Microscopia (conto de carnaval)

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O laboratório parecia a cada instante menor, mesmo que só houvesse nós dois ali e não a costumeira lotação, sete alunos de mestrado e seus respectivos surtos diários com a experimentação e duas bancadas de mármore nos separassem. Esse era um milagre que só o feriado de Carnaval fornecia. 

Enquanto observava Núbia rodar a placa de petri com tamanha destreza atrás da chama da lamparina, fazendo a semeadura do material no meio de cultura quimicamente conhecido, poderia facilmente dizer que meu amor por ela é maior que a quantidade de estrelas no céu. Mas seria impossível afirmar que é maior que a quantidade de microrganismos existentes, pois tanto eu quanto ela sabíamos que existem infindáveis seres microscópios no nosso mundo. 

Seus cabelos estavam escondidos por duas toucas descartáveis, uma para a extensão da cabeça e outra para a proeminência das tranças organizadas em formato de coque, o rosto parcialmente coberto pela máscara de proteção, além do jaleco e luvas. Não havia tanto o que ver nela que não estivesse coberto, apenas seus olhos: Duas esferas negras e profundas que me chamava para si, muito mais forte e eficaz que um ímã, capazes de fazer meu coração sacolejar no peito tal qual as bailarinas no agitador magnético. 

A essa altura do dia, na verdade, noite, a música alta dos trios elétricos na esquina invadiam o núcleo de pós-graduação da Universidade, e me faltava ar nos pulmões, a boca estava seca, as mãos tremendo durante a pipetagem, frente a frente com o amor da minha vida, porém não tinha coragem de dizer isso a ela. Também não podíamos conversar em cima do experimento com a placa de petri aberta e contaminar o material com bactérias provenientes da nossa microbiota oral. Todos os cuidados foram tomados para evitar, isso inclui não puxar assuntos paralelos que costumavam ser meu mecanismo preferido de defesa. 

Me senti totalmente desnudo e exposto, mesmo coberto da cabeça aos pés com EPI' s (equipamentos de proteção individual). Talvez, muito provavelmente, aliás, olhava como um bobo para Núbia, ou quem sabe ela não me via como um possível assediador que não parava de olhá-la. O medo do que poderia passar pela cabeça dela me assolava tanto quanto a ideia de ficarmos sozinhos no laboratório de microbiologia do campus. Droga! 

No entanto, não consegui parar de encarar a cientista e ainda restavam duas placas para depois irem para a estufa. 

Será que ela gosta de mim? 

Será que me acha um esquisito de óculos como todas as garotas no ensino médio?

Será que aceitaria sair comigo? 

Será que ela recusaria porque trabalhamos juntos ou porque ela só me vê como amigo?

Será….

Havia perguntas demais e possibilidades infindáveis para minha mente traçar projetos, planos que nunca iria cumprir, desejos que jamais realizaria se dependesse só de mim. Então, fiz algo tosco, estranho e sem pensar: liguei o notebook no canal de streaming, no qual transmitia o carnaval de rua em Salvador, alternando com o desfile dos bonecos de Olinda e as maiores capitais do Brasil em chamas com a folia, som alto, muitas cores, danças e fantasias. 

Apesar de ridículo da minha parte, foi o suficiente para me distrair por alguns minutos, pelo menos até visualizar um esboço de sorriso abaixo da máscara de Núbia. Que ótimo! Agora ela me acha um bobo da corte. O cara perfeito para fazê-la rir, mas não para ter um relacionamento. Será que esse era o último estágio da friendzone que meu irmão mais novo falou? 

Eu deveria dizer o que sinto, não é? Somos adultos, e cientistas, temos que pensar com objetividade. É simples, me declaro, ela me dá um fora e voltamos a programação normal, como duas pessoas normais que trabalharão juntas nesta pesquisa pelos próximos dois anos. 

Contos para se alegrar: Porque do Carnaval ninguém escapaOnde histórias criam vida. Descubra agora