Parte 2: Raul - Capítulo 12

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Não deixe a vida ser um 

completo clichê


 Quando aproximamos do lugar onde ocorrem os ensaios da banda, eu consegui ouvir os sons indistinguíveis de instrumentos com as notas mescladas e harmônicas, de tal forma, que não facilitava a tarefa de distinguir quais eram os instrumentos que estavam sendo tocados, mas, algumas notas que se destacavam entre outras eram bem parecidas com a de bateria e de guitarra. Além, é claro, uma voz que sobressaia os sons dos instrumentos musicais, uma voz estonteante e fascinante em que acrescentava um aspecto hipnótico na música e de fetiche. Bom... se esse era o ensaio, imagina quando eles tocarem para valer?!

— A música é maneira, não é mesmo? — disse Christ sorridente quando me pegou batucando os dedos ritmicamente no volante.

— Vocês são bons. — eu disse sem conseguir disfarçar um tom deslumbrante na voz.

— Valeu. É bom saber disso. — ela diz após eu ter estacionado o carro do lado da garagem em que servia como ponto de ensaios da banda. Então ela sai do carro e eu a sigo, não sem antes de trancar o veículo.

Estávamos na parte distante da zona abastada da pequena cidade. Deixamos para trás os magníficos casarões, e nos encontrávamos agora entre as casas que serviam mais como moradia do que decoração. Em algumas delas, as paredes se encontravam apenas no reboco e com rachaduras, bom... naquelas em que ofereciam uma visão panorâmica das suas estruturas, já que, boa parte delas possuíam o que eu chamaria portão de verdade — tipos de portões em que era todo coberto com o material metálico — que tampava a boa parte da percepção em que se tinham das construções. O que era completamente diferente das áreas residenciais ricas de Burford, onde os moradores de lá insistem naquele padrão estúpido de utilizarem portões de grade.

Apesar de não estarmos na parte rica da cidadezinha, o lugar era ainda mais encantador do que o resto de Burford, bom... com exceção das casas. Isso porque, estávamos em uma das avenidas mais próximas do majestoso bosque.

Como a pequena cidade, no seu decorrer do progresso de evolução, manteve uma certa distância do bosque devido a tão temível lenda, o centro de Burford se encontrava na direção contrária, e, gradualmente, com passar dos anos, as pessoas que não possuíam muito capital ou realmente eram muito loucas — realmente tinham aqueles que procuravam viver o mais perto possível do bosque para poder conseguir algo que comprovasse se a tal lenda é real — passaram construir casas por aquelas bandas.

Atualmente, o bosque não passa de um dos cartões postais da cidadezinha. Um bando de turistas vai até à borda para tirar fotos, já que a entrada não é permitida por se tratar de uma reserva natural e patrimônio público. Mas, existe quem diga que já viu pessoas entrarem no bosque em busca de aventura ou algo do tipo e não retornarem.

A garagem, em que pertencia à casa da qual estávamos adentrando, tinha um desses variados portões que diferenciavam daqueles que eram ostentados nas partes mais abastadas em Burford, além de que o portão, que agora se encontrava aberto, é de um vermelho berrante e a fachada que fazia junção com a entrada da casa é de um azul bem claro em que davam um ar inebriante ao mesmo tempo, em que davam um quê de mistério.

Ao entrar no local, tive que convencer a minha mente que o lugar ao qual acabei de adentrar se tratava de uma garagem e não uma das mais glamorosas cafeterias londrinas. Era tão espaçosa que poderia caber três carros sem qualquer dificuldade. As paredes eram de um branco que me lembrava a cor das pérolas, e encostada em um delas se encontrava um comprido sofá estofado de veludo em um tom rosa, que dava ao móvel, um aspecto delicado e sereno. Do lado oposto de onde se encontrava o sofá, se encontrava um carro fusca azul pastel de 1963 bem conservado. E, no fundo da garagem, sobre um enorme elegante tapete camurça da cor de vinho tinto, estava o pessoal da banda com seus instrumentos que eram tocados com maestria, e apesar deles terem reparado que a Christ e eu havíamos adentrado o recinto, continuavam com afinco a produzir aquela vibrante e estonteante música.

Enquanto esperamos a banda terminar os últimos acordes, Christine e eu resolvemos sentar no estiloso sofá. E no instante em que me dirigia para o móvel confortável, percebi algo escrito na parede bem acima do sofá, em uma bela caligrafia em azul bem escuro que parecia preto.


Não deixe a vida ser um completo clichê.

Onde os sonhos se encaixam, a criatividade se encaixa.


Não pude deixar de pensar no que acabara de ler. Apesar de não morar mais naquela cidadezinha pacata, a minha vida continuava sendo um completo tédio. Não aquele tédio quando não tem nada para fazer. Era aquele tipo de tédio causado por repetir as mesmas coisas diariamente.

Acordar, tomar café matinal, trabalhar, almoçar, trabalhar mais uma vez, comparecer aos incríveis jantares ou festas, dormir, acordar... e sobreviver.

Sobreviver nos dias que transcorriam como um furacão, nas horas que se prolongavam como um tipo de tortura na sala de reuniões, na correria de colocar em dia as tarefas da semana.

Quando vinha o momento de se divertir... eram os mesmos tipos de festas em que eu ia, os mesmos lugares em que eu frequentava, as mesmas pessoas que me acompanhavam. E, por mais que nesses momentos de diversão eu esquecesse da minha vida conturbada e da rotina, sentia que aquele tipo de felicidade era algo que não vinha naturalmente.

Se caso pudesse ser chamado de felicidade...

Então, foi naquele instante que compreendi o que aquela música estava dizendo. Porque, por mais que a melodia fosse eletrizante, era a letra daquela canção que era a peça chave que dava aquele ar hipnótico. A letra não se tratava apenas de palavras. Não. A letra carregava um significado quase etéreo que adentrava a alma... que adentrava a minha alma e a preenchia por completo, enfatizando o que havia escrito naquela parede. E, enquanto a vocalista cantava o refrão final, eu guardava aquelas palavras e o que elas significavam no fundo do meu coração.


Então te aconselho, se apresse

Vem sem demora

E aproveita essa oportunidade

De melhorar aquilo que tem de melhorar

Porque os ponteiros do relógio não param,

não esperam por ninguém

Então vem agora, sem demora

Porque o tempo não se importa com ninguém


O tempo não espera e nem se importa por ninguém. E, para poder realmente desfrutá-lo, a solução era permitir dar lugar para a criatividade... dar lugar para o imprevisto. Viver a cada dia como se fosse o único. E, por mais que eu ainda não usufruo como deveria todos os momentos proporcionados na minha vida, ainda não era tarde. Não. Ainda não era tarde. Eu só tinha que despertar.

Mas como? Eu não sabia, mas estava determinado a descobrir.

Não deixe a vida ser um completo clichê.

Eu não iria mais deixar aquilo acontecer. Assim que descobrisse como, nunca mais deixaria que aquela vida tediosa voltasse. E então, não iria mais sobreviver, e sim viver. Porque devia isso à minha irmã, à memória dos meus pais e principalmente... a mim mesmo.

Eu iria me despertar daquele pesadelo. Eu tinha certeza disso. E iria viver a cada dia como fosse o único. Só tinha que descobrir como.

Crônicas do Bosque CongeladoOnde histórias criam vida. Descubra agora