Capítulo IV: Playboyzinho

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Incrível como uma mudança de ares faz bem. Só foi eu sair do Brasil que tudo começou a mudar drasticamente em minha vida. Desde muito novo eu tinha o sonho de estudar fora do país, mas como um garoto pobre, morador de favela conseguiria fazer isso? Estudando, e muito. Terminei o ensino fundamental numa escola privada e fiz o ensino médio numa escola pública, pois meu pai cismou que eu passaria no Enem assim, sendo que desde o início eu deixei claro que o Enem não era um sonho meu e sim dele. Eu estudaria fora do país, eu dizia e repetia aquilo todos os dias para que a ideia entrasse não só na cabeça deles, mas que se tornasse real também. No início minha mãe não botou muita fé, mas depois que ela viu que eu estava me dedicando as coisas começaram a piorar para o meu lado. Dona Caetana era super protetora demais, jamais deixaria seu único filho sair de baixo de suas asas sem travar uma batalha homérica antes.

- Por que você não fica aqui e faz teologia, igual ao seu primo? - Desde quando eu comuniquei aos meus pais a minha decisão de estudar fora, minha mãe tem repetido essa sentença como se fosse um mantra. Até parecia que se ela ficasse repetindo aquilo inúmeras vezes uma hora eu iria concordar com ela, hilário.

- Mãe, eu nem quero fazer teologia, você sabe muito bem que eu quero fazer música. - Música era o meu sonho. Sempre gostei de cantar e fazia parte do ministério de louvor da igreja, até que me tornei o líder. Hoje eu posto vídeos cantando vários hinos nas redes sociais e tenho até um número considerável de seguidores. Porém ainda faltava algo, faltava técnica e conhecimentos teóricos que eu pretendia aprender num curso superior e de preferência fora do país. Essa experiência iria agregar muito não só para mim, mas para a minha comunidade também.

- E vai viver de que, meu filho? - Revirei os olhos e larguei os talheres.

- De música? - Respondi a pergunta com um tom irônico e um tanto ácido. Recebi um olhar severo do meu pai e dei de ombros quase implorando para que ele a fizesse parar com toda aquela pressão.

- Davi, você não vai falar nada? Coloca juízo na cabeça do seu filho.

- Deixa o menino, Caetana. Ele é um sonhador. - O meu pai era extremamente rígido quanto a questão de comportamento, mas ele sempre me apoiava em tudo que eu tinha vontade de fazer, mais até mesmo do que minha mãe. - Deixa ele fazer a faculdade dele, sair do país, viver novas experiências. Depois ele volta, ajuda a gente na igreja. Se bobear consegue uma carreira como cantor gospel e tira a gente da favela. - Dei um meio sorriso agradecendo ao meu pai pelo apoio. O Seu Davi era o cara mais gentil e gente boa que eu já vi em toda minha vida e era incrível a capacidade dele de parecer sempre sereno em meio a momentos de tempestade.

- E música gospel nesse país da dinheiro? Aqui só querem saber de depravação e prostituição. Aqui é só Anitta que faz sucesso, meu filho. - Minha mãe era dessas religiosas que achava que se o conhecimento fosse buscado fora da igreja, ele não era bom. Talvez por isso toda essa relutância com o meu curso em outro país, afinal, que mãe não ficaria feliz com um filho estudando no exterior? Aparentemente a minha. - Faz teologia, vira um pastor igual ao seu pai, continua o legado dele.

- Eu prefiro construir o meu, mãe. - Falei um pouco cansado de explicar sempre o meu ponto de vista e ser completamente ignorado. Eu sempre dizia que estava cansado de ser o filho do pastor. Na comunidade, na escola, nas congregações... Ninguém me via como o Miguel líder do ministério de louvor e de jovens, eu era sempre o filho do pastor Davi. Estava na hora de eu trilhar o meu próprio caminho. - Quero aprender música fora do país, voltar e ensinar pros jovens da comunidade no ministério de louvor. Essa é minha missão, eu sinto Deus falando comigo todas as noites.

- Viu Caetana, Deus tem um chamado pro menino! Ele já é campeão. - Meu pai apertou meu ombro em apoio e eu sorri. Eu acreditava tanto naquilo e meu pai me apoiava tanto que não conseguia me imaginar fazendo outra coisa. E como palavras têm poder, logo eu estava com a minha carta de aceite para estudar em uma universidade nos Estados Unidos.

[...]

Minha época no exterior foi de descobertas. Ter independência faz você sentir tanta liberdade que fica difícil voltar para um ambiente controlado como minha casa. Durante as férias eu senti esse impacto, pois a cada retorno eu me sentia mais e mais preso pela minha mãe. Dona Caetana agia como se eu não fosse voltar mais a cada voo. Confesso que cogitei fazer isso, porém não tinha coragem de fazer isso com meus pais. Até porque, por mais que ela sentisse aperto no peito em me ver partir todas as vezes, ela também notava o quanto aquele afastamento estava me fazendo bem. Eu aprendi a cozinhar, aprendi a ter maturidade emocional, aprendi idiomas novos, fiz novos amigos, descobri um pouco mais sobre minha sexualidade e, o mais importante, aprendi tudo o que eu queria sobre música, minha maior paixão. Eu era um homem completamente novo e conseguia falar de Deus com brilho nos olhos, sem me sentir culpado por ser gay. Quando o momento do último vôo chegou, eu já me sentia mais do que preparado.

- Então é isso, galera. Estou voltando definitivamente para o Brasil em breve e se Deus quiser eu lanço meu álbum novo ainda esse ano. - Disse na gravação dos stories para o meu Instagram. Eu tinha ganhado ainda mais seguidores depois que compartilhei minhas experiências no exterior. Isso ajudou a ter mais visibilidade na rede e algumas parcerias surgiram, tornando minha rede social uma forma de conseguir dinheiro.

Tudo estava indo bem, porém eu tinha medo de voltar. A começar por Filipe. Ele era extremamente low profile então eu não sabia o que ele estava fazendo da vida. Tinha medo de voltar e encontrá-lo no crime ou na pior das hipóteses, sequer encontrá-lo vivo. Meu outro receio era Gabriel. Esse daí estava mais do que ativo nas redes sociais, inclusive tinha até ganhado mais seguidores. Gabriel tinha duzentos mil seguidores em suas redes, ainda estava a frente do ministério dos jovens, mas agora era também presbítero, ficando a frente da igreja na ausência do meu pai. Talvez isso fosse dificultar o meu retorno, ou não, talvez com os anos Gabriel tenha amadurecido e mudado, assim como eu. Pelo menos assim espero.

Ajeitei as coisas para o meu retorno, me preparei física e psicologicamente. Me despedi dos meus amigos, prometendo voltar em breve e comprei lembranças para todas as pessoas queridas que me esperavam no Brasil. Durante o trajeto fui filmando tudo e fazendo vários stories. Eu estava assim ultimamente, mais conectado do que nunca e isso me ajudava a não me sentir muito solitário.

Ao chegar no Brasil, algumas pessoas me reconheceram no aeroporto do Galeão e eu sorri as abraçando e tirando fotos. Minha mãe viera me buscar e eu sorri abraçando-a. Dona Caetana me apertou tão forte que eu pensei que meus ossos fossem ser esmagados por ela. Retribuí o gesto e beijei a testa dela quando nos afastamos. Sei que foi difícil para ela ficar todo esse tempo distante de mim, mas foi necessário. Infelizmente às vezes a gente precisa se afastar das coisas para aprender a dar valor, ou ao menos olhar com outros olhos.

- Te amo, mãe. - Disse acariciando o rosto dela, limpando as lágrimas. Ela sorriu e me abraçou novamente. Minha mãe estava tão magrinha, tão apagadinha. Seu cabelo não tinha o mesmo tom de loiro que o meu mais, estava desbotado e sem brilho. Seus olhos azuis também não eram mais como os meus, perderam o tom cintilante. Estava acontecendo alguma coisa, porém eu teria tempo para descobrir.

Cheguei na favela e a recepção foi calorosa como sempre. Saí do carro sendo recebido como um político no meio da multidão. Abracei os moradores mais próximos, mexi com as crianças e, lá no fundo daquele mar de gente eu vi Filipe sem camisa em cima de uma moto. Ele me encarava de cara fechada e braços cruzados. Seu corpo estava tatuado, ele trajava apenas uma bermuda preta, um cordão prata e o chinelo havaianas branco e me olhava com desdém, com certeza julgando minha vestimenta como sempre. Dei um sorriso para ele, porém Filipe colocou o capacete e acelerou, sumindo do meu campo de visão. Passei pelas pessoas e finalmente entrei em casa. Estava de volta, como era bom estar em casa. Os cães vieram até mim, me lambendo e pulando. Pela primeira vez me permiti chorar.

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