Chão de nuvens

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  Acordei com um som diferente no meu ouvido, um barulho de motor bem suave, virei o rosto e me afundei em uma coberta macia que me fez perder totalmente a vontade de me levantar, mas eu tinha que trabalhar hoje. Abri os olhos e lá estava Estrela, um olhar manhoso, um bocejo e um ronronar incessante. Isso era muito bom. Levantei estralando as costas, as costelas me lembraram que existiam, eu fracamente já estava cansando, ou me acostumando. Era incrível a sensação daquela manhã, o dia parecia estar mais calmo e mais colorido, mas era a mesma coisa de sempre. Só que melhor, era algo interno. Será que foi por causa de ontem? Aquilo foi surreal, eu não quero pensar no que parece ser... mas e se... não,  sem dúvidas não é nada disso. Talvez tenha sido só emoção, e chorar faz bem! Eu lembro que uma vez uma psicóloga me disse isso, e considerando que eu parecia uma criança chorona ontem, talvez seja esse o resultado de um bom choro. Pronto, está decidido.
   Peguei o celular, talvez se eu mandasse uma mensagem para Gabriela... mas o que? Se eu disser sobre ontem ela vai vir com aquele papo divino e eu não tô a fim. Na verdade, ela vai vir com esse papo SE ela responder. Ela  geralmente não responde, e pelo jeito não é só comigo, ela custa entrar no app de mensagens, vou perguntar depois. Além do mais, pra quê conversar online se eu trabalho com ela!?
    Vou esfriar a cabeça. Segurei na barra fixa... 1... 2... lembro de um vídeo, foi meio o que me fez querer fazer exercicios, 5...6... o cara no vídeo disse que não tem uma pessoa que se preocupa com passado ou futuro quando tá com um peso bem grande esmagando o peito e sabe que tem que levantar. 10... 11... E vou te contar, é dificil tbm pensar em outra coisa quando tem que levantar seu próprio peso usando os braços... 20... 22... já estava perdendo a conta, mas não importa, vou até falhar mesmo. Fecho os olhos, os braços tremem, paro acima da barra, sinto o corpo estremecer, o coração pulsando em cada extremidade do corpo, o ar pesa pra entrar, tô começado a lembrar que eu tô vivo, desço e impulsiono de novo... agora... agora patinhas batem nos meus pés, olho pra baixo, tem uma manchinha preta no chão tentando agarrar meus pés.  Concentra. Tapinhas. Concentra. Um miado. Se concentra! Uma mordida!? Solto a barra e tropeço naquele tufo de pelos com olhos que pula na cama balançando o rabo de um lado para o outro.
   _Que isso Estrela?! _Ela salta no colchão e passa por mim para explorar a casa. Vejo seus olhos fitarem as plantas. A maioria são cactos e plantas carnívoras... ainda bem que ela é grande de mais pra ser... engolida.  
  Começo a me arrumar, o horário vencendo. No café, a gata sobe no balcão para me observar, acho que é um hobbie me ver comendo. Dou um pedaço de pão. Gatos podem comer pão? Tenho que ver uma lista do que eles podem comer. Pego uma regata larga, uma calça jeans e um all star surrado que já virou uniforme de trabalho. Hora de ir!  Espera. Hoje é segunda, o movimento na loja vai ser precário, volto pra pegar um mangá... hm... Blue Period, hoje tô a fim de algo mais tranquilo. Já ía fechar a porta quando a gata me encarou, sacanagem sair sem me despedir. Deitei-a na cama e enfiei o nariz naquele pêlo, se Deus existe, hora de agradecer por não tem alergia! Esfreguei o rosto e levei uns arranhões em troca, vou considerar como marquinhas de amor.
    _Fica esperta criança, eu posso te denunciar por violência doméstica! _Apontei, e Estrela me lançou um olhar sarcástico, carambola! Nem sabia que animais faziam olhares sarcásticos!
  
                           *** *** ***
   
    Tranquei a bicicleta e entrei na loja ao som do sininho. Gabriela estava mexendo no celular, como eu disse, hoje vai ser um dia bem parado:
   _Bom dia, senhorita, aqui vende biscoitos?
   _Não, mas tenho chicletes._ Ela estendeu uma cartela na minha direção. Peguei.
   _Grato, mas e os biscoitos?
   Lua revirou os olhos e seguiu mexendo no celular:
   _Fiquei tão distraída ontem que nem te vi indo embora, aquela música é incrível! O nome dela é Oceanos.
   _Tendi. _Dei de ombros e me joguei na cadeira giratória que ficava perto do balcão. 
   _Você gostou de ontem?
   _Foi da hora, virei um pai solteiro de gato, comi um "x-infarto", descobri que sou um procurado com foto num bar (ou seja lá o que for aquilo), lutei contra supersticiosas... nada de novo no front. _Sorri.
   _Ah, admite que o "x-infarto" é uma delícia!
   _Admito que você deveria arrumar uma carteira de "puxa saco do xodó". E... aposto que você não notou na referência de filme  que eu fiz.
   _Já disse que não assisto animes.
   _"Nada de novo no front" não é um anime. É um filme de guerra. Sua sem cultura.
   _Gosto de suspense.
   _Continua sendo uma sem cultura. _ela me olhou por cima do celular.
   _Sem cultura é você! Aposto que de música você sabe de poucas. Lembro que você ficava enfiado em músicas eletrônicas.
   _Hm... o que acha de "just the two of us"?
   _Não conheço.
   _É um jazz maravilhoso da década de 80 com uma vibe indescritível, a voz, a letra, a melodia, o sax... é o tipo de coisa que pessoas desenculturadas... _Dei ênfase na última palavra._ Como... tu, não conhecem. _Soltei uma gargalhada e agitei um copo de água entre os dedos como se fosse uma taça cara de vinho tinto. _Sabe minha cara, embora eu aprecie, e ouça deliberadamente, músicas eletrônicas, meu gosto musical é deveras amplo, passeio pelo rock, jazz, samba, bossa nova, músicas dos anos 80 e 90 em geral, indie... apenas não curto muito sertanejo, porém, sou muito eclético... a cultura musical em pessoa.
   _Me poupe, Island.
   _Hahaha! Mas é sério! E você, minha cara amiga, vai conhecer essa pérola do jazz internacional hoje. Afinal hoje é segunda, dia de faxina.
  _Isso não tava no meu contrato de trabalho. _Largou o celular.
  _Hm, aposto que tava, você só não percebeu, foi contratada como caixa e para ajudar a manter a ordem e limpeza do local, certo?
  _Sim, ajudar, não faxinar.
  _Exato, e eu também fui contratado para ajudar e manter. Eu ajudo, e você ajuda. E como diria a filósofa Dora Aventureira, friends help friends, você não vai faxinar sozinha, vai me ajudar, e eu não vou estar sozinho, vou ajudar.
   _Sério!? Não acredito!
   _Pois é, o Barba Branca pode até parecer bobo, mas de bobo só tem a aparência. _Lua largou o telefone no balcão e deslizou as mãos no rosto como se fosse derreter. _ Por isso  vamos fechar a loja mais cedo hoje, aí a gente dá uma arrumada por aqui, e aproveitamos pra ouvir a música. 
   Ela não respondeu. O dia passou lentamente como um caracol e só apareceram 2 pessoas, uma para pedir informação.  Li o mangá que tinha trazido e estava torcendo para encontrar um mangá fora da embalagem lá no estoque, mas não tinha. Depois vou perguntar pro B.B. se eu posso pegar as revistas sem pedir permissão pra ler nas segundas, aí eu embalo de novo, sei lá.  Bem possível que ele não deixe.
   Olhei no relógio na parede, acho que tá na hora de fechar e ir faxinar. Abri os basculantes do fundo da loja e desci as portas até ficar uma pequena brecha.
   Decidimos no pedra-papel-tesoura quem ía fazer o quê, eu ficaria com o chão e paredes e ela com as prateleiras, manequins e caixas.
   Desci as portas da loja até sobrar apenas uma brexa pequena. Hora da faxina!
   Conversamos durante todo o tempo da faxina, e eu particularmente odeio limpar coisas, sentia meu ânimo no chão, estava quase me arrastando pela loja, sorte que já estava na última passada de pano. Aquilo era horroroso, não sei como existem pessoas que limpam por hobbie, que têm mania de limpeza, francamente, eu não confio nesse tipo de gente!  Finalizei meu trabalho enquanto tentava me manter acordado e focado, o que já era um grande custo! Lua já havia terminado sua parte. Me joguei num banco e suspirei, enfim terminamos! Ela passou por mim e pegou sua bolsa tiracolo que estava atrás do balcão, já estava de saída quando lembrei:
    _Ei, aonde pensa que vai?
    _Embora?
    _Eu ainda não te dei a sua dose de cultura.
   Ela me encarava indecisa, até que se lembrou:
    _Ah, sim, a música.
   Senti a adrenalina espalhar no corpo. Peguei o celular e coloquei numa versao da música remixada, a diferença era um loop, mas a velocidade, voz e instrumentos eram os mesmos.  Segurei em suas mãos e a trouxe para o meio da loja onde havia bastante espaço.
   O toque da música começou, me lembrava algo calmo, tipo uma chuva leve. Repousei as mãos em sua cintura, ela parecia surpresa, aposto que não esperava por uma dança, mas não recuou. Coloquei suas mãos em meus ombros. Começamos a nos balançar no ritmo da música. A voz do cantor enchia o ambiante. A luz do final de tarde se esgueirava por debaixo da porta entreaberta e  seu reflexo tornava dourado os cabelos da minha parceira. No começo ela estava retraída, os ombros encolhidos e os passos desajeitados, mas depois pegou o jeito, a medida que ouvia a música, sorria com a melodia. Segurei sua mão e a fiz girar, ela voltou para perto já com um sorriso enorme. A música em loop no fundo voltou ao começo lento e eu a aproximei mais, suas bochechas enrubesceram e eu fiz uma piada ruim que lhe tirou a tensão. Eu já não sentia o chão abaixo de nós, era como dançar nas nuvens, olhei para o teto tentando voltar para o agora, mas ela deitou a cabeça no meu peito... ela conseguia ouvir meu coração disparado?! Eu não sei, mas quando baixei o rosto, vi que ela parecia tão nas nuvens quanto eu. A música já deveria estar no seu 3° ou talvez 4° loop, eu não saberia dizer. Agora eu já não queria pensar.
  Deslizei a mão até seu queixo, fazendo-a me encarar e... céus... aquele verde era tão incrível que, sem dúvidas, faria qualquer pintor querer registrar, me senti perdido naqueles dois lagos esverdeados a minha frente, e mergulhei em seus lábios, ela não se afastou.
  Foi um beijo lento, a cada movimento eu  removia um dos anos que ficamos sem nos ver. Eu lembrava de cada pensamento preocupado e curioso sobre ela, eu sempre tive facilidade para esquecer nomes, coisas, e até pessoas, mas ela não, ela eu não esqueci. Enrolei com cuidado meus dedos entre as mechas douradas que ondulavam perto de seu pescoço e suas mãos deslizaram até minhas costas, intensifiquei o beijo, eu a sentia mais leve nos meus braços quando, como alguém que acorda de um transe, ela se afastou de mim:
    _Ah, não... não vai, não..._ Sussurrei.
    _Eu não deveria ter feito isso.
   Me aproximei, mas ela se afastou.
   _Desculpa, eu não sei no que eu tava pensando.
   _Eu estava pensando em você. _Sorri de lado.
   _Não,  para por favor. _ Lua se afastou mais e foi até a bolsa no balcão. 
   _Você não gostou?
   _Gostei, mas não é isso. A gente não deveria fazer isso. Eu não gosto de "ficar", e somos amigos.
   _Ei... _Ela não me deixou terminar, correu em direção à porta ainda se desculpando e foi embora. Desliguei o celular. O chão voltou a ser duro de baixo dos meus pés.
                  
                                  ***

   O caminho para o prédio foi rápido, ou talvez eu só não tenha reparado bem nele. Tanto faz.
Passei o corredor e me deparei com a Marshmallow aos pés da escadaria:
   _Fala comigo, Algodão Doce.
   _Oi, meu doce. Por que está parada aqui?
   _Tô criando coragem para subir esses 6 lances de escada. _Ela respondeu obviamente cansada.
   _Vamos, eu vou ser sua companhia.
  Subimos, no começo trocando algumas palavras mas ao fim nem eu e nem ela tínhamos fôlego para isso. Ela se despediu entrando na porta a frente da minha, e eu, por algum motivo poderia jurar que abriria a porta e veria um par de olhos estrelados a minha espera, tenho que parar de criar expectativas.
   Quando abri a porta fui recebido por um apartamento ( apertamento?) vazio, e um vaso de planta quebrado no chão. 
   _ Droga! Minha "faca de São Jorge"! Quer dizer, "adaga de São Jorge"!!!! _ Gritei
  _"Espada de São Jorge!!"_ A vizinha de baixo me corrigiu.
  _Isso mesmo, obrigado!!
  Fitei aquela terra no chão e as marcas de patas, varri aquilo para o canto, eu não iria arrumar agora. Vasculhei o local com os olhos e nem sinal da monstrinha. Fui até a cozinha, de repente algo me agarrou o calcanhar:
    _Ah! Ei! Estrela!! _ A gata me segurava o pé e arranhava com as patas de trás de um jeito brincalhão. Depois me soltou, quando comecei a andar ela veio como uma verdadeira caçadora, eu juro, parecia uma pantera em miniatura. Persegui aquela pequena sombra pelo AP.
   A noite eu estava exausto e ela também , agora já estava deitada na minha cama enquanto eu experimentava o novo ponto de vista do chão.  Encarei o teto de novo, o polvo estava ali me chamando para pintá-lo. Peguei uma banqueta na cozinha e subi nela com um giz na mão, comecei a esboçar o polvo no teto. 
  O que impedia ela de continuar o beijo? Puxei um traço. Ela disse que não queria "ficar", e que somos amigos, amigos... a-mi-gos... "friend zone"? Errei o tentáculo do polvo, borrei o erro com a palma da mão. Mas... você não beija alguém que está na "friend zone", e mais, se você não pode beijar um amigo, vai beijar quem? Um inimigo!?  Deslizei o giz e ele lascou um pedaço.  Será que... ela quer algo a mais? Será que ela namoraria comigo? Comecei a esboçar as estrelas, logo o polvo já segurava algo nos tentáculos. Eu não vou mandar mensagem, ela tá claramente confusa, tanto quanto eu.  Continuei riscando o teto até que se formou um polvo completo segurando uma lua crescente. Desci da banqueta para pegar uma caneta posca branca, eu queria acabar aquilo, então chegou uma mensagem no celular.
   Voei até o aparelho.

  [Número desconhecido] _Oiii!
 
Ignorei...

  [Número desconhecido] _Nao me reconheceu, apressadinho?
  
Ok, eu vou responder.

  Eu_ quem é?
  [Número desconhecido] _ Lúcia. A garota da festa. Seu amigo me passou seu número.
  Eu_ Tendi.
  Lúcia_ Quando a gente vai se ver?
  Eu_ Nao to em clima de festa.
  Lúcia_ Não precisa de uma festa para isso.

  Joguei o celular na cama. Não com clima pra nada. Apaguei as luzes.
Me deitei com cuidado, a costela ainda pulsava, me pergunto quando isso vai passar.
   Estrela se aninhou ao meu lado no travesseiro. Ficou me encarando, dava pra ver aqueles olhões mesmo no breu. Aqueles olhos... verdes.
  

Como Sol e LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora