Sarah e Ana

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"Ahh! Eu adorei tanto essa." A menina de dez anos parecia estar num paraíso. Seu sorriso era largo e contagiante para a babá que a via sentada experimentando as botas. Parecia uma princesa irradiando felicidade.

Porque os dias de Ana ao lado de Sarah eram assim, felizes. Quando ela tinha quatro anos as coisas não foram exatamente fáceis, Sarah teve dificuldade para se acostumar com Ana. No começo de tudo era só o pai e o tio, mas com o passar do tempo eles precisaram de ajuda de fora e Ana foi um quebra galho insistente e chato - de não desistir de conquistar a pequena. Com o passar do tempo e a presença contínua da mais velha na vida da mais nova, bom, tudo o que Sarah teve que fazer foi aguentar a mulher demasiada energética, que a contava histórias para dormir em forma de canções em uma voz nada afinada - mas isso Sarah não dizia, porque estranhamente ela pegava no sono fácil quando Ana cantava suas melodias terríveis.

No final das contas, com o seu jeitinho atordoado e meigo, Ana conquistou o coração da menina ao ponto das duas não passarem um dia separadas.

"Meu bem." A babá chamou a atenção dela. "O que quer que eu faça de sobremesa pra ceia?". Perguntou com a cabeça no feriado que viria. Sarah se levantou com as botas nos pés e desfilou pela loja, sentindo a peça ceder confortável. Ela voltou seu corpo na direção de Ana, há uns dois metros dela, e disse "Pode fazer cheesecake?". "Claro. Mas você vai me ajudar." Respondeu apontando com o dedo indicador em sua direção. "Tudo bem". Sarah rodopiou com as pontas dos pés. Seus olhos castanhos focados no espelho enorme, vez ou outra fazendo caretas e mandando beijos para o reflexo.

"Eu gostei dessas. Ficaram lindas e parecem confortáveis." Ana se aproximou se agachando nos pés da garota e apertando os dedos dela. "E não tá grande. Dá pra você usar no inverno." Sarah balançou a cabeça concordando com ela em tudo, mas deixando claro que algo a incomodava. "Só são um pouco caras."

Como era de se esperar, empreiteiros não eram exatamente ricos. Logo, Sarah não tinha tudo o que queria e sonhava. Havia ido ao shopping com cem dólares dados pelo pai, mas as botas custavam setenta e cinco e os CD's da banda preferida cinquenta. Ela teria que fazer uma escolha entre um ou outro.

"Mas..." Sarah voltou a se entusiasmar, não querendo parecer triste e acabar preocupando Ana. "Eu vou levar mesmo assim. Os CD's eu compro depois quando tiver com mais grana." Ana sabia o quanto ela queria aqueles CD's, mas também sabia que entre escutar música e não passar frio durante aquela temporada de neve, era óbvia a segunda escolha.

A babá sorriu vendo os olhinhos calmos de Sarah e a abraçou, passou as mãos pelo cabelo crespo dela e parou os dedos na sua bochecha, apertando. "Tudo bem, meu amor. Não se preocupa com isso agora. Vamos gastar o resto do dinheiro com sorvete e depois vejo um jeitinho de te arrumar esses CD's, combinado?". "Combinado."

"Vamos levar essa." Ana disse por último indo para o caixa e esperando alguém atende-lá enquanto Sarah tirava as botas e guardava. Ana a viu por alguns segundos e respirou fundo. A última semana não tinha sido muito boa para ela, uma enxaqueca terrível a fez vomitar em alguns dias e andava cansada, o que, mesmo com a rotina cheia, não acontecia porque dormia bem e se alimentava da melhor forma possível.

O pai, Sebastian Wilson, teria discutido com ela, alertando que Ana precisava ir ao médico da família, mas a última coisa que passava na mente da jovem era ir ao hospital. Pois ela os odiava com todo o seu ser depois de tudo que vivenciou. "Não volto lá e nem você vai me obrigar." Retrucava com o pai, com raiva de si mesma por não conseguir manter nada do que comia dentro do estômago. Ela tinha medo sim, de estar com o mesmo que matou a mãe aos poucos, mas era teimosa e preferia morrer repentinamente do que sofrer por anos numa ala hospitalar.

"Aqui o seu troco." Ligeiramente a atendente embalou numa sacola da loja a caixa com o par de botas dentro, e entregou para Ana. "Agora você vai me pagar um belo de um sundae de chocolate com amendoim." Comentou puxando a garota para perto dela, saindo da loja.

"Tin tin". As duas riam numa conversa boba, brindando com os potes de sorvete nas mãos. "Ana, posso te fazer uma pergunta?". A boca suja de baunilha e os lábios vermelhos do frio, Sarah perguntou, e sem esperar a resposta da outra, perguntou de novo "Por que você não namora ninguém?". Ana inclinou a cabeça para o lado, mudando o senho descontraído. Ficou surpresa pela forma direta e incisiva.

"Eh-é... Bem, digamos... Porque eu não estou apaixonada por ninguém agora." Mentiu para a garota e provavelmente para si mesma, sabendo que nem ela entendia o que era estar apaixonada. "E você precisa se apaixonar pra namorar?".
Sarah lançou a segunda pergunta que deixou Ana ainda mais confusa.

Não. Você não precisa se apaixonar para namorar. Ana conhecia muitas pessoas que se casaram e tiveram filhos sem nem amarem um ao outro - os pais, por exemplo -, mas se você quer que esse relacionamento dure, pensava ela, ser apaixonado por essa pessoa é um requisito básico para você entrar numa relação. Como ela diria tudo isso para Sarah? E o mais importante, por que uma garota de dez anos estava fazendo essas perguntas?

"Você pode namorar sem estar apaixonada sim, mas eu acho que o ideal é você gostar muito de alguém pra poder namorar." Ela colocou a colher na boca, expressando o seu riso pelos olhos apertados. "Hm." Foi a vez de Sarah lamber a colherzinha do sorvete. "Como eu sei que tô apaixonada por alguém?". Ana engoliu o doce, pensando na pergunta.

"Eu acho que..." Ela começou. "Pode até parecer meio brega...". Ana procurou o teto da sorveteria se lembrando do que fazia todos os dias. "Seu coração bate forte quando nota que ele presta atenção em você. Quando você tenta fazer ele ficar de bom humor, fazer graça pra ele rir. E você faz um pouco de tudo pra deixar o dia dele e até das pessoas que ele gosta melhor." Ana explicou, fazendo Sarah grudar os olhos nela. "Quando você se apaixonar vai sentir que não consegue passar um dia sem ver essa pessoa. Eu sei que pode parecer bobo, mas é assim normalmente."

Sarah pareceu genuinamente encantada pelo que a babá falou. Parecia estar vendo uma cena de um filme romântico, e sem gostar de toda aquela baboseira, ela ainda assim interessou-se pelo que ouviu. "Isso é muito fofo." "É, eu também acho." As duas sorriram uma para a outra sem mais perguntas e respostas.

Ana teve uma mãe presente até a morte dela, quando a garota tinha onze anos. Não foi fácil perder quem ela mais amava na vida, teve que se acostumar com a vida sem conversas maternas, sem perguntar para alguém o que era se apaixonar e amar. Era doido ter Sarah, porque com ela, Ana podia ser o que não teve durante metade da vida, uma mãe. Aquelas conversas mostravam o quanto elas estavam profundamente conectadas, sentiam à vontade na companhia da outra e faziam perguntas que só mãe e filha compartilhavam. Sarah, por sua vez, não havia tido alguém para querer chamar de mãe até Ana tomar a forma da figura para ela.

We Are Family - Joel MillerOnde histórias criam vida. Descubra agora