Estrela dá sorte, sim

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     Encarei as caixas de animais.
     Todas lotadas de filhotes choramingando.
     Já fazia um tempo que eu tinha chegado, e por algum motivo eu pensei que passaria mais tempo com ela, mas pelo jeito eu me esqueci que estava ali como voluntário, não como visita, logo na hora que cheguei já me colocaram para trabalhar!
    Todos estavam empenhados e reunidos na calçada em frente à igreja que organizava o evento. Haviam mesas forradas com caixas de filhotes para adoção, outras mesas com a papelada de vacinas e dados sobre cada um dos bichos, alguns papéis com desenhos de cachorros, tudo feito á mão, é claro, e de brinde resolveram imprimir o anúncio que eu fiz ontem á noite, e eu estava justamente indo distribuir esses cartazes na rua com um indivíduo extremamente animado. Por tudo o que eu já disse, seria burrice se você presumisse que o ser animado ao meu lado saltitando como uma... ovelha? Sei lá, enfim, seria burrice se você pensasse que estou falando da Gabriela. Não, Gabriela está lidando com a papelada. Quem ao meu lado é um tal de Rael.
   Vamos lá, Rael é um cara mediano, tem uns 15 anos, embora tenha cara de adulto, só a cara, ok? Pele negra e cabelos cacheados crespos que se libertam em um black bem armado com a lateral raspada... no momento eu daria tudo, tudo mesmo para poder tocar naquele cabelo, parece extremamente macio! Ele é magro e veste roupas largas, uma T-shirt branca com pouca estampa q desce até o quadril, uma calça street larga com as barras dobradas e tênis, um look todo em branco e amarelo. Francamente, a única vez que eu o vi sério foi na hora em que cheguei, depois disso, eu já estou até acostumado com as risadas dele. Ele ri por tudo, e parece um imã de crianças, o carisma dele atraiu muitos donos em potencial. Os panfletos já haviam acabado e estávamos voltando para junto dos outros voluntários:
  _Eaí, Jão... qual o seu nome mesmo? _Rael se virou pra mim. Bem, agora virei Jão.
  _Island.
  _Legal, mano. É um nome interessante. Qual o significado dele?
  _Ah... eu não sei... até onde sei, Island é "ilha" em inglês...
  _Sério? Tendi. Eu gosto de saber os significados dos nomes! Então você é uma ilha.
  _É, Hahaha, foi mal decepcionar você com um significado tão raso. Mas e o seu nome? Qual é? _Eu estava distraído olhando para os tênis dele, ele dançava no meio da rua como se fosse a coisa mais normal, fazia passos de dança com os pés enquanto andava.
    Ele pareceu brilhar de alegria assim que fiz essa pergunta. Seus olhos se viraram pra mim :
   _Rael, que Deus reine! Ai a gente pode completar com o que quiser! Que Deus reine sobre minha vida, sobre você, sobre nós... que ele reine... Nomes são incríveis, eles são uma declaração sobre você. 
   Fitei o chão, meu nome não dizia nada sobre mim. Uma ilha. Qualé.
   Qual era o significado do nome dele mesmo? Eu já nem lembro mais, droga, tenho andado mais distraído que o normal! Hm... talvez eu deva falar alguma coisa, ele foi o último a falar. Girei os olhos pelo ambiente... só conseguia pensar nos passos dele e no seu cabelo...
    _Eaí, você sempre está dançando? _ Hm, isso foi horrível. Qual meu problema!?
   _É cara! "Se sentir que ama tanto a dança ao ponto de quase não viver sem ,então renda-se a este amor!" É o que eu ouvi uma vez, desde então nunca mais eu deixei de dançar! Se vier vontade, não importa onde eu esteja, eu vou dançar! E vai ser pra valer, não importa se tem uma ou um milhão de pessoas olhando, ou se não tenha ninguém, eu sempre vou dançar quando tiver que dançar! Você dança, Jão? _A facilidade dele de esquecer meu nome é incrível, eu só não julgo porque talvez eu seja pior.
  _É bem raro, só quando estou sózinho.
  _Por que?
  _Ah, não sei...
  _Tem vergonha, Jão?
  _Não... é só que...
  _Então tenta... _Ele estendeu os braços na minha direção e me trouxe pra sua frente, estávamos parados no meio da calçada e não tinha música, ele jogou os pés pro lado e me olhou como se quisesse que eu imitasse os movimentos. Era estranho, mas quem sou eu pra falar de gente estranha?! Segui a instrução.  Ele jogou os pés pro outro lado, imitei, de repente o passo ja parecia mais fácil e eu tava dançando dançando ritmo que eu nem sabia qual, era um ridículo, diferente de quando eu dançava sozinho, mas era ótimo! Ele girou e isso encerrou o "show":
  _Haha! Você dança bem, Jão! Dança assim quando ta sozinho!?
  _Nem de longe!_ Não consegui conter a risada._ Hm...sei lá. É diferente disso, é mais solto. Mas foi da hora, cara.
  _Se você se soltar, você leva jeito pra dança, até poderia fazer parte dum grupo que eu vou... _Ele me encarou animado, mas logo relaxou a expressão._ Mas quer saber? Se você não quiser, não significa que é ruim, tem coisas boas que são... particulares.
   Sem notar, nós ja havíamos chegado de novo no espaço com as mesas. Praticamente todas as pessoas que encontramos na rua e, um pouco mais, estavam olhando os filhotes nas caixas ou levando eles.  Percorri o olhar pelas mesas, todos ocupados. Eu não sei o que fazer... bem, talvez dê pra conprar algo num mercado que vi, já que não parecem precisar de mim. Já estava me virando quando alguém segurou minha mão:
  _Já voltou, Sol!? _A naturalidade no jeito que ela me chama..._ Aonde pensa que vai?!
  _Bem, tava pensando em comer algo.
  _Agora!? Mas estamos precisando de mesários ali!
  _Agora virou eleição!?
  _Ah, você entendeu, preciso de alguém naquela mesa dos gatos! Tem um cachorrinho que não para quieto!
  _E...?
  Lua me encarou como se eu fosse uma criança mimada. Acho que não tenho opção. 
  A mesa era baixa e eu tinha que me curvar se quisesse controlar o tal "cachorrinho". Aquela bola de pelos parecia uma estopa com patinhas, não parava por nada e já tinha beirado a caixa várias vezes, ficava por um fio de cair. Os gatos estavam indo embora  bem fácil, mas esse cachorro e uma gatinha preta, que parecia se camuflar no fundo da caixa estavam ficando para trás. Peguei aquela bolinha de pêlos e deitei no braço como se faz com um bebê, depois comecei a coçar a barriga, ele se acalmou fácil, apenas agitava as patinhas, que eram grandes pelo tamanho dele. Quem eu quero enganar? Eu amo esses bichinhos! Segui dedilhando aquela barriguinha, até me dar conta de um par de olhos grandes me encarando. Levantei o olhar.
Lá estava a dona dos olhos, uma garota negra e esguia de cabelos cacheados amarrados em um rabo de cavalo alto, as pernas longas e brilhosas quase não eram tampadas por uma mini saia rosa que fazia conjunto com um cropped branco. Ela estava hipnotizada, mais um pouco e ela iria babar no cachorro. Quando viu que fora notada, arrumou a postura e despejou em mim um olhar altivo. Caminhou cheia de desdém  e cruzou os braços. Acho que essa garota assistiu muito "Meninas malvadas":
   _Todos os bichos estão para doação?_Ela ainda fitava o cachorro. Parecia que conversava com ele, não comigo.
   _Estão sim! _Sorri. _ Inclusive esse no meu colo.
   _Ele... é uma gracinha. _Cuidado moça, não se esforce de mais! Sabemos que seu nível de simpatia está baixo hoje.
   _Pois é! E olha, ele combina bem com você!
   _Você acha!? _Seus olhos voltaram a brilhar na minha direção. Achei o ponto!
   _Claro! Olha só! Ele é pequeno e fofo! Não te conheço, mas se fosse te presentear agora, eu sem dúvidas te daria ele. Vamos, pode pegar!
  Estendi o filhote que estava consideravelmente mais calmo( o que já ajudava muito!) em sua direção. A moça o pegou com total cuidado, era difícil de imaginar que ela conseguia segurá-lo tão bem mesmo com unhas tão compridas. O bicho abria a boca de sono e se aninhava em seu colo como um bebê, eu via a hora que ela iria chorar, como pode um cachorro fazer isso!? Amor à primeira vista!? Estava tudo bem até que ela encolheu os ombros:
   _Mas, e meus pais!? Acho que eles não vão querer um bichinho agora... vai... crescer e bagunçar...
   _O quê!? Confia, ele não cresce muito!
   _Sério!? Qual a raça?
   _A... hm... eu não... eu não lembro agora o nome, mas... ele não cresce. Confia, moça. _ Não confia não,  eu gosto de cachorros, mas não sou especialista...
   _Tudo bem! Ah! Eu vou levaaar! _Ela dava pulinhos de alegria, bem dava pra ver que o cão era dela! Foram feitos um pro outro! Eu não poderia deixar um tamanho de um cachorro influenciar nisso... eu acho.
   _Aee! Agora é só passar ali e fazer o cartão dele! Sabe como é, colocar nome, pegar as vacinas e datas, por aí vai.
   _Hm, mas qual nome eu dou?!
   _Que tal Estopa? _Ouvindo isso ela encarou o cachorro e depois se voltou pra mim.
   _De onde tirou esse nome?
   _Ora, Estopa é um artigo de luxo. Sério que você não conhece? _Sorri de novo. Odeio mentir mas... eu quero muito que esses filhotes ganhem um lar pra eu poder ir ganhar um lanche, com muita fome!
   _Hm, não, mas gostei do som. Estopa... é!
   A moça desfilou até a mesa da papelada, me deixando a sós com a gatinha no fundo da caixa. Gabriela, que estava há um metro dalí finalmente decidiu me olhar :
   _Estopa é artigo de luxo, né ?
   _Claro.
   _Não tem vergonha de mentir assim!? _ Ela tentava não rir.
   _Qualé, foi por uma boa causa!
   _O lar dele já tava garantido, não precisava mentir sobre o nome!
   _Eu tava falando de mim. Quero comeeer.
   _Já está tarde mesmo, até escureceu. Bem, todo mundo tá com fome, mas falta essa._ Lua apontou pra gatinha de olhos arregalados no fundo da caixa. _Temos que doar todos. Escuta, se você achar um dono pra ela, eu pago o seu lanche, afinal, vai todo mundo comer junto.
  _Não precisa, obrigado.
  _Não foi um pedido. Aliás, se não quiser como recompensa pelo trabalho aqui, que seja então como pagamento pelo cartaz de divulgação que você fez!
  _Olha, eu ... _ Gabriela apontou para atrás de mim, haviam possíveis donas vindo. Essa era a sua deixa pra se afastar. _Faz o seu show, Senhor Sorriso.
   Um pedido é uma ordem, me virei para as recém chegadas e sorri, como sempre.
   Olhei para a gatinha e sussurrei: "Ei, vou te arranjar boas donas hoje".  As mulheres eram simpáticas e pareciam loucas por algum bichinho, mas pelo jeito a animação delas assustou a gata que quase furava a caixa de tanto se encurralar no canto. Toquei suas orelhas pontudas, talvez ajudasse. As mulheres percorriam caixa por caixa, infelizmente, todas vazias. Ergui a caixa que restava e mostrei a gatinha de olhos brilhantes:
  _Todos já foram adotados, mas pelo jeito vocês têm sorte, o destino deixou essa daqui!
  Uma delas quase se jogou em cima da caixa, pegou a filhote e já estava pra levá-la quando parou para analisar o que tinha nas mãos, nesse momento, se ela estivesse com uma ratazana no colo faria mais sentido. A mulher gritou e deixou a gata na caixa de novo, "deixar"é uma palavra bonita, se parar pra pensar ela quase jogou. Limpando as mãos ela se virou pra mim:
  _Credo! Realmente não tem outro!?
  _Não, algum problema?
  _É uma gata preta. PRETA. Esse bicho dá azar! Eu tô de cara que não percebi isso antes! Que nojo! Agora vou ter que arranjar algo pra me dar sorte!
  _ Espera, você fez essa cena por causa da cor do pêlo dela? _ Ela me olhava indiferente, como se fosse a dona da razão. Era ridículo. _Tá me zuando. É sério isso!? A cor!?
    _Claro! Toda preta! Sem nenhuma manchinha nem nada! Coisa boa não é!
   _Droga! Qual o seu... _Respira, não deixa a fome te tomar. ESPERA, FOME? Isso não é fome, essa mulher me irritou mesmo. Conseguiu! Parabéns, dona! _ Deixa eu ver se eu entendi. Você acha que a única causa desse bicho ser preto é por estar carregado de azar? Não tem nada de genética, só a forma mais pura de azar?
   Ela fez que "sim" com a cabeça e já estava se virando para ir quando eu a chamei de novo.
   _Moça! Ei! Só mais uma coisa! _Peguei a gata que tremia na caixa, levei até o rosto e a cheirei como se fosse uma flor, a flor mais preciosa. A mulher estava escandalizada. Eu vou confessar, só de ver aquele olhar de quem não estende nada... ah, aquilo já me deixava bem! Embalei a gatinha nos braços e sorri, talvez o sorriso mais bonito que já fiz. _Moça,  acho que essa gata tem azar mesmo, o azar de ter que lidar com gente como você. Mas não se preocupe, gatinha, eu prometi um bom dono pra você. _ Caminhei até a mesa da papelada._ Anota aí o nome do dono, Island Gabriel, "I-S-L-A-N-D" se escreve assim.
    O silêncio foi geral e as mulheres foram embora, não sem antes me chamar de todos os nomes ruins que elas conheciam. Eu não ligo. Não prestei atenção nem na metade deles.
A única coisa que importava agora, era arrumar um nome pra gatinha tremendo no meu colo. Aproximei-a do peito e carinhei suas orelhas, ela me fitou com olhos grandes e brilhantes, olhos enormes e luminosos no meio do breu de seu pêlo. Olhos como... estrelas.
   _Estrela. Esse é o nome dela. Estrela, a gata da sorte.
  Enquanto a menina dos papéis terminava de anotar, corri até o pet shop mais próximo, eu não tinha nada que um gato precisava.

Como Sol e LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora