Capítulo 1

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"Eu estou solitário pra caralho
Sozinho na ilha
Tão fodidamente solitário
Alguém me ligue"
Lonely, 2022

    Finalmente férias, ou algo parecido, finalizamos nossas atividades com um estádio lotado, pode passar mil anos, sempre será como a primeira vez porém, com a diferença que já sinto o peso dos anos no meu corpo. Depois de tudo finalizado e dever cumprido, pé na estrada, tínhamos muito pra visitar, precisava recarregar minha alma, me misturar a multidão. Próxima parada, Nova York, já tinha todos os roteiros horários, nessas horas a comodidade de ter uma equipe pra lhe auxiliar com essas burocracias é um luxo que não deixo de usufruir. Roteiros, reserva e parceiros de viagem ok, partimos.

       Depois de longas 6 horas de viagem desembarcamos e fizemos check-in no hotel, fomos explorar, costumo ser mais introspectivo porém aquela noite estava eufórico, andamos a esmo pela cidade e entramos em um café nos arredores, ao entrar meu amigo acabou esbarrando em alguém, uma mulher (?) era uma figura pequena usava máscara, boné e capuz, porém o que me chamou atenção foi o cheiro, ela tinha um cheiro cítrico talvez algo como laranja ou qualquer coisa do gênero, não tive muito tempo pra analisar já que ela saiu como um foguete depois de se desculpar com meu amigo. Entramos e fizemos uma bela refeição, o café era aconchegante, luz quente, algumas plantas, a decoração era bem minimalista e os móveis de madeira, algumas mesas, algumas poltronas e um ambiente para leituras, um pequeno acervo de clássicos e aquele cheiro característico de café fresco sempre no ar, perdemos fácil algumas horas conversando e comendo, nossa... como senti falta disso tudo. Voltamos para o hotel e conferi tudo novamente, com meu histórico de perca de coisas essenciais aprendi a ser um pouco mais precavido.
Sim, a verdade é que sou um tanto desastrado e frequentemente perco e quebro algumas coisas, as vezes é engraçado as vezes um incômodo. Tudo checado caio na cama como uma pedra.

     Dia Beacon, nossa, que lugar incrível, que energia, as obras, a atmosfera, os ambientes eu estava completamente embriagado por tudo aquilo, a arte me fazia feliz, conseguir me conectar, os artistas dos anos 60-70 são meus favoritos, nessa época eram bem minimalista apesar de robusto como é o caso de Richard Serra, tentar entender o que cada artista queria expressar, o que sentia, o que tava pensando, tudo isso me envolve e me absorve, por alguns momentos me sentir dentro daquilo tudo e ao mesmo tempo tão alheio, apenas mais um na multidão que tira suas conclusões e fazem suas suposições. O Parque Robert Irwins Garden sem dúvida é um espetáculo a parte, o clima ameno levando em conta a época do ano, o museu ainda contava com uma charmosa cafeteria e uma livraria que também me conquistou. Estava tudo dentro do planejado, estava tudo indo bem, conhecer os diretores e responsáveis pelo lugar seria o próximo passo na nossa programação até eu ver aquela cena, sim definitivamente eu não vi errado e fui totalmente movido pela curiosidade, ela me arrastou pra junto daquela situação.

     A cena em questão estava acontecendo em frente a obra Negative Megalith (escultura negativa) de Michael Heizer,me aproximei devagar tentando entender a perspectiva da pessoa que observava, não é de meu feitio interferir na experiência de outres então apenas observei: a pessoa estava em pé no limite que se pode aproximar da obra sua cabeça virada num ângulo de quase 90 graus pra esquerda apoiada no próprio ombro, a mão direita levantada como se estivesse cobrindo algo os dedos em forma de L e a mão esquerda apoiada na própria cintura dando apoio para o corpo. Ela estava de preto, da cabeça aos pés (literalmente) usava um bucket, de onde saia longos fios ruivos, um casaco longo e pesado, jeans e coturnos, usava uma bolsa na transversal onde tinha um coelhinho rosa pendurado em um dos zíperes da bolsa, ok, identificamos um fã e também quem é seu favorito, o mais sensato seria sair dali, não atrapalhar a experiência do outro, porém novamente arrastado pela minha curiosidade lá estava eu do lado daquela pessoa

- O que você consegue ver? A escultura ou o sentimento por trás? - perguntei no meu melhor inglês casual.

-Como uma pedra gigantesca conseguiria passar um sentido? - devolveu em forma de pergunta sem me olhar.

-Acho que quanto maior a escultura, maior o sentimento, seja ele qual for - respondi tirando os olhos da obra e pela primeira vez olhando diretamente pra ela.

      Ela virou pra mim, senti que viria uma resposta afiada, porém quando me olhou nos olhos seus olhos se arregalaram, ela engoliu tudo que ia dizer, usava máscara mas deu pra ver o movimento de abrir e fechar a boca, conseguia ver sua mente processando, foi um pequeno pane de alguns segundos e então veio a resposta, assim como se estivéssemos conversando sobre o tempo e o clima como velhos amigos

-Acho que o sentimento possa não ter muito haver com tudo isso, - gesticulou pra obra - talvez seja a representação do ego ou da vaidade

-Ego e Vaidade não seriam sentimentos afinal? - perguntei não querendo que aquela conversa acabasse

-Touchê,- respondeu dando uma piscadela e riso fraco - definitivamente arte não é meu forte.

       Estiquei a mão me apresentando, tudo bem que ela sabia quem eu era, mas eu estava curioso sobre ela, quando ela ia apertar minha mão seu celular toca e rapidamente a conexão foi quebrada, ela atendeu e tentei não ouvir, falhei miseravelmente.

-Como assim atrasada? Estou em frente ao lugar combinado - tentava falar baixinho - o que? Me passa então o endereço, - repetiu o endereço pra confirmar - ok, estou chegando, claro que conheço, até mais.

      Desligou e virou para mim, seu olhar de pesar já dizia tudo, se despediu dizendo que tinha que ir e que adoraria continuar o tour com um curador particular, porém tinha que correr, me desejou sucesso e saiu apressadamente. Eu fiquei ali não sabia seu nome, nem nada além da sua péssima interpretação de arte e aquele cheiro novamente, que com certeza não era laranja mas, ainda era cítrico. Talvez eu esteja dando muita importância a isso? Provavelmente, porém é algo familiar e me causa sensação de estar perdendo algo, contudo, joguei isso de lado e fui conhecer os responsáveis pelo museu, tivemos uma agradável conversa, revisitamos minhas obras favoritas e eles atenciosamente me ouviram e também falaram sobre suas perspectivas, agradeceram pela visita e nos despedimos o sentimento era de que eu precisava de mais daquele lugar e me arriscaria a dizer que não seria a última vez ali.

     Quando colocamos o pé na rua o endereço do café me veio a mente, junto com a imagem vivida daqueles olhos azuis olhando diretamente pra mim, talvez seja um capricho, talvez seja uma carência, talvez só atração pela normalidade com a qual fui tratado, sem euforia, gritinhos ou risinhos. Definitivamente queria vê-la novamente, talvez conversar, (não necessariamente sobre arte) talvez tomar um café e a ouvir, não sei o que me motivou, porém joguei a culpa no tédio e na curiosidade, entramos em um taxi rumo aquele café.

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