~Passado~
Acho que esqueci de constar, mas o Internato, por mais que fosse como o inferno na terra, tinha uma coisa boa que era nos dar “passes livres” para a cidade que existia lá por perto. Os que fossem mais comportados podiam sair uma ou duas vezes por mês, dependia o quão puxa-saco e submisso você fosse, mas eu dificilmente conseguia esse privilégio por não conseguir ficar quieto e parado por sequer um dia. Mas raspar a cabeça do padre e me fuder muito por isso acabou me fazendo traçar um limite sobre as “brincadeiras aceitáveis” e surpreendentemente me deixou quieto por mais tempo do que realmente pareceu. Mas bem, não durou muito tempo.
No meu aniversário de 14 anos, Justin e uns outros amigos meus convenceram os coordenadores de que eu merecia um tempinho na cidade celebrando e comendo bolo, mas eu fui o último a saber sobre isso.
— Ou Chris. — Um dos meus amigos, acho que o nome era Mason, me chamou enquanto eu estava estudando na biblioteca. Ir pra lá depois da aula acabou virando um hábito meu, ajudava a expelir um pouco da minha energia exagerada. — Os inspetores tão te chamando lá na frente. A van pra cidade já vai sair, só tá faltando você.
— Van? Não me avisaram que a gente ia pra cidade hoje. — Eu ainda estava com a minha roupa de padre e os dormitórios ficavam do outro lado do Internato, então se eu já estivesse muito atrasado não ia ter como trocar de roupa.
— Ah, não, vai só você e os garotos. Achei que tinham te avisado, tão falando disso faz umas semanas. Inclusive, parabéns, é seu aniversário hoje não é?
— É sim… — Eu lembro de estar um pouco lisongeado e surpreso com aquilo. — Valeu aí, mas e você, não vem não?
— O Justin vai, então eu vou ficar por aqui mesmo. Mas me avisa se for em algum lugar sem ele, aí a gente vai junto.
Mason me deu um tapa no ombro e seguiu seu caminho, mas eu fiquei realmente confuso. Justin sempre tinha sido o cara mais simpático e interessante entre nós dois, então ver que até ele tinha inimigos me fez imaginar se eu não tinha uma imagem pior. Mas não pensei muito sobre isso na hora, eu estava atrasado e pensar não iria me ajudar a chegar mais cedo.
Fui correndo pra entrada do Internato. Quando entrei de roupa de padre no carro, Justin e os outros riram e zombaram da minha cara até passar do aceitável, mas eles acabaram esquecendo disso bem rápido e eu me senti um pouco menos ridículo.
Naquela época, Justin já tinha o seu famoso casaco jeans — que originalmente era de um garoto mais velho, já que as roupas normais no Internato eram passadas de mão em mão pros garotos mais novos — com um j na etiqueta, lembro que ele ficou no quarto por horas pichando e desenhando símbolos satânicos e fantasmas e escrevendo palavrões na roupa e sempre escondia a roupa debaixo do colchão para não verem.
De certa maneira combinava bastante com ele, o azul escuro do jeans dava um grande destaque pros seus cachinhos loiros e seus olhos claros como o céu, e o vermelho e preto de tinta naqueles desenhos sem sentido até que mostravam bastante o jeito que ele era e sua personalidade também. Consigo lembrar com clareza daquele dia, era ensolarado mas com um vento frio e a luz fazia o cabelo de Justin parecer dourado.
Conseguimos convencer um dos garotos a fingir desmaio e os inspetores se concentraram nele o bastante para sairmos nós 5 despercebidos. Fomos para uma rua sem muito movimento e Justin parou por um segundo para pegar uma moeda de 5 centavos perdida no asfalto e deu um grande risco de ponta a ponta em um carro esportivo cor anil que parecia mais caro que nossas próprias existências. Todos nós demos uma risada gostosa que nos mostrava como as crianças inconsequentes que éramos.
— Será que vai ser um prejuízo muito alto pro cara? — Justin perguntou “inocentemente”.
— É um carro esportivo, se ele pagou pelo carro dá pra pagar o conserto. — Outro garoto respondeu e o nosso quinteto riu em resposta.
— Quer fazer as honras no próximo carro caro que aparecer, Sr. Aniversariante? — Ele me estendeu a moeda e eu sorri em resposta e a peguei da mão dele.
— Se me permite..
E rasguei lentamente um conversível vermelho brilhante que parecia recém-comprado, o deixando com uma cicatriz profunda de parachoque a parachoque. No momento em que eu ia passar a moeda pra outra pessoa acabei ligando o alarme e todos nós saímos correndo pelas ruas desesperadamente.
Hoje em dia eu sei que fiz algo errado e que isso até é um delito, mas sempre vou considerar essa como uma das minhas melhores memórias. Eu não saí mais com aqueles caras, e essa vez em que rasgamos carros de desconhecidos na rua foi a primeira vez que eu me senti como se não fosse escória. Eu sempre vivia inconformado, rodopiando ao redor do fato de que minha mãe e família tinham me deixado no Internato como se eu estivesse lá para ser esquecido, que eu estava abandonado, mas naquela tarde eu me sentia como se tivesse sido acolhido. Acolhido pela asa de anjos perversos que não me deixariam mais em paz.
Quando menos percebemos, tínhamos voltado para a rua da van e fingimos que só tínhamos dado uma volta pelo quarteirão. Os dois inspetores não fizeram queixa nenhuma, só deram de ombros e ficaram nos esperando na frente de uma cafeteria arrumadinha para comemorarmos um pouco meu aniversário. Os garotos juntaram seu dinheiro escasso pra rachar um bolo baratinho sem recheio que estava escrito “Melhoras, sogra” no topo. Como eu não tinha como pagá-los de volta, não comentei sobre como era feio e tinha cheiro de geladeira.
Comemos e conversamos animadamente sobre inutilidades, tudo parecia perfeito até que um grupo de garotas que já estavam lá antes de nós se aproximou. Eram três garotas de roupas tão parecidas que pareciam iguais, tinham cabelos escuros e tinham pose de alguém que tem muito dinheiro. Nada em nenhuma delas me chamava atenção além do fato de que elas pareciam ter uns 18 anos ou mais quando nós claramente parecíamos ter acabado de entrar na puberdade.
— Desculpa atrapalhar a conversa, garotos, mas a gente pode conversar um pouquinho com o loirinho de jaqueta jeans? — A garota do meio do grupo perguntou.
— Eu?
Justin apontou para si e elas concerdaram com a cabeça ao mesmo tempo. Era óbvio que era, só ele tinha cabelo loiro entre nós. Eu lembro que aquilo, aquele exato momento foi como um choque pra mim. As coisas pareciam que tinham desacelerado, não fazia sentido e tava indo pra um caminho que eu não queria. Como se eu pudesse tomar as rédeas das coisas fora do meu alcance.
— Ei, calma aí, ele tá com a gente. — Olhares de desaprovação baixaram sobre mim no momento em que eu terminei a frase. — Deixa ele aí, ninguém chamou vocês aqui.
— Será que o seu amiguinho padre pode calar a boquinha por um momentinho? A gente avisa quando a conversa chegar no convento. — Uma menina do canto falou, e eu só consegui abaixar a cabeça em vergonha enquanto as outras garotas riram da minha cara.
Eu baixei meus olhos pra minha batina preta e me senti humilhado. Queria fazer elas engolirem suas palavras, mas não é como se isso fosse mudar alguma coisa. Eu e os outros garotos ficamos em um silêncio desconfortável enquanto as garotas levavam o Justin pros fundos da loja, e quando ele voltou com a roupa meio amarrotada e cara de alguém que tinha curtido muito o que quer que tenha acontecido. Os outros garotos fizeram perguntas e piadas durante todo o caminho de volta pro Internato, mas eu continuei em silêncio e infelizmente Justin notou.
✭omds atualização dois dias seguidos?? seria isso um milagre??
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❦ᴍᴇᴀɴ ᴀɴɢᴇʟꜱ❦ [HIATUS]
Teen FictionNo final das contas, é isso que amaldiçoava a vida de Christopher - ou melhor, são eles. Os anjos ruins. Os rudes e rebeldes, que cospem na sua comida e riscam seu carro recém comprado, ou os gentis e católicos, que tem olhos inocentes e praticam au...