Senti uma gota escorrer pela minha testa, meus dedos estavam gelados, o corredor em seu silêncio ensurdecedor fez os meus pensamentos soarem muito mais altos que os meus passos sobre o carpete.
Eu tentava esconder minha inquietação.
O gato possuía uma certa peculiaridade em seu andar. Era elegante e mantinha o peito estufado, olhos verdes e profundos que me fitavam a cada minuto para confirmar se eu estava mesmo seguindo-o. Cruzando o corredor, ele me levou para o lado oposto do prédio, desviando-me dos dormitórios e levando-me para o andar de cima.
As luzes piscaram, eu olhei para trás encontrando apenas um breu ao qual eu torcia para que ninguém saísse de lá. Segundos pareciam minutos, minutos pareciam horas e minha garganta coçou para perguntar algo ao animal, mas o meu lado racional falou mais alto.
Eu respirei fundo.
Podia parecer besteira, mas esse gato possuía personalidade demais para um simples mamífero. Andando na ponta das patas, o longo rabo erguido e chacoalhando lentamente, praticamente desfilando e exalando independência. Não costumava ver animais domésticos, peguei-me refletindo se todos eram assim.
- Para onde vamos? - Me senti idiota no mesmo instante, é claro que ele não respondeu.
Ele permaneceu calado.
Estamos quase no fim do corredor quando finalmente entendo.
Ele parou no primeiro degrau da grande escada que levava para o último andar da escola. O lugar era bloqueado para os alunos, apenas os mais importantes tinham acesso a ele, e quando digo importante digo monitores, diretores e todo o corpo de professores. A curiosidade pairou sobre mim, seus olhos redondos me fitaram com expectativa.
Já ouvimos muitas histórias acerca do último andar, alguns dizem que é o caminho para os céus ou até mesmo para o inferno, dizendo que é da onde eles tiram as provas. Isso eu acho que é besteira. Acostumei ficar muito tempo fora das aulas, vagando pelos corredores e durante todos os anos que morei aqui comecei a prestar atenção, o andar de cima só é utilizado em situações ou momentos específicos, poucos funcionários são chamados apesar de terem permissão de visitar.
O gato esperou por mim.
Virei para trás mais uma vez, mostrando a mim mesma onde eu estava me metendo.
A luz estava me esperando logo acima daquelas escadas.
Confirmei silenciosamente para prosseguirmos o caminho.
Só eu e o metidão, beleza....
O ar estava pesado, minha cabeça doía, conforme subia as escadas sentia uma pressão sobre meu corpo que parecia me empurrar para baixo.
Consegui compreender a mensagem dos arquitetos ao construírem o último andar: "queremos tocar os céus".
As paredes cresciam, o teto era alto e curvava-se em uma grande abóbada de berço. Nela havia um vitral colorido que abria espaço para um salão circular, as cores variavam entre vários tons de arco íris. Diferente da estrutura comum da escola, o último andar era repleto de pedras preciosas e um chão liso quadriculado,
O caminho para o salão circular era repleto de estátuas de mármore que representavam alguns dos grandes líderes e fundadores da escola, colunas de heliodoro, divãs clássicos próximos a uma mesa de centro de morganita. Do teto pendia-se um lustre clássico e das paredes velas, curiosamente todas estavam acesas mas não aparentavam estar velhas e usadas, com a cera escorrendo pelos suportes de ouro.
Ao redor do salão havia cinco portas, quatro de madeira e uma de um material fino e caro que brilhava em dourado. Ela cintilava com o balançar das velas e me causou o mesmo arrepio de antes, estava um pouco distante, apertei os olhos tentando enxergar melhor. Tudo parecia novo e antigo ao mesmo tempo
Lembrei-me de repente do que estava fazendo aqui em cima, procurei pelo gato silenciosamente.
- Onde você foi? - Sussurrei.
Um miado ecoou.
Ele estava em frente a uma das portas, esta possuía um batente delicado, com romãs nas extremidades ao lado de cervos e gazelas, animais que representavam delicadeza e agilidade.
Na madeira estava entalhado as seguintes palavras:
"Sala dos quadros"
A maçaneta tinha um formato de um leão feroz, entre os dentes ele carregava uma serpente agoniada pela dor.
Meus dedos formigaram pela tentação, provavelmente a porta estava trancada.
Eu empurrei e dei sorte, pelo visto os céus estavam abertos para mim hoje.
A porta era mais pesada do que imaginei, precisei fazer um pouco mais de força e fiquei surpresa por ela não ranger.
Senti como se tivesse voltado no tempo, para uma época muito mais antiga que eu, onde eu nem pensava em existir. No centro da sala havia a Árvore do bem e do mal, ou melhor dizendo, uma representação dela. A argila branca moldava um tronco robusto, uma copa grande com folhas detalhadas e frutos, que se fossem reais seriam saborosos.
Ela era apenas uma parte dessa sala, ao seu redor haviam pinturas imensas, tanto de largura para alcançar os confins do jardim quanto em altura para alcançar os céus, suas molduras eram de ouro velho e o chão era tão limpo que me fez ter pena de pisar.
O ar parecia não caber em meus pulmões, senti-me extasiada com a beleza imaculada do lugar, eu estava em um pequeno museu do mundo.
As obras eram conhecidas, lembro-me de ter visto elas nos livros da biblioteca. Sempre desejei vê-las dessa distância. Alguns pertenciam ao período barroco, aquele que se contrapõe ao renascentista. Eles buscavam obras com cunho religioso, tentando atrair o povo novamente para seus templos, decorando-os com todos os jeitos possíveis.
Os professores não nos ensinaram muito sobre a Terra, apenas aquilo que envolvia nossa história, sabe como é, para evitar que os alunos se interessassem e seguissem pelo mesmo caminho que nossos antepassados.
Busque conhecimento, mas não conhecimento demais.
Meus olhos caminharam entre os corpos seminus nas telas. Homens e mulheres amontoados entre si, dispersos por toda a imensidão azul, que se assemelhava aos céus, usufruindo de sua liberdade e poder divino. Por outro lado, vejo em outras pinturas retratos de situações de terror, confusão e tragédia. Suas faces estão voltadas para o alto, entre lágrimas de desespero e rogo por misericórdia.
Eu segui na direção que suas lágrimas apontavam.
No teto havia uma representação do céu com cor vermelho sangue.
O quadro relatava uma guerra. O acúmulo de lanças, escudos e espadas fez com que por um momento eu pensasse que o quadro estava vivo, juro por Deus que conseguia ouvir o grito de milhões de pessoas clamando por socorro. Seus rostos em formato de pavor, seus olhos tão expressivos.
Poderiam me encarar de volta a qualquer momento.
Meu olhar fixou-se em um dragão com escamas carmim que triunfante e poderoso rugia entre os corpos e banhos de sangue.
Meu coração estava disparado, meus ombros ficaram pesados e meu pescoço estava em chamas.
Olhei para trás, não encontrando ninguém, eu ainda estava sozinha.
Passei a mão em minha nuca, massageando um pouco. Puxei o ar tentando organizar a mente
- Não entendo, é lindo claro, mas por que me trouxe até aqui? - Esfreguei os dedos na têmpora.
O gato miou em minha direção, ele escalou as minhas pernas e subiu em meus ombros apontando com as patas para o fundo da sala.
Eu obedeci.
Não acredito que estou confiando meus passos a um gato.
À minha direita havia a criação de Adão, a pintura estendia-se por toda a parede, as cores clássicas pintavam os corpos do primeiro homem e do criador, suas mãos estavam afastadas por centímetros, por pouco não encostaram os dedos.
O gato miou mais uma vez.
Meus pés interromperam.
Existiam três quadros pendurados, suas molduras eram compostas por querubins e anjos. A pintura do meio apresentava um cordeiro sentado em um trono, ele possuía sete olhos e sete chifres, de seu pescoço escorria um rio de sangue que inundava todo o chão.
O artista havia nomeado a pintura como "revelação de João"
A pintura que estava à direita representava Adão em sua forma mais real e autêntica. Sua pele era retinta, os traços eram fortes assim como suas sobrancelhas, seus cabelos eram curtos e crespos. Suas palmas estavam viradas para os céus.
Abaixo lia-se "Adão, o patriarca"
Já a arte que ficava à esquerda partiu meu coração em pedaços, não apenas por ser bonita ou por possuir uma bela paleta de cor, mas por que era ela, a rebelde, pecadora, orgulhosa e sedutora.
Eva.
Sua pele era escura, os olhos eram caídos, a boca carnuda e o nariz era largo. Ela tinha um cabelo afro enorme que ultrapassava os limites da tela. Na mão direita ela segurava o fruto proibido, a mão esquerda estava erguida assim como a de Adão, mas havia uma serpente enrolada em seu braço que parecia sussurrar em seus ouvidos.
Eva, Matriarca.
Peguei-me pensando o motivo pelo qual os alunos não tinham acesso ao acervo de artes plásticas, elas não eram apenas pinceladas, mas histórias ilustradas.
Eu apoiei as mãos nos quadris, ainda sem entender ao certo o que o gato queria que eu visse.
Ele esticou os seus bracinhos peludos quase ficando de pé em meus ombros, eu me aproximei mais da pintura
- Não há nada aí, não estou entendendo o que você quer que eu...
Ele empurrou o quadro, algumas letras estavam desenhadas.
- O que? - Perguntei atônita.
Segurei o quadro e empurrei do mesmo jeito que ele havia feito, havia um pequeno poema em latim.
Rosae, rosae pro matriarcha
Vita et mors occursum
Mundi ultra hortum
As aulas de latim foram banidas da grade curricular a anos, nem mesmo os mais velhos sabiam sobre elas.
Olhei novamente para o quadro.
Rosae.
Acho que sou inteligente o suficiente para entender que rosae é rosas em latim, e haviam rosas na pintura. Elas estavam praticamente escondidas como se fossem uma mensagem subliminar, estavam localizadas próximas aos quadris da matriarca.
Reencontrar Eva.
Não havia notado isso antes
- O que significa? - Virei as costas para os quadros e encarei a escultura da árvore novamente.
Investiguei silenciosamente o que esses artistas estavam escondendo, melhor, o que a escola estava escondendo.
Eu não entendia o que aquela mensagem queria dizer, mas as peças começaram a se encaixar. Debaixo das raízes da árvore haviam rosas que lutavam para sair debaixo da terra.
Reencontrar a Eva.
- A minha avó não falava sobre autoestima, não é? - Pergunto retoricamente.
O gato desceu do meu ombro e desapareceu entre as pilastras que seguravam o teto e toda sua estrutura.
Meu corpo ficou tenso e eu procurei por todos os lados um local ao qual eu pudesse me esconder.
Havia mais alguém aqui em cima.
O chão polido fazia os passos do desconhecido batucar e ser ouvido por todo andar.
Eu corri e me escorei atrás de uma coluna de estilo grego. Meu peito vibrava em ansiedade e medo, apertei os nódulos das mãos
- Ah, que desastre - Disse a voz familiar.
Patrícia.
Cacete, esqueci de fechar a porta.
Ela não podia me ver.
Inclinei a cabeça levemente para fora do meu esconderijo mal feito apenas para identificar sua posição. Ela estava parada em frente a uma das portas do salão, a única que era diferente e muito maior que as outras, com entalhes e desenhos que assemelha-se a asas de querubins. Ela era estreita, alta e com um batente grosso tingido de vermelho. Agora a uma distância um pouco menor que antes consigo analisar com cuidado.
A porta do lugar Sancto.
O lugar proibido.
Certamente era ali que os anjos apareciam, davam mensagem e alertavam sobre como as coisas na escola deveriam funcionar. Apenas alguns tinham acesso.
Patrícia fechou os olhos e o silêncio instalou-se no lugar.
Eu analisei sua posição, ela parecia agitada tentando concentrar-se em sua prece. A cabeça que vivia erguida estava inclinada ao chão e ela esperava que algo acontecesse, eu podia sentir.
Franzi as sobrancelhas e voltei para trás da pilastra, acalmando meu coração. Não importava o que ela estava fazendo, eu precisava sair dali urgentemente, tentei lembrar com detalhes como era aquele salão.
Haviam muitas estátuas expostas pelo lugar e alguns móveis, nada além disso, seria apenas um abrigo temporário.
Novamente olhei para o lugar e tentei calcular a distância de onde eu estava até o corredor ao qual eu vim, o único que levava de volta para a escola. Não era tão longe, precisava ser ágil.
Respirei fundo.
Eu sabia correr sem fazer barulho, devia agradecer ao ballet por isso.
Em um ato de coragem eu saí de trás da pilastra, deixando meu corpo totalmente à mostra. Desloquei-me silenciosamente para fora da sala dos quadros, tendo a visão completa de Patrícia ainda concentrada em sua oração, nem sequer prestando atenção ao mundo à sua volta.
Cautelosamente pisei evitando que o gesso das minhas sapatilhas fizesse um tremendo estrondo nesta noite gelada.
Eu cheguei até o pedestal de Pietá.
A estátua era grande e detalhista, o véu parecia real e leve assim como o sofrimento de Maria enquanto segurava seu filho. Pedi licença internamente para ambos pois precisava de um esconderijo temporário e me agachei.
Estava funcionando.
Fiquei imóvel e atentei meus ouvidos.
Estava calmo e de longe ouvia-se os pequenos murmúrios da orientadora, suas palavras soavam emboladas para mim.
Puxei o ar e continuei a missão, em movimentos ágeis eu desloquei-me pelo salão cruzando as estátuas, os quadros e velas até enfim chegar ao divã. Joguei meu corpo no chão, escondendo-me atrás do encosto.
Faltava muito pouco, o arco que separava os ambientes estava logo ali na frente, com um corredor escuro e uma longa escada que me levaria ao dormitório.
Ergui meu corpo do chão preparada para prosseguir, mas meu tornozelo virou, eu me desequilibrei e esbarrei no sofá. Os pés em atrito com o chão liberaram um ruído agudo.
Arregalei os olhos e me joguei novamente no chão.
Meu peito subia e descia enquanto era esmagado pelo meu corpo. Olhei debaixo do sofá, ela ainda estava no mesmo lugar, não havia movido nem mesmo um músculo.
Era agora ou nunca.
Eu empurrei o chão e corri, colocando cada membro em seu lugar enquanto voava até o corredor.
Olhei para trás vitoriosa, tinha dado certo.
Isso antes de eu tropeçar.
Infelizmente, eu me esqueci do pequeno degrau que separava os ambientes e tropecei. Tentei me agarrar a qualquer coisa, meu braço raspou nos ornamentos de gesso que decoravam as paredes, arrancando-me um arquejo.
- Quem está aí?
Merda
Em disparada eu segui pelo corredor o mais rápido que consegui, coloquei toda a força nas minhas pernas e me impulsionei para frente. Não havia nem mesmo chegado as escadas e já torcia para que Camile ainda estivesse acordada ou tenha deixado a porta aberta
Um urro de dor irrompeu a minha fuga.
Olhei para trás e na hora exata testemunhei o gato pulando em cima de Patrícia, agarrando-se em seus cabelos loiros e arrancando com as garras um pedaço de seu rosto....
Eu entrei no quarto e bati a porta.
Precisava colocar a minha cabeça em ordem, mas antes eu tentei regular a minha respiração que arrancava o ar de meus pulmões devido a fuga.
Camile saltou da cama com uma máscara de pepino no rosto.
- Credo, que susto! - Ela arregalou os olhos - Meu Deus, Eva você está bem? Você está cheia de sangue.
Estava mesmo, meu braço não estava ardendo, estava doendo. Meu collant estava manchado, assim como a minha saia, eu pude então sentir minhas coxas queimando, meus pés doendo e meu braço latejando.
- Eva, o que aconteceu, deixa eu te ajudar - Ela levantou preocupada quase deixando a gororoba escorrer de seu rosto.
- Agora não Camile! - Cuspi e ela recuou arregalando os olhos.
Eu odiava gritar com Camile, ela só estava tentando me ajudar mas a minha cabeça estava um turbilhão de coisas.
Era simplesmente muita informação para o meu cérebro, em menos de algumas horas eu tinha visto um gato, ele me guiou até o andar de cima e me mostrou segredos antigos que a escola carregava assim como suas passagens secretas e fantasmas. Descobri que a escola tinha um acervo de obras humanas, originais com toda certeza.
Onde eles conseguiram, como conseguiram e o que era aquela pintura vermelha, as rosas...
Patrícia estava tentando entrar no lugar santo, mas não havia nada de sobrenatural, nem uma chama, um terremoto ou aquelas coisas que eram descritas nos textos. Tudo estava quieto demais, havia algo...
- Eva? - Camile falou um pouco mais baixo e aproximou-se de mim.
Eu ignorei, não queria falar, não tinha energia.
O quarto era iluminado apenas pelo abajur de sua cabeceira, o cheiro de velas perfumadas cobria aquele quarto aconchegante. Camile vestia seu pijama favorito que devido ao tempo estava manchado e um pouco rasgado. Aquele pijama era dela desde a infância, afinal ela não havia mudado tanto nesses anos todos.
- Fuga rotineira - Olhei para o chão e menti - Estou bem.
Sentei-me na cama e ela pegou no fundo do armário o kit de primeiros socorros tão usado por mim, pelas minhas besteiras e vontades.
Não queria ser um peso, mas antes que eu percebesse, ela já cuidava do meu machucado.
- Esse corte foi profundo - Ela falou baixinho.
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𝐆𝐚𝐫𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 É𝐝𝐞𝐧 - Saga Moëbius
FantasyGarotas do Éden é uma ficção distópica ambientada em uma realidade em que adolescentes estudam em um colégio interno para tornarem-se pessoas perfeitas. Porém, as coisas começam a dar errado quando Eva descobre um novo mundo em que as pessoas podem...