Capítulo III: Adeus

751 51 0
                                    

Depois daquele culto esquisito eu fiquei um tempo sem falar com o Miguel, abandonei a escola e só o via a distância quando ele passava pelo bairro. Aquele tal de Gabriel ficou me mandando mensagem perguntando quando eu iria aparecer novamente na igreja, mas eu o ignorei completamente. Não estava com cabeça pra enfrentar tudo aquilo, além do mais, eu estava vacilando muito com o meu trabalho e já estava começando a ser cobrado por isso. Eu ainda não podia ser batizado no crime, pois não havia completado maioridade, porém eu já tinha minhas responsabilidades como membro da facção. Ser da família era algo que custava muito caro, e cedo eu já conseguia entender.

- Filipe, tu tá vacilando pra caralho. Pô, tu é filho do dono, tu não pode dar mole. - VH falava comigo de forma ríspida. Eu estava de braços cruzados observando o meu primo. Ele estava contando o dinheiro da lojinha dele no morro. O meu pai era dono do maior esquema de tráfico do Estado do Rio e o Victor Hugo era o responsável pela lojinha mais rentável dele que era a do nosso morro. O morro da Babilônia aqui no Leme têm ganhado destaque e até os manos do Chapéu Mangueira abaixam a cabeça para nós. Estávamos voando alto, mas no momento eu não conseguia pensar em nada além do Miguel...

Aquele veado filho da puta mexeu com a minha cabeça. Eu era um cara totalmente diferente até ele me chantagear e me fazer ficar com ele várias vezes. A última vez ele queria que eu o comesse, mas eu não quis, não estava preparado para aquilo e muito menos ele. Miguel era um garoto legal, mas... Droga! Às vezes eu me pegava lembrando das aulas de etiqueta e de reforço que ele me dava. Minha mãe queria que eu voltasse a estudar, mas isso não era mais uma opção para mim. Eu estava no tráfico ganhando o meu dinheiro. Minha mãe recusava o dinheiro dizendo ser sujo, mas o meu único contato com o Miguel era para passar uma grana para ele entregar minha mãe dizendo ser dele, tudo para ela não passar necessidade em casa.

Em um desses encontros ele encostou na quebrada com aquela carinha de playboy dele. Incrível como apesar de ter nascido e crescido no morro ele parecia cada vez mais aqueles moleques do asfalto. Ele se aproximou de mim um pouco acanhado e eu o chamei para os fundos. Os moleques mais novos não entendiam os meus privilégios, porém mesmo sendo cobrado como eles eu ainda era o filho do dono daquilo tudo, então eu podia ter acesso a lugares que eles não poderiam e isso os irritava um pouco. Todos eles ficavam com olhos de águia em cima do Miguel toda vez que ele chegava, mas eu fechava a cara e os encarava como um pitbull raivoso. Logo, logo eles dispersavam iguais pombos e eu entrava junto com o filho do pastor que ficava sempre assustado com os fuzis e pistolas a mostra. Fomos para trás da lojinha do VH onde só ele e eu tínhamos acesso e eu peguei um montante de dinheiro colocando na mão do loiro que pegava o pacote com cuidado, como se fosse um objeto de uma cena de crime.

- Deposita pra minha mãe, o mesmo esquema de sempre. - Não sabia ao certo quanto tinha ali, mas era metade do que eu já conseguia ter juntado até aquele período. Eu não era de ficar ostentando e gastando com luxo igual esses moleques vislumbrados do morro, então a maioria do dinheiro eu dava para minha mãe. O que sobrava eu guardava para alguma emergência ou coisa do tipo, mas era sempre a menor parte, a maior parte era dela.

- Ela tá muito chateada, sabia? Ela está ficando até doente, Filipe. - Miguel pegou o dinheiro e colocou num envelope pardo. Eu não queria saber detalhes, eu sabia que minha mãe estava mal, porém eu não queria me aprofundar, eu preferia ajudar a distância, sem ser julgado e condenado por ela.

- Paga o médico dela e leva ela lá pra saber o que tá rolando, porra. É pra isso que eu te dou a grana. - Falei um pouco irritado e o filho do pastor não entendeu legal. Ele jogou o papel pardo cheio de dinheiro em cima de mim e eu respirei fundo pra não perder a cabeça com ele. Miguel era o único que tinha coragem de fazer esse tipo de coisa comigo no morro, se fosse qualquer outro otário já estaria com as duas mãos quebradas.

- Você fala como se eu tivesse obrigação de fazer isso, o filho dela é você! - Ele estava aumentando o tom então eu me aproximei, colocando minha mão sobre os lábios dele, calando a boca dele de forma rude.

- Namoral, Miguel. Eu não vou ficar batendo boca contigo, meu irmão. Faz o que eu tô mandando e mete o pé logo. - O soltei, peguei o papel pardo e bati o envelope cheio de dinheiro no peito dele. O loirinho me olhou com cara de poucos amigos, mas segurou o envelope com raiva, amassando-o com um das mãos tamanha a força que depositava no ato.

- Eu vou embora, Filipe! Eu vou embora dessa favela, e aí quem é que vai ajudar sua mãe? - Aquela notícia me pegou de surpresa. Tentei demonstrar que não havia ficado impactado, mas acho que falhei. - Você tem que se responsabilizar, ajudar ela, ela te criou!

- Você vai pra onde? - Eu estava preocupado com minha mãe, no entanto, no momento eu só consigo me prender a notícia de que Miguel está indo embora. O encarei com um olhar triste e ele desviou o os olhos dos meus.

- Pro exterior, eu cansei de te falar que queria estudar fora do país. Eu estou com uma chance, não vou desperdiçar.

- Você volta? - Perguntei com um pouco de medo da resposta.

- Não sei... - Ao ouvir isso eu fui em direção a ele e o beijei. Miguel assustou-se, porém retribuiu o beijo lentamente, agarrando minha nuca. O beijei devagar, sentindo a textura dos lábios dele e aproveitando o momento, porém o beijo não deve ter durado mais do que alguns minutos, contudo a impressão que eu tinha era de que estávamos a horas ali trocando saliva. Nos afastamos um pouco acanhados e eu saí da sala antes dele. Peguei minha arma e caminhei pra fora, subindo na minha moto e indo lá pro topo do morro encontrar com VH. Iria conversar com ele sobre minha mãe e dizer que eu precisaria dar um tempo das atividades no morro.

Eu ainda não estava engolindo aquela parada de Miguel ir para tão longe, mas eu não era nada dele, não poderia impedi-lo de ir, até porque esse sempre foi o sonho dele. Ele estava terminando o ensino médio, provavelmente iria fazer faculdade em outro país. Música, ele queria fazer música, mesmo todo mundo sendo contra e somente o pai dele sendo a favor. Miguel tinha meu apoio, embora eu tivesse dito algumas vezes que ele morreria de fome se fizesse isso, mas era o sonho dele, não tinha jeito. E eu sabia que ele ia realizar, não deu outra.

[...]

No dia da viagem dele eu estava em casa e acompanhei pelos stories, pois não tinha coragem de estar pessoalmente com ele nesse momento. Ele postou tudo, desde arrumação da mala, o perrengue com o horário do voo e até o rolê do passaporte que ficou pronto em cima da hora. Ele estava indo para os Estados Unidos, ele iria estudar numa universidade com nome difícil, mas como prometido, faria música. Uma hora dessas a dona Caetana devia estar morrendo de raiva, mas não teve jeito, o filho da mãe finalmente conseguiu o que queria, como sempre.

- Podia ser você, né meu filho? - Minha mãe surgiu do nada soltando um comentário ácido ao perceber que eu estava vendo os stories do Miguel.

- Ah mãe, não começa! - Saí do perfil dele e bloqueei a tela do celular.

- Queria tanto que você estudasse, que fosse fazer algo fora daqui. Essa favela não tem futuro não. - Desde sempre essa comparação... Eu era totalmente diferente do Miguel, graças a Deus. Imagina que saco se todos fossem iguais? Mas para minha mãe todos tinham que ser idênticos, seguir os mesmos passos, ter as mesmas oportunidades. O filho do pastor já tinha o caminho dele trilhado por ele mesmo, ele só usou o que tinha em mãos, assim como eu também estou usando.

- Daqui de dentro da favela saem muitos talentos mãe, tem como vencer e continuar aqui. Não precisa sair daqui pra ser bem sucedido. - Tinham músicos, dançarinos, artistas e profissionais de várias áreas, só que minha mãe, assim como o povo do asfalto só sabia ver o lado ruim.

- Mas precisa sair do crime. - Suspirei como se tivesse desistindo e me ergui.

- Eu não vou discutir com a senhora. Tô metendo o pé.

- Vai pra onde, Filipe? Filipe! - Saí de casa e olhei para o céu imaginando que em breve Miguel estaria o cortando dentro de um avião rumo ao desconhecido. Eu desejava toda sorte do mundo pra ele e imaginei quando seria o meu momento de sair de tudo isso. Miguel conseguiu fugir do fardo de ser o filho do pastor e trilhou o próprio caminho. Eu conseguiria escapar do fato de ser o filho de um traficante? Conseguiria trilhar o meu próprio caminho apesar disso? Não sei, isso só o futuro irá dizer.

Amor Marginal (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora