Uma mulher forte e mais alta que eu agarrou os meus braços. Arrastou-me pelos corredores que pareciam não ter fim. O tapete enroscou em meus sapatos, meu cabelos molhados pelo suor grudaram em minha testa enquanto eu me chacoalhava. Tentei me desvencilhar de suas mãos, esperneei e segurei seus dedos buscando abri-los, mas era inútil.
Esse momento foi um borrão na minha cabeça, eu queria ir embora, queria que me soltasse, queria correr, queria saber o que tinha feito de errado.
Quando vi, seus passos ficaram lentos e fui empurrada para dentro de algum lugar.
Meu corpo chocou-se com o chão gelado, encolhi-me trazendo as pernas para o peito e apertei. Desejei estar com a minha avó, ela jamais faria isso. Desejei sentir seu cheiro, suas mãos enrugadas e cobertas de manchas, macias pelo antigo trabalho que realizava. Ela me entenderia.
- Para de gritar.
Pediu alguma voz irritada, eu ignorei e continuei no mesmo lugar.
Escutei o som de algo sendo arrastado e pequenos batuques sobre o chão.
Um par de sapatos iguais aos meus parou na linha dos meus olhos, eles estavam sujos de terra e as meias estavam rasgadas, em um dos seus joelhos via-se um corte, o sangue que outrora havia escorrido agora estava seco e grudado em sua pele.
Eu me soltei aos poucos de meu próprio corpo e olhei para cima.
Uma menina branquinha que devia ter a minha idade me encarava nos olhos. Seus cabelos eram castanhos escuros e lisos, batiam na altura do ombro e estavam totalmente embaraçados.
Ela deitou ao meu lado no chão e continuou com os olhões fixados em mim, ela parecia intimidadora com as sobrancelhas cheias. Lembrava-me de uma coruja, daquelas que eram atentas e perigosas quando precisavam ser. Sua íris era escura como o tronco de carvalho, em seu queixo ela carregava uma marca de nascença.
Ela cheirava a terra molhada e em seu rosto haviam alguns pingos de sangue, não era dela, não havia corte em suas bochechas.
- O que você fez? - perguntou-me curiosa.
Eu fiquei quieta.
Ela suspirou e continuou me encarando, fiquei com vergonha, senti minhas bochechas esquentarem e virei para outro lado encarando o chão.
- Aqui é a sala de castigo - Disse ela.
Meu rosto estava grudento, os olhos doíam e a cabeça latejava, a coriza escorria do meu nariz. Eu tateei o chão e olhei em volta.
Era uma sala quadrada cor de creme, tão clara que parecia ser até difícil enxergar os limites das paredes. Não havia ornamentos, nem desenhos, nem colunas, nada além de cadeiras infantis viradas para a parede. No lugar de janelas havia apenas pequenas tubulações.
Voltei para a menina.
Ficamos deitadas no chão, não sei quanto tempo passou, mas foi o suficiente para eu me sentir anestesiada e totalmente isolada do mundo em que estive a algumas horas.
- Você machucou alguém? - perguntei.
- Sim - respondeu - Meu nome é Olívia.
Não queria dizer meu nome.
Fiquei calada.
- Você machucou alguém? - Ela revidou minha pergunta.
Me encolhi, ela dava medo.
- Eu não sei - Eu trouxe os joelhos ao peito novamente - Perguntei porque mandaram os porcos cair do penhasco - mirei minhas mãos.
Eu não sabia como ela ia reagir. Poderia me ignorar, me agredir ou me xingar por pensar desse jeito.
Um ar saiu de seu nariz, seu rosto se contorceu e ela começou a rir, depois a gargalhar.
Fiquei sem reação.
Eu não tinha contado uma piada.
- O que foi?
Mas ela continuou rindo, não sei se estava zombando de mim. O som de sua risada era contagiante, uma mistura de inocência e personalidade forte, levemente estranha, ela imitava o som de porco quando ria.
Então eu também estava rindo.
Só tinha uma pessoa na escola que não ligava para o que eu pensava, éramos de turmas diferentes, seu nome era Camile. Eu pensei que talvez tivesse encontrado mais alguém para me aceitar neste lugar, para que eu me sentisse em casa.
Ela tinha os dentes tortos, o debaixo havia caído e a marca de nascença esticou um pouco. O sorriso dela era estranho, curvava-se para baixo em vez de para cima e seus olhos ficavam finos igual frestas.
Deitadas no chão, nossa voz ecoou pela sala de castigo até nossas barrigas começarem a doer, quando acalmamos, minha cabeça estava mais leve.
Eu me atrevi a responder sua antiga pergunta.
- Eva, meu nome é Eva....
As coisas eram diferentes, eu era mais nova, a escola parecia maior e eu ainda achava que poderia fazer as pessoas gostarem de mim, mas não se pode mudar aquilo que está destinado a ser. Talvez eu estivesse destinada a ser um ponto fora da curva, mas não do jeito bom igual daqueles que ouvi histórias quando criança.
Camile arrancou o esmalte verde musgo das unhas, em sua saia amarela xadrez caiam resquícios da tinta.
A aula de etiqueta era uma verdadeira tortura psicológica, todo movimento nosso era calculado e analisado. Cordélia, nossa professora, tinha verdadeiros olhos de águia e exprimia as sobrancelhas ao ver alguma garota com má postura.
Isso era ridículo.
Camile estava sentada ao meu lado, com a cabeça levemente abaixada aproveitando o lugar ao fundo para se desligar da aula. Olívia e Giselle estavam algumas fileiras à frente de nós, com o queixo erguido e extremamente focadas.
Cordélia finalizou depois de semanas o conteúdo de oratória.
Ela suspirou satisfeita e segurou levemente o dedão. A professora tinha cabelos castanhos claros ondulados, exalava classe e elegância com seu corpo. Sua dicção era impecável, algo que muitos matariam para ter. Conseguia ser mais imponente que Patrícia.
Se não fosse pelo conteúdo, eu até poderia gostar dela.
Atentem-se no poderia.
A biblioteca não estava aberta quando fui mais cedo, eu não tive outra opção a não ser vir para a aula e fazer hora. Não estava com sono, não queria ficar no quarto e nem à toa pelos corredores, essa era a única opção que me restava.
Quando cheguei a professora ficou surpresa, isso me deixou um pouco magoada, se eu fosse uma pessoa diferente viria a todas as aulas e agradaria aqueles que me cercam.
- Enfim, meninas, como todas já foram comunicadas na reunião da semana passada, o Baile está próximo e algumas de vocês nunca tiveram a chance de dançar com um cavalheiro. Porém, é chegada a hora.
Ela deu um doce sorriso, anunciando as boas novas.
Pequenos murmúrios irromperam na pequena sala e as alunas esboçaram sorrisos de animação, foi nesse momento que eu percebi que precisava sair correndo.
- Na maioria das vezes, aqueles que escolhem vocês mais tarde poderão se tornar seus parceiros de vida. Isso garante a vocês uma vida estável e confortável do outro lado do jardim. Um exemplo que nos orgulhamos é Ágatha - Ela apontou para a garota de cabelos castanhos escuros - Mãe de Olívia.
Olívia inclinou levemente o rosto em forma de agradecimento, provavelmente pensando: obrigada, me sinto lisonjeada recebendo esse elogio. Do ângulo em que eu estava sentada consegui ver sua bochecha subindo e mentalizei o seu sorriso costumeiro e invertido, os grandes olhos escuros.
- Ela era uma mulher virtuosa, aquilo que se espera de vocês: Delicadas, recatadas e dedicadas à comunidade, que não cuide apenas de si mas se importe com os outros. E qual foi a recompensa de Ágatha por suas ações? - Perguntou retoricamente - Um homem ainda melhor.
Ela olhou novamente para Olívia, dando-lhe um sorriso de confirmação.
Uma brisa fresca cortou meus pensamentos, olhei de relance e tive um vislumbre do corredor vazio. Um mar de possibilidades, fuga e liberdade para o que estava prestes a acontecer.
Aquilo foi tentador, como um chamado para a aventura.
- Se você for matar a aula é melhor esperar a hora da valsa - Camile sussurrou ainda olhando para as mãos.
- Sou tão previsível assim? - Brinquei em um tom mais baixo.
Ela deu de ombros meio convencida.
Não podia afirmar que o sistema de controle da escola sobre os alunos funcionava, era falho. Por outro lado, dava certo por um motivo: não tínhamos como voltar para casa.
Aqueles que eram expulsos da escola eram expulsos do jardim, não tinha jeito. Eles eram jogados para além dos limites, para o vazio.
O nosso futuro estava aqui, a escola garantiria nossa passagem para o outro lado, uma terra boa, de pão e mel com moradia para todos.
Mas eu cogitava se era verdade, algumas coisas não faziam sentido, por exemplo, porque os nossos pais não estavam lá então?
A maioria de nós veio do vilarejo, uma comunidade próxima aos limites do jardim. Distante da água, com ruas improvisadas, enchentes constantes e pragas.
- Essa cor fica bem em você - Apontei para as suas mãos - Devia usar mais.
Sua boca curvou-se em um sorriso , as bochechas ficaram rosadas.
- Levantem-se - Cordélia pediu e em uníssono obedecemos.
Como uma massa orgânica homogênea, todas nós levantamos e formamos filas para ir a sala de ensaio, uma pequena extensão da classe em que estávamos no momento. O chão era parecido ao do Grande Salão, polido e brilhoso.
Infelizmente Cordélia era inteligente, ela ficava atrás de nós.
Eu só precisava de uma brecha.
A professora estava explicando alguma coisa, eu não estava prestando atenção, minha mente maquinava algum jeito de distraí-la ou me esgueirar entre as filas e, opa, sem querer caí para fora da sala de aula.
- BARATA! - Camile gritou, eu pulei sentindo o coração subir para a boca e em instantes a sala virou um caos.
As meninas gritaram pisando sobre a madeira, subindo nas cadeiras e batendo em suas roupas espantando alguma coisa. As filas se desfizeram, as boas maneiras foram pelos ares. Cordélia desesperada tentava acalmar as garotas e fazê-las retornar às filas, ela abriu as janelas da sala dizendo que o inseto já havia voado para longe.
Eu me encolhi entre as meninas, disfarçando e entrando na onda. Empurrando algumas, tropeçando em outras até chegar à porta.
Meus olhos brilharam, antes de sair, vi Camile aumentando o alvoroço, ela abriu um sorriso e sinalizou positivamente.
Não consegui segurar o riso, saí da sala logo em seguida.
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𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga Moëbius
FantasíaGarotas do Éden é uma ficção distópica ambientada em uma realidade em que adolescentes estudam em um colégio interno para tornarem-se pessoas perfeitas. Porém, as coisas começam a dar errado quando Eva descobre um novo mundo em que as pessoas podem...