A Gueixa

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1951

Sentir pela primeira vez que o corpo me responderia depois de dias vagos, aonde eu sequer assimilava o que era o tempo e espaço, fez parte de mim entender que de certa forma eu estava vivo, mas outra parte negava esta hipótese e, mais do que negar, ela me fazia sentir medo do que significaria não estar vivo àquela altura. Os fatos estavam no acidente que eu me recordava como episódios de uma noite de bebedeira, na dor, a luz e o sangue no chão debaixo de mim e no rosto pálido da japonesa vestida de gueixa que me assombrava, junto das sensações incompreensíveis que me invadiram em algum momento antes do despertar dolorido, e o instante que me vi sentado em uma esteira de bambu junto à um chão impecavelmente limpo que cheirava à lavanda e ferrugem.

A luz amarelada de algumas velas redondas que enfeitavam o canto do quarto eram a única pista de que alguém estivera ali nas últimas horas além de mim, isso e uma música suave que vinha de algum lugar abaixo me dando a completa certeza de que estava em uma casa de pelo menos dois pisos. Um arrepio tomou conta do meu corpo acompanhado de uma dor na garganta que se apertava como um nó e me embrulhava o estômago.

Me levantei e percebi que meu centro gravitacional estava confuso, não que eu soubesse o que isso queria dizer, mas meu equilíbrio não era o mesmo e precisei me apoiar em alguma coisa firme antes que caísse como uma maçã madura no chão, olhei ao redor e tudo o que poderia me amparar era uma velha cômoda de cerejeira muito parecida com a que guardava minhas roupas no quarto que brevemente dividi com minha irmã em certa época de minha infância. A memória veio como uma ilustração e eu me perdi nos pensamentos sobre ela, consequentemente revelando a saudade que repentinamente me tomou antes de cair debruçado sob a madeira descascada. O cheiro de móvel antigo, lavanda, ferrugem e rosas inundou minha mente como um reforço poderoso daquele saudosismo repentino, e eu senti duas lágrimas escorrerem espontâneas nas minhas bochechas, fechei os olhos. Entretanto, também senti odor de sangue, e este me despertou quando notei o quão perto estava do meu nariz, usando as mãos com urgência em meu rosto para me deparar com a mancha grudenta que pintou minhas mãos, me assustei e procurei debilmente por um espelho nas gavetas encontrando um de mão na primeira delas, que me deu a visão de meu rosto pálido e tingido de escarlate como uma maquiagem teatral.

Minhas lágrimas... As gotas quentes que escorreram nas minhas bochechas eram sangue puro, vermelho vivo e pulsante que me fez temer ainda mais a situação em que me encontrava, mas não um medo do que viria a acontecer comigo, mas o que acontecera antes para que eu estivesse assim. Me lembrei da gueixa naquele instante como se visse uma fotografia e a resposta que me vinha a cabeça parecia tola, mas tinha algum sentido prático. Ela não era um delírio meu, afinal, eu estava em um cenário bastante oriental e correspondente à existência da mulher japonesa que vivia em minha memória recente, uma memória que freneticamente gritava ao meu subconsciente que eu havia sido raptado, ainda que essa ideia fosse esdrúxula. Quem diabos raptaria alguém como eu? Ou quem se daria ao trabalho de salvar?

A veemência dos sentimentos que me arrebataram naquele despertar perturbador pós acidente, e talvez até, pós rapto ou resgate; não fazia muito sentido e ofuscava minha habilidade de raciocínio o suficiente para eu sequer perceber os passos que vinham do piso inferior em minha direção. Eu ainda processava as lágrimas sangrentas, pensando se tudo aquilo seriam sequelas graves do acidente e aonde estariam os outros sinais do ocorrido.

Tentei responder aquelas questões procurando feridas ou ossos quebrados em mim mesmo com ajuda do espelho, quando então percebi que estava sendo observado e antes de me virar para ela, a protagonista daquele sonho (ou lembrança), pude ouvir sua voz firme pela primeira vez.

— Eu já restaurei o seu corpo.

A voz me impactou, mas no momento que pude me virar e olhar para ela, estagnei. Se tratava de uma mulher estonteante e certamente minhas memórias não faziam honra ao tamanho de sua beleza. Parado ainda próximo a cômoda, observei em silêncio a figura delicada e forte que me encarava serena com suas mãos à frente do corpo como quem aguarda. Seus olhos eram pequenos e muito escuros, a boca tão delicada quanto as bochechas firmes e o rosto de feições arredondadas e joviais, que apesar de tal jovialidade, a pele amarela pálida destacada em um vibrante batom vermelho me fazia questionar sua saúde. O cabelo estava preso em tranças bem feitas e enroladas em um coque, embora fosse tão preto quanto seus orbes oculares, possuía uma uniformidade sem brilho como se não fosse de verdade. O corpo da minha gueixa era uma obra de arte a parte com cerca de 1,53 de altura e curvas definidas, diferente da maioria dos orientais que eu avistei até aquela época, ela tinha seios pequenos e uma cintura marcada que abria para um majestoso quadril e pernas torneadas a mostra em um vestido pouco abaixo dos seus joelhos. O vestido bastante modesto, liso com uma gola alta e redonda, parecia feito à mão a partir de um saco de batatas qualquer e mesmo assim estava exuberante em seu corpo. Me lembro que naquela época pensei em se tratar de uma camisola, e minha mente fez seu trabalho, pervertendo sua aparição como algo sensual demais para reagir normalmente.

Ela me encarava sem expressão e eu sem fôlego, me apoiando na cômoda, continuei meu silencio contemplativo sem saber o que eu deveria fazer com as poucas informações que tinha, afinal, o que ela poderia querer dizer com "restaurei seu corpo"? Nenhuma medicina ancestral que ela dominasse poderia me salvar completamente dos estragos de um acidente de carro como aquele. Ou poderia?

— O que quer dizer? — Perguntei atordoado depois de longos minutos de silêncio entre nós.

Ela fez um gesto rápido com a cabeça para que eu a seguisse e sumiu porta a fora. Eu pensei que não conseguiria sair do lugar, mas ao tentar eu me senti mais estável e apressei os passos para alcançá-la no pequeno corredor antes do hall de escada de madeira avermelhada, por onde ela continuou sem olhar para trás. Descemos devagar, degrau por degrau, e à medida que eu descia a dor incomoda na minha garganta piorava causando-me um desconforto que refletia no estômago.

Essa parte específica e o motivo que explica o porquê eu estava seguindo aquela mulher, apesar de todas as evidências de perigo naquela situação são pedaços da história que mil páginas não descreveriam suficientemente a complexidade, profundidade e poder. Ainda ouso dizer que nenhuma doença humana passa perto dos horrores que eu estava começando a viver naquela casa, e nem mesmo meus anos de glória ao lado de Adam equipara-se as emoções deleites que desfrutei ali, apesar disso.

No último degrau, antes de chegarmos à uma sala do primeiro piso, as sensações de fraqueza e dor voltaram como um soco e eu me lembro perfeitamente de cair de joelhos encarando minhas mãos que eram a única coisa entre minha cabeça e o chão. Por um momento não pensei na minha anfitriã e por isso não notei na velocidade em que ela se ausentou, só percebi seus pés diante de mim quando instantaneamente reapareceu.

— Beba. — Ela ordenou.

Eu não olhei para cima, talvez seja impossível que imaginem o quão lamentável era o meu estado, mas de fato seria como engolir areia no deserto e não beber ou comer por semanas. Quando aquele imperativo caiu em meus ouvidos eu tive finalmente a compreensão de que tudo o que senti até então desde que eu acordei naquela esteira era sobre sede.

A mão que lentamente se ergueu para segurar o estranho copo que ela me oferecia, quase falhou na missão de levar o conteúdo aos meus lábios, pois a simples força exercida ao sustentar o peso do copo me era suficiente para sentir o que parecia dias de trabalho braçal. Não estava apto a questionar o que me era oferecido, apenas bebi, ciente somente do sabor férreo que trazia a memória cheiro de sangue fresco, no entanto, o prazer que me invadiu logo no primeiro gole afastava qualquer dúvida que porventura se elaborasse dentro da minha cabeça. A sensação de dor e fraqueza extrema foram substituídas por um formigamento de puro êxtase, um êxtase tão intenso que, após secar o conteúdo do copo metalizado, precisei deitar-me no chão.

Do momento que me deitei até o momento que acordei novamente na esteira do quarto, nenhuma lembrança me vinha à mente, como se eu tivesse adormecido profundamente. "Teria sido tudo um sonho?" eu pensava, mas logo descartava a hipótese porque sabia que não tinha criatividade o bastante para emular aquelas sensações.

Dessa vez eu estava mais consciente, mais vivo, mais entregue a um tipo de adrenalina que eu não compreendia, mas que me impulsionou a levantar certo do meu desejo de buscar respostas com a adorável gueixa que sempre acompanhava os momentos que eu jamais poderia explicar, certo de que ela não me faria mal, afinal já o teria feito se quisesse.

Corri pelo caminho que percorri com ela antes, parando na mesma sala. Não havia mais música ou sinal de vida, velas delicadas iluminavam o lugar e o cheiro de lavanda estava mais forte do que antes. Esses eram os últimos fragmentos da presença dela, e eu como um bom "ex-brasileiro", caminhei por todo o cômodo atras de pistas sobre quem era a minha raptora em potencial, sem pensar em nada dos estranhos eventos anteriores.

Sem fotos, decorações, ou qualquer coisa comum de casas familiares; apenas móveis limpos, paredes lisas e armários vazios. Então a partir daí eu comecei a me preocupar e defini que o mais inteligente a fazer era partir dali e esquecer tudo, priorizando o fator "segunda chance" que eu recebi com a ausência dela, sem contestar minha integridade física pós acidente (não levando em conta que era uma tentativa de suicídio) ou o elixir mágico que sumiu com minha sede e mal estar enlouquecedores. Entretanto, aprenderão no decorrer deste livro que eu não faço escolhas inteligentes, nunca! Na verdade, o que fiz foi olhar pela janela a escuridão da noite e respirar fundo antes de me sentar confortavelmente no sofá e escolher esperar.

Passaram-se horas, e ao contrário do que faria jus à minha natureza, eu não me levantei sequer uma vez. Não houve nenhuma necessidade fisiológica para atender, nem cansaço ou noção plena do tempo. Na realidade eu me sentia anestesiado, mas não tinha exatamente essa percepção na época.

O Caos de JoshuaOnde histórias criam vida. Descubra agora