundo da minha mente estava finalmente acontecendo. Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Minha mãe tinha vindo à escola, não me avisou e... escolheu algo para mim.
De novo.
Eu espantei esse pensamento, ela foi a melhor aluna que essa escola já teve, sempre foi rodeada de pessoas incríveis e escolheu um bom homem para passar o resto de sua vida. Deveria confiar nela.
Eu forcei um sorriso.
- Isso é reconfortante - Engoli em seco, mas mantive minha postura - Quem será meu parceiro?
Ela empinou o nariz e falou com certa animação em sua voz:
- Erick Carrillo.
Isso não pode ser verdade.

...

Erick Carrillo, um garoto com 1,80 de altura, simplesmente uma das pessoas mais inteligentes que sempre estava competindo comigo no pódio. Ele era exemplar, educado, atencioso e o que realmente se espera de um cavalheiro, além de um convencido.
A última vez que nos vimos estávamos na biblioteca jogando xadrez, ele me forçou e eu aceitei. Ele simplesmente ganhou de mim usando técnicas bestas e totalmente idiotas.
Tentei relaxar o espaço entre minhas sobrancelhas.
Eu ainda estava pensando sobre essas coisas quando eu e Giselle chegamos ao anfiteatro. O lugar estava abarrotado de alunos, perdidos e levemente confusos com o que estaria acontecendo. O aviso de última hora atrapalhou as atividades de todos os jovens, alguns portavam uniformes de treino, pijamas ou seja lá o porque aquele garoto está usando pares de sapatos diferentes
- Olha, a Eva! - Giselle apontou para onde ela estava sentada.
Ela olhava com cara feia para um garoto que estava sentado ao seu lado, ele esgueirou-se levemente para perto dela. Eva ergueu a perna e pisou em seu pé, ele gritou reclamando.
Eu bufei levemente.
Acho que minha mãe me fez um favor novamente, agora eu realmente tenho uma desculpa plausível para não me referir a ela.
Subimos as escadas e chegamos onde ela estava, totalmente jogada no banco de pedra sem se importar de estar de saia. Ela nos olhou com aquela cara de nojenta e abriu espaço para que pudéssemos nos sentar.
Eu sentei ao lado de Giselle e fiz uma respiração abdominal. Ajeitei meus cabelos castanhos e toquei levemente na coroa de trança que seguia no alto da minha cabeça.
- Cadê a Camile? - Eva perguntou.
- Achei que estivesse com você - Disse Giselle transparecendo sua confusão.
Vai ser fácil ficar longe dela.
O céu estava limpo, com poucas nuvens. Os raios solares cobriam todo o anfiteatro e faziam a estrutura de gesso e pedra brilhar, como se tivessem derrubado um mar de glitter sobre o lugar. Alguns pássaros voavam acima de nós, provavelmente curiosos sobre a reunião.
Nossos professores apareceram e subiram na superfície de pedra acompanhados dos coordenadores, orientadores e diretor.
Eles cochicharam entre si, suas cabeças se mexeram em concordância e Patrícia tomou a frente da reunião.
Ela bateu a mão no pequeno microfone, o som ecoou pelos alto falantes.
Em questão de segundo todo o farfalhar e conversa parou, os alunos tomaram seus lugares e prestaram atenção. Ela esperou até que todos estivessem totalmente voltados para ela.
- Boa tarde alunos do colégio Virtudes - Ela apoiou as mãos no palanque - Foi convocada uma reunião de emergência e toda a escola está reunida aqui para um recado importante. Muitos tiveram sua rotina interrompida, eu imagino.
Ela ajeitou a gravata de seu terno.
- Como todos sabem, nessa escola nós prezamos pela obediência, sabedoria, disciplina e honestidade. Porém é fato que recentemente muitos têm falhado com essas normas, pois então permitam-me lembrá-los de algumas das principais.
Ela forçou um sorriso, os curativos se mexeram, logo em seguida ela desistiu de manter a feição serena.
- O último andar é estritamente proibido para alunos! - Sua voz saiu forte e potente, reverberando em nossos corações - Aquele que for visto subindo para o último andar, será expurgado da escola, não podendo mais fazer parte da comunidade.
Alguns cochichos irromperam na plateia, eu franzi as sobrancelhas.
Ninguém na escola tinha coragem ou rebeldia o suficiente para subir ao último andar, alguns boatos rodavam entre os alunos a anos, eles variam entre anjos imaculados a possíveis assassinatos.
Virei sutilmente a cabeça até conseguir ver Eva, ela estava com aquela mesma expressão do almoço, quase beirando o medo. Seus braços estavam cruzados sobre o peito, seus dedos apertavam sua camisa branca e a respiração parecia meio irregular. Percebi um volume em seu braço, o lugar em que ela exercia pressão parecia um curativo.
- O toque de recolher deve ser respeitado, aquele que não cumprir poderá ter suas atividades suspensas. Caso esse aluno ou aluna for do último ano, poderá até mesmo prejudicar sua colação de grau - Mais murmúrios, ela aproximou a boca do microfone e forçou novamente um sorriso - Obrigada, liberados.
É isso?
Eu olhei em volta, todos pareciam estar atordoados com a informação já tão conhecida por nós.
Alguém havia quebrado essa regra, eu nem precisava olhar para saber quem era.
Eva.

𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga MoëbiusOnde histórias criam vida. Descubra agora