𝐆𝐢𝐬𝐞𝐥𝐥𝐞

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O farelo do bolo entalou em minha garganta, precisei cobrir a boca com as mãos para não cuspir o pedaço inteiro. Senti uma mão apalpar minhas costas e levantar meus braços.
- Giselle! Consegue falar? - Perguntou Camile preocupada.
Eu balancei a cabeça e voltei a tossir. Estávamos na fila, tentei conter minha crise de engasgo sem atrapalhar a contagem de alunos.
O problema foi cessando e eu consegui tirar o farelo de minha garganta, meu pulmão recuperou o ritmo novamente. 
Coloquei as mãos sobre o peito.
- Desculpa, eu me engasguei - Tossi novamente.
- Liberadas! - a monitora gritou sobre nossas cabeças.
Todas nós saímos do refeitório e agora estávamos de volta à ativa.
Ergui levemente o rosto e me deparei com Eva. Ela franziu as sobrancelhas, estava com os braços cruzados sobre o corpo estampando uma leve hesitação em seu rosto.
- Que susto - Camile deu uma risada de alívio - Eu pensei que finalmente fosse usar as técnicas que nos ensinaram naquela aula de pequenos socorros.
Soltei uma risada sem graça.
- Vou beber água - eu disfarcei e fui me afastando delas.
- Tudo bem ir sozinha? - Ela perguntou.
- Sim, claro. - Eu olhei em volta e Olívia já não estava em nosso campo de visão - Aliás, peçam para Olívia me encontrar depois na sala de costura, preciso tirar as medidas da roupa dela.
- Tudo bem. Até mais tarde então - Camile esboçou um sorriso simpático
- Até - Acenei com a mão em um gesto de naturalidade.
Eva não retribuiu, na verdade ela continuou me encarando.
Mantive a postura e deixei o lugar para trás.
Tem alguma coisa estranha acontecendo.
Eu não contei para a Olívia, mas eu também tive pesadelos, eles tem me assombrado porque, diferente dos dela, são sempre iguais. Eu consigo dizer detalhadamente a ordem de cada acontecimento: Olívia está de frente para mim a uma grande distância, seu rosto está contorcido de raiva e em sua mão ela carrega uma tocha improvisada. Os céus eram cobertos por uma névoa escura, as nuvens brilhavam com raios silenciosos e vermelhos. Ela estava sozinha. A imagem mudou, o lugar foi substituído por uma grande árvore perfeita e saudável.
Até ela começar a apodrecer.
O silêncio foi quebrado quando o chão se abriu e um longo abismo se formou em minha frente. Eu nunca conseguia ver o que tem lá embaixo, mas eu sabia que era algo vivo.
Olívia aparece novamente, ela arremessa o graveto e o lugar irrompe em chamas.
Mas em questão de segundos, o pesadelo acaba. Evaporando em minha mente, então estou no meu quarto, deitada, suada e enrolada nas cobertas.
Não era real.
Mas as sensações que ela contou faziam sentido para mim. Falta de ar, medo e incapacidade de se mover. Talvez a minha mente estivesse me pregando peças, podiam ser só sonhos falhos como disse a professora.
Trouxe os dedos para as palmas das mãos e apertei estralando.
Não queria criar alarde, podia ser só coincidência.
Aquela árvore que aparecia em meus sonhos não me era estranha, na verdade, estudamos ela logo nas primeiras aulas aqui na escola. A árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas existem muitos tipos de espécies, Eva não podia estar falando da mesma coisa que eu sonhei, era apenas uma coincidência.
Ela só verbalizou o que estava em minha mente.
Mas eu não menti para elas, realmente precisava ir para a sala de costura. A turma do último ano sempre ficava responsável por produzir os figurinos, agora com os preparativos da formatura e do Espetáculo, eu recebi um pequeno cargo de liderança. Isso significava mais detalhes, tecido, suor e mão de obra.
E adivinha quem vai produzir o figurino dos personagens principais... eu.
Os corredores estavam cheios, eu me espremi entre os grupos e pedi licença para não esbarrar nas meninas. Todas estavam imersas em suas fofocas, nos garotos bonitos e na semana de exames..
Eu evitava andar pela escola esse horário, nunca sabia para onde olhar ou agir.
Uma menina acompanhou os meus passos e me olhou de cima para baixo, ela cochichou algo para sua amiga e ambas me encararam, soltando uma risada falsa com desgosto.
Eu sorri.
Crescer em um internato me ensinou muitas coisas, uma delas é que se você começar a se importar com o que as pessoas dizem sobre você, vai acabar vivendo por elas.
Piranha, sonsa, falsa, talarica e mais trinta apelidos que não preciso listar. Camile falou que é inveja porque eu chamava atenção dos meninos, eu diria que é algo mais específico, acho que não preciso dizer.
De qualquer jeito eu permaneci no meu caminho. Ergui os olhos e vi as letras entalhadas nas placas indicando a localização de cada sala e turma.
Virei para a esquerda.
Senti um frio na barriga.
Eu tinha ficado surpresa. Após a votação dos alunos, percebi que todos acreditavam que eu deveria estar à frente de um grande projeto como esse, o professor nem hesitou, confiou em mim logo que soube do resultado. Não era o meu forte, eu geralmente sou a ajudante e me contentava com isso. Eu preferia.
Mas eu não pude dizer não, resolvi aceitar e ajudar o máximo que conseguir.
A luz do sol tomou conta de todo o lugar, fazendo-se desnecessário o uso das velas. O lugar de repente começou a ser tomado por caixas de papelão que preenchiam cada centímetro do chão e das paredes. Haviam alguns alunos coçando os dedos para não revirar os pacotes, eles me esperavam ansiosos.
- Ela chegou! - Um menino exclamou.
Todos soltaram um suspiro de alívio e me cercaram em uma roda fazendo muitas perguntas, as quais nenhuma consegui responder pois atropelavam as palavras.
- Giselle! - Uma voz fina me chamou.
Uma garota baixinha e fofa empurrou os jovens sem sequer pedir licença. Seus cabelos curtos e volumosos estavam soltos, a saia parecia ficar grande demais nela assim como a camisa de botão. Era Mabel, minha colega de mesa nas aulas. Suas mãos estavam ocupadas com algumas caixas.
- Que bom que você apareceu. Eu fiz uma lista das encomendas para que você não se perca, vai ficar bem mais fácil de verificar o que chegou. Está no bolso do meu Blazer - Ela levantou os cotovelos enquanto tentava equilibrar a pequena pilha e seus braços.
Eu peguei e pedi licença.
Os figurinos são divididos entre simples, meio-simples, meio-complexo e complexo.
Eu obviamente fiquei com os complexos, pelo visto o professor me amava.
Olívia ficou aliviada por saber que eu faria a roupa dela, da última vez tinha ficado larga demais e tiveram que arrumar mais de três vezes.
O meu é um meio-complexo, vou encenar uma das servas de Titânia, as fadas secundárias, assim como Eva.
Ela claramente odiou esse papel.
- Eu sei, é uma lista grande... Mas será que você não quer abrir a porta?
- Ai, desculpa... Claro.
Plumas voaram, tecidos caíram, rolos escorregaram das prateleiras e uma gritaria vindo do fundo da sala, em questão de segundos tudo virou uma bagunça, a sala estava uma algazarra e muitos acabaram tropeçando nos materiais caros.
Alguém tropeçou, ouviu-se um xingamento e o ínicio de uma suposta briga.
Mabel notou meu desespero, ela bateu palma e tirou aquela voz que guardava no fundo da garganta.
- Atenção, bando de animais - Todos olharam para ela - A Giselle está tentando falar, será que poderiam ter um pouco de respeito com a nossa nova líder?
Quero desaparecer, não quero mais.
Todos me fitaram, esperando uma bronca ou algo do tipo.
O que a Olívia faria? Provavelmente nada, todos respeitam ela simplesmente por existir.
- Eu não... - sussurrei, olhei para ela pedindo socorro.

𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga MoëbiusOnde histórias criam vida. Descubra agora