𝐆𝐢𝐬𝐞𝐥𝐥𝐞

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Olívia estava andando pelo quarto igual uma galinha sem rumo enquanto relembrava o assunto de alguma matéria que eu nem mesmo sabia.
- O que aconteceu? - Perguntei enquanto procurava uma agulha que não estivesse cega.
Revirei a caixinha me odiando por ter esquecido o kit de costura na sala, estava muito tarde e não tínhamos mais permissão para andar pela escola, logo as luzes seriam apagadas. Depois que fomos para a reunião o dia pareceu ter sido um amontoado de coisas e situações automáticas, eu me senti fora de mim.
- O que? Nada - Ela franziu as sobrancelhas e logo em seguida voltou a falar.
- Você só faz isso quando alguma coisa está te incomodando.
Em vez de chorar pelos cantos e tomar sorvete, Olívia descontava seus sentimentos nos estudos. Uma vez, ela foi capaz de aprender todos os reinos do mundo animal em menos de uma hora, foi assustador.
O reino monera abrange bactérias e cianobactérias, podendo ser capazes de fazer fotossíntese ou quimiossíntese. São os únicos procariontes...
- Não tem nada me incomodando - Ela disse tentando conter sua irritação.
- Achei! - Entre tantas bugigangas eu encontrei uma agulha boa - Me passa o bundinha.
Ela foi até a minha escrivaninha e pegou um urso de pelúcia branco com pelagem curta. Quem decidiu chamar ele assim foi Eva depois de ver que eu usava o rabinho dele como porta alfinete, era apenas uma boa opção reserva para se ter no dormitório.
Peguei a linha e coloquei ao lado do casaco comparando as cores, por sorte era do mesmo tom da costura. Peguei a pelúcia e deixei ela ao meu lado.
Tirei da bolsa um pequeno rolo de tecido, recortei, posicionei em cima do buraco e passei os alfinetes para prender o tecido temporariamente. O casaco de Jake cheirava a mel, grama molhada e baunilha. O moletom ainda apresentava algumas manchas esverdeadas, ele provavelmente deve ter rasgado durante o treino.
Eu passei a linha pelo buraco da agulha e preparei a reforma do casaco.
Assim como o uniforme, a jaqueta do time era amarela, com bordado em azul escuro e mangas cor de creme. Nas costas o número cinco estava estampado.
Olívia parou de citar parágrafos do livro de física e se jogou em cima da minha cama, o colchão afundou levemente espalhando minhas coisas.
- Cuidado para não se machucar, tem agulha aí...
- Minha mãe esteve na escola.
Tirei os olhos do casaco.
Olívia encarava o teto com uma expressão indecifrável. Seu olhar estava pesado, debaixo deles havia uma olheira funda. Os cabelos castanhos escuros estavam totalmente soltos e a pele recém lavada, ela vestia uma camisola rosa bebê com mangas fofas.
- Quando? - Eu perguntei cuidadosamente.
- Eu não sei - Olívia jogou os braços acima da cabeça - Ela não me avisou.
Eu mexi os dedos acompanhando suas palavras.
- Eu já tenho meu parceiro de vida - Ela completou.
Minha boca curvou-se em um sorriso animado. Eu ia parabenizá-la, mas minha expressão  congelou quando percebi uma leve dor em seus olhos, ela respirou fundo e forçou um sorriso.
- Sinto muito Oli, eu...
- Estou animada para conhecê-lo - Ela sentou na cama escondendo sua insegurança - Quer dizer, eu já sei quem ele é, só preciso conhecê-lo melhor
Meu coração apertou, ela estava mentindo.
- Claro - entrei em sua onda - Quem é?
Olívia hesitou antes de falar.
- Erick Castillo.
Meu queixo caiu, ela odiava esse garoto por mais que só tenham conversado umas duas vezes. Não fazia o mínimo sentido.
Ela levantou da cama, foi até a sua escrivaninha e começou a guardar seu material.
Nossas mesas ficavam próximas a uma penteadeira que dividimos, ela era branca e possuía desenhos, entalhes e puxadores de flor. Minha cama ficava de frente para ela, cara a cara com o espelho. Eu via meus movimentos, meu rosto e minhas roupas.
O meu outro eu.
Um arrepio correu em minha mente quando me lembrei do depósito.
Apertei os dedos das mãos sobre a agulha e desejei jogar uma cadeira sobre a superfície, queria que ele quebrasse e se espalhasse por todos os lados até que não houvesse mais nada de espelho.
Olivia levantou a apostila de física I.
- Falando nisso, quem eram aqueles garotos?
Sua voz me trouxe a realidade e só então percebi que prendia a respiração.
Ela relembrou do encontro que tivemos hoje à tarde.
- Jake e Jonathan - Eu abaixei o rosto desviando o olhar do espelho e voltei a costurar - O de cabelo castanho me pediu para...
- Esse casaco é dele, não é? - Olívia apontou deixando uma reação de desgosto aparecer - Fala sério, ele tinha uma pintinha no canto do olho, isso é um mal sinal.
Sabia que ela diria isso.
- Ele só foi me pedir ajuda, não quer dizer nada.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Um dia como representante de turma e já um bando tem meninos aos seus pés, falei que era bom.

...

Eu mexi os dedos, meu braço estava formigando mas eu estava tão cansada que qualquer mínimo movimento era desgastante.
Ainda estava escuro, devia ser madrugada.
Eu abri os olhos em uma fresta enquanto encarava o papel de parede repleto de rosas desbotadas.
Meu braço estava gelado e chegava a doer, por isso infelizmente fui obrigada a me mexer. Eu levantei o tronco liberando o membro e virei de barriga para baixo sentindo todo meu corpo relaxar, o sangue voltou a fluir aos poucos.
O quarto estava curiosamente quieto, em noites quentes como essa era comum escutar grilos por aí. Eu me aconcheguei na cama ainda com as pálpebras coladas, claramente feliz por ter mais tempo para dormir.
A cama rangeu.
Eu imaginei que Olívia tivesse acordado mais uma vez, eu despertei para ver como ela estava mas... Ela dormia profundamente.
Arregalei os olhos, um frio que subiu pela minha espinha e espalhou-se por todos os cantos mais quentes do meu corpo. Eu desejei com todas as minhas forças me enterrar no mais profundo das cobertas, mas eu não consegui pois estava presa, sendo forçada a ver aquela coisa.
Uma sombra tão escura quanto os cantos do quarto, magra e cadavérica. Era grande, muito mais alta e esguia que um ser humano, seus braços eram longos e cresciam além do normal, com garras afiadas que seguravam a cabeça de Olívia. Mas não era só isso.
A coisa tinha pés grandes e dedos longos, ela cobria o tronco de Olívia, empurrando e esmagando seu peito, afundando-a no colchão. Olívia teve alguns espasmos e suas pálpebras ficaram agitadas, ela tentava acordar.
E eu queria apagar.
A cabeça do humanoide era irregular e tinha triângulos pontudos, quase parecendo uma estrela mal feita.
Eu soltei um arquejo.
A coisa olhou para mim.
Seus olhos eram grandes e redondos, mas não de um jeito confortante. A pupila era apenas um vazio escuro e fundo, com rugas ao redor dando-lhe uma expressão inumana.
Sua expressão vidrada me fitou e meu peito acelerou, senti que poderia cuspir meu coração agora mesmo.
Eu lembrei de onde conhecia aquela criatura, ela estava no depósito, no espelho espiando atrás de mim.
- Olívia - Eu chamei seu nome.
- Estou te esperando, Giselle - sussurrou o vento.

𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga MoëbiusOnde histórias criam vida. Descubra agora