O primeiro e último carnaval

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Durante toda sua adolescência Gilda foi criada para casar, ter filhos e viver uma vida cristã como a bíblia manda

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Durante toda sua adolescência Gilda foi criada para casar, ter filhos e viver uma vida cristã como a bíblia manda. Era proibida de ter amigos fora da igreja, namorar nem pensar, a menos que fosse para casar. Não podia curtir carnaval, festa junina jamais e em hipótese alguma deveria comer doces de São Cosme e São Damião.

Já adulta, mesmo com essa criação severa, Gilda se tornou uma mulher doce, adorável e sem preconceitos. Casou-se nova com um homem que a amava muito e anos depois tiveram uma linda filha, que foi chamada de Anna Clara. Aninha era a luz de sua vida. Agora ela tinha a família que sempre desejou e a eles oferecia sua total dedicação e seu amor incondicional.

Apesar das privações durante anos, Gilda se sentia uma mulher realizada com sua família e seus pouquíssimos, mas especiais, amigos. Vanessa se destacava dentre os poucos amigos que Gilda havia cultivado ao longo de seus 36 anos. Elas se conheceram há dois anos, na reunião da escola de suas filhas, que estavam no Pré 1. Em pouco tempo construíram uma amizade bonita e verdadeira. Nem mesmo a religião tão diferente de Vanessa foi capaz de evitar que elas se tornassem amigas. Enquanto Gilda era cristã, Vanessa era bruxa e acreditava em muitas divindades. Ali estava o oposto que o destino juntou numa belíssima amizade.

O ano de 2019 seria marcado como um ano extremamente difícil na vida de Gilda. Um terrível diagnóstico de câncer no fígado fez com que a mulher, outrora feliz e altiva, desse lugar a uma pessoa abatida, triste e cansada por conta do tratamento muito agressivo. Ela lutava com todas as suas forças contra essa doença. Seu maior sonho era viver o bastante para ver sua filha crescer e morrer bem velhinha ao lado de seu marido, o homem da sua vida, sua alma gêmea.

Em fevereiro de 2020, uma chama de esperança se acendeu no coração de Gilda quando ela recebeu o resultado dos exames que fizera. Dois dos três nódulos haviam desaparecido por completo e o maior e mais agressivo do fígado havia reduzido em 40% seu tamanho.

Naquele dia, Gilda decidiu que faria tudo que sempre teve vontade, mas que foi privada pelo rigor da criação de seus pais. E sua primeira "transgressão" seria o carnaval. Ela tinha uma enorme vontade de ver os blocos e as escolas de samba. A animação, o colorido, as músicas e a alegria, tudo encantava Gilda de uma forma que nem ela podia explicar.

Faltando uma semana para o feriado, Gilda chamou sua amiga Vanessa no whatsapp e falou de seu desejo de ir no carnaval pela primeira vez. Havia um certo risco, pois ela ainda estava debilitada pelo tratamento, mas como negar?

No domingo de carnaval, logo pela manhã, Vanessa buscou Gilda de carro na porta de sua casa. As recomendações do marido de Gilda foram inúmeras. Ele tinha muito medo, mas confiava que Vanessa não faria nada que pudesse prejudicar sua amada esposa.

Gilda estava com sua cadeira de rodas, ela não tinha dificuldade de locomoção, mas se cansava rápido, então a cadeira foi a alternativa perfeita para que ela aproveitasse o máximo possível. Ela era empurrada pela amiga Vanessa, que o fazia com gosto e satisfação.

Primeiro as amigas foram ver os blocos da zona sul. Vanessa deixava o carro em uma das ruas internas de Ipanema, Copacabana ou Botafogo e de lá partia com Gilda na cadeira de rodas até chegar aos blocos. As amigas iam conversando alegres e rindo. A felicidade das pessoas era contagiante, assim como as marchinhas e as fantasias. Ah... as fantasias... Como Gilda queria, mas sua criação cristã a impedia de ousar a esse ponto. Mas do arco enfeitado com pompom de abelha ela não escapou. Foi praticamente um ultimato de Vanessa, que usava um adorno igual em sua cabeça.

Dali elas partiram para o Centro do Rio de Janeiro e chegaram a tempo de participar de um dos blocos de carnaval mais conhecidos, o Cordão do Bola Preta. Os olhos de Gilda brilhavam com toda aquela alegria emanando do povo. E ela ainda arriscava cantar algumas marchinhas junto com sua amiga.

Por volta das dez horas da noite, Vanessa levou Gilda para o sambódromo. Chegaram a tempo de ver uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro iniciar seu desfile. A Portela. A sensação era indescritível, principalmente ao ver a majestosa águia, símbolo da escola Azul e Branca de Madureira, entrando na Sapucaí.

- Estou satisfeita, agora. Podemos ir pra casa. - Disse Gilda tocando a mão de sua amiga que repousava em seu ombro.

Duas semanas depois, Gilda teve uma piora de seu quadro. Uma embolia pulmonar e mal funcionamento do intestino a levaram para o hospital, ficando internada por três dias. Com um pouco de melhora, os médicos a liberaram para ser tratada em casa.

Mesmo fragilizada, Gilda conversava sempre que podia com Vanessa por telefone ou whatsapp relembrando aquele belo e divertido dia de carnaval. Mas a esperança que outrora era forte em seu peito, estava aos poucos se esvaindo e em poucas semanas, Gilda não resistiu e faleceu em sua casa. A equipe médica que lhe assistia fez de tudo para que ela fosse embora em paz e sem dor.

Sua família ficou devastada. A pequena Anna Clara chorava copiosamente no colo de seu pai, que tentava permanecer forte pela menina.

Vanessa, no dia do enterro, pediu permissão á Wagner para ler uma carta para sua amiga, que foi prontamente concedida.

"Minha amiga, Gi,

Minha religião não é a mesma que a sua. Nossas crenças são extremamente diferentes. Você sempre foi respeitosa, nunca me julgou ou tentou me convencer de que sua crença era a correta. Nossa amizade sempre foi verdadeira e cheia de respeito desde o início.

Sabe aquele domingo de carnaval que passamos juntas? Foi o melhor da minha vida. E olha que já fui a muitos carnavais. Mas você me fez enxergar a beleza na simplicidade das coisas.

Obrigada por ser essa mulher incrível. Onde quer que você esteja, meus Deuses estarão junto ao seu Deus cuidando de ti, vibrando boa energias e direcionando para a sua família. Não se preocupe que isso dará força a eles para seguir em frente.

Obrigada, Gi, não só por ter me escolhido para aquele maravilhoso passeio de carnaval, mas também por ter me escolhido pra ser sua amiga. Você foi um grande presente na minha vida.

Fica bem, minha amiga".

Por: Bárbara Coelho

Por: Bárbara Coelho

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