𝐂𝐚𝐦𝐢𝐥𝐞

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Eu estava exatamente a uma hora presa no banheiro, passei contando os segundos até que virassem minutos e se transformassem em horas. Talvez eu tenha me perdido na conta algumas vezes, não tinha certeza.
Largada sobre o chão de azulejos amarelos, em uma cabine de madeira e paredes beges, eu inspirava o cheiro de naftalina misturado a sabonete líquido.
O sinal tocou a um tempo avisando sobre uma reunião de emergência, mas eu não compareci. Poderia ter saído, mas entre chegar atrasada - e ser humilhada - ou perder a reunião, eu preferi a segunda opção. Eles tinham muitos alunos, não iam sentir a minha falta.
Como sempre.
Não era só uma questão de ego, eu literalmente não tinha como sair daqui dessa vez. Já tentei subir na privada, passar por baixo ou por cima da cabine, até tentei o óbvio que era abrir a porta. Eu estava trancada aqui dentro e o que me restava era esperar alguém aparecer.
Eu pensei em deitar no chão e dormir, porém peguei-me encarando para os rabiscos nas paredes feito por garotas entediadas que provavelmente tinham matado aula. Piadas, xingamentos e corações com iniciais eram apenas algumas das coisas que eu pude absorver dessa bagunça. Um pouco mais embaixo da cabine, quase escondido, havia alguns pauzinhos provavelmente usados para contar as horas e não dias.
Sei disso porque fui eu que fiz.
Escorei a cabeça e encarei o teto.
Esses desenhos me fizeram pensar que talvez eu não fosse a única nessa escola que se sentia sozinha. Acredito que todo mundo deve ter passado por essa fase em algum momento da vida.
Nós experimentamos a solidão desde pequenos. As crianças chegam em Virtudes quando suas idades variam de cinco até no máximo oito anos, todas elas novas demais para entender a nova rotina e os estudos pesados. De repente não estamos mais usando pijamas e andando descalças por aí, mas usando roupas quentes e caras com sapatos que machucam. As canções de ninar são substituídas por toques de recolher, as brincadeiras por aulas de boas maneiras e os sonhos por noites mal dormidas.
Para mim as coisas não havia mudado muito, Virtudes fazia eu me sentir assim como me sentia em casa.
Cresci em uma família grande em que tios, tias, avós e pais viviam sob o mesmo teto e cuidavam de seus muitos filhos. O que isso significa? Mais pessoas para serem comparadas.
"Sua irmã já está nas turmas avançadas"
"Vitor tinha o dobro do tamanho de Camile nessa idade"
"Ela já devia ter ganhado corpo, parece estar doente"
Minha família tinha certa pressa para me mandar para Virtudes, eu acho que eles não queriam ter mais uma criança para cuidar.
Ainda me lembrava muito bem do primeiro dia, a Eva foi a primeira a falar comigo.
Eu estava me pendurando em uma árvore quando ela apareceu. Seu cabelo era curtinho e redondo com cachos bagunçados, as sobrancelhas eram finas e suas pernas eram longas. Usávamos o antigo uniforme do fundamental.
Ela se aproximou de mim naquele dia.
- Isso é fácil!
Eu cruzei os braços ainda pendurada e falei:
- Faz melhor.
E ela fez.
Ficamos de cabeça para baixo sentindo o sangue descer para nossa cabeça enquanto as crianças corriam pelo parquinho e os monitores examinavam cada movimento.
Depois disso nos tornamos inseparáveis.
A antiga movimentação retornou aos corredores, as vozes e passos apressados eram abafados pelas paredes do banheiro.
A porta rangeu, alguém entrou.
Eu me encolhi no fundo da cabine e trouxe as pernas para o peito, sentindo meu coração bater um pouco mais rápido. Eu queria sair daqui, mas eu tinha medo de quem estava do lado de fora.
Minha respiração agitou-se e eu apertei os nós do dedo.
- Camile?
Eu relaxei.
Eva.
- Oi - eu respondi desanimada.
Seu sapato fez sombra pela fresta da cabine, ela tentou empurrar a porta e soltou um palavrão.
- Quebraram a tranca.
Isso explica muita coisa.
Um estrondo ecoou pelo banheiro e os parafusos caíram no chão, a porta abriu lentamente. Eva chacoalhou a mão, os nós dos dedos estavam vermelhos.
- Me enviaram um bom samaritano para me ajudar.
- Elas fizeram aquilo de novo?
Eu suspirei. Estiquei as pernas à minha frente e cruzei os braços. Eva sentou ao meu lado no chão brilhoso e fez a mesma pose, seu perfume de canela espalhou-se pela cabine me fazendo relaxar.
- A quanto tempo está aqui? - Ela apontou para os palitinhos.
- Uma hora e 45 minutos, não vou bater aquele recorde de três horas...
- Camile, isso é ridículo - Ela me cortou olhando nos meus olhos - Fala sério, você precisa fazer alguma coisa, mostrar para elas que você se importa. isso não está certo.
- Que diferença faz, Eva - mexi os ombros - O ano está acabando e a escola também, logo elas se livram de mim e eu me livro delas - respondi impaciente.
Ela cerrou a mandíbula e balançou a cabeça em indignação, sua raiva tornou suas sobrancelhas mais afiadas do que já eram.
Eva tinha uma pele lisa, firme, sobrancelhas bem feitas e um cabelo perfeito, até os cachos desfeitos eram bonitos. Seus olhos eram escuros e marcantes, uma das suas armas mais poderosas. Sem contar com sua presença.
- Vamos - ela levantou e estendeu a mão - Vou com você até a sala de fotografia.
Eu segurei em sua mão e fui puxada do chão.
Os corredores estavam cheios novamente, os jovens estavam atordoados conversando provavelmente sobre a suposta reunião.
Eva quebrava esse ciclo de fofoca com sua presença, todos levavam os olhos para ela julgando intensamente. Mas ela mantinha a cabeça erguida e seu andar continuava firme, ela não se deixou abalar por um bando de jovens sedentos por polêmicas.
Para ser sincera, eu amava a cara carrancuda que ela fazia para espantar as pessoas, isso não funcionava comigo. Gostava de como isso fazia ela parecer poderosa e forte.
Mas eu então reparei que suas mãos tremiam sutilmente, eu franzi a sobrancelha estranhando.
- O que falaram na reunião?
Ela aproximou-se de mim, quase baixando a guarda e apertou as mão em punho.
- Eu acho que fui pega dessa vez.
Aquela noite me veio à memória.
- Como assim? - franzi as sobrancelhas.
- Estava escuro, não tinha como ela me ver, mas... - ela suspirou - Meu Deus.
A última vez que a Eva sumiu, retornou tarde da noite com enxaqueca e um corte profundo no braço, ela disse que tinha se cortado em um pilar de gesso dos corredores. Até agora ela usava um curativo no braço.
Mas naquele dia foi diferente, ela parecia distante, como se algo tomasse seus pensamentos.
Ela fazia isso desde os onze anos, quando entramos naquela época esquisita da pré-adolescência. Eva faltava às aulas e não fazia mais as lições de casa, em vez disso andava por todos os corredores ou matava tempo na biblioteca. As coisas não mudaram muito pelo visto, ela só se tornou mais ágil e esperta.
Eu ajudava ela a estudar de vez em quando, apenas o necessário para não ficar de recuperação nas matérias. Mas Eva era uma ótima aluna, tinha um pensamento rápido e lógico, poderia ser tão inteligente quanto Olívia, ela só não queria.
- Você está ficando velha e está perdendo o jeito - brinquei tentando aliviar seu humor.
Sua bochecha curvou-se em um sorriso quase inexistente.
Eva cortou caminho da multidão de alunos e entrou em um corredor apertado, as paredes quase encostaram em meus braços. Chegamos em uma bifurcação e seguimos para a direita sendo cuspidos para a varanda do prédio que ficava próxima ao jardim.
Seguimos em frente e entramos na estufa.
O cheiro de terra molhada penetrou em meu nariz e a transpiração das plantas cobriu os meus poros. Do teto pingava pequenas gotas, pelo caminho de cimento batido folhas e pétalas de flores decoravam o chão. Alguns alunos retornavam a eletiva meio confusos pela recente reunião.
O lugar era quente e refrescante ao mesmo tempo.
Eu desejei ficar, mas quase perdi Eva de vista.
Saímos da estufa e voltamos para a escola, agora em um corredor pouco movimentado e bem limpo. Uma placa indicava:
Estufa
Sala de fotografia
Jardim
- Camile - ela me chamou com a voz firme - Você tem duas opções se caso essas meninas aparecerem de novo: ou você revida ou você corre.
Eu acenei positivamente. Segurei a maçaneta me preparando para abri-la, porém eu hesitei.
- Aonde você vai? Não me contou o que disseram na reunião.
Ela deu de ombros e começou a caminhar lentamente para longe.
- Não foi nada demais sério, pode até perguntar para as meninas - Ela enfiou as mãos no bolso do blazer - Não me pegaram...
Eva quase completou a frase com sua incerteza.
- Olhe as suas costas, Eva.

𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga MoëbiusOnde histórias criam vida. Descubra agora