Me prometeram: esse livro vai desgraçar a sua mente.
No início não quis ler o livro, histórias de detetives investigando assassinato ou literatura de viagem não me interessam muito. Como o livro aparentava ser uma mistura de thriller e romance de viagem, não me conquistou de cara. Mas a capa, o título e a promessa de que era um livro surpreendente me convenceram a comprá-lo.
O encontrei na TAGLIVRO, um clube de assinaturas de livros que realiza uma curadoria de títulos interessantes ao redor do mundo. Fiz o pedido de um Box contendo o livro, uma revistinha abordando fatos curiosos do trabalho da autora e alguns artigos interessantes e voltados para a experiência antes e após a leitura. Veio também uma marca texto, uma capa/luva para o livro e um pacotinho contendo 3 amostras de café. Achei legal o kit.
Vamos a sinopse contida na contracapa do livro:
"Valentine desapareceu. Filha de uma família abastada porém disfuncional, ela some no caminho da escola e deixa todos desesperados. A jovem detetive Luce Toledo é contratada para encontrar a adolescente, e pede ajuda a sua amiga mais experiente no ramo, a Hiena. Juntas, as duas começarão um périplo vertiginoso.
A busca as leva de Paris a Barcelona, em uma viagem na qual encontram um mosaico de personagens que tiveram algum contato com Valentine. Um submundo sombrio é descortinado, expondo os desejos e os medos da juventude de uma geração."
A história parece simples e começa sendo narrada pela personagem de Lucie, uma mulher com 30 anos e meia perdida na vida, ela trabalha vigiando adolescentes e fazendo relatórios disso. Ela narra a partir do momento que perde uma garota de vista e precisa dar parte disso ao seu chefe e a avó de valentine. A partir daí, cada personagem ganha seu próprio capítulo e a narração passa a ter o tom e consciência do personagem a quem o capítulo é dedicado, mostrando a vida, pensamento e desejos desse personagem.
Achei muito talentosa a forma como a escritora dá voz a diferentes personagens, deixando cada narração de capítulo voltada para aquela pessoa, inclusive a cadência do texto. É muito sensível às mudanças de pontos de vista, o que deixa a escritora como uma bruxa capaz de trazer à tona o âmago daquele personagem a cada novo capítulo. Sem poupar o que há de mais polêmico nos pensamentos daquele indivíduo, como misoginia e desprezo racial ou de classe.
Uma das personagens mais interessantes sem dúvida é Hiena, uma mulher forte, lésbica, brutal. Capaz de reconhecer a verdade e mentira nos outros e possuidora de um grande talento para obter informações nem que seja a base da força. De acordo com a revistinha da TAG, que conta um pouco sobre a escritora, a Hiena parece ser a porta-voz de Virgine Despentes. Essa autora francesa possui uma história de vida muito peculiar. Sempre que leio sobre escritores atuais, eles são jornalistas ou possuem carreira acadêmica ao qual começaram se formando em Letras. Despentes, na mão inversa, já trabalhou como empregada doméstica, prostituta, resenhista de filmes pornô. O que a torna uma pessoa polêmica e o melhor: sem medo de trazer esses elementos polêmicos para seus livros.
Virginie Despentes hoje é escritora e cineasta, seu livro Apocalipse Bebê foi lançado em 2010 e ganhou um prêmio na França, o Renaudot. Desse modo, podemos ver que ela é um nome importante entre os autores franceses e aborda temas atuais e políticos em meio a uma crítica contra a sociedade e suas réguas morais.
O que falar da personagem mais relevante desse livro, Valentine? Me simpatizei no início, principalmente em como descobriram o quanto ela ia de um lado para outro atrás de um lugar seu, de um grupo para fazer parte, estava atrás de aceitação e pertencimento. Fazia péssimas escolhas. Uma ninfomaníaca prepotente e cheia de ódio pela família e pelo mundo. Uma garota tanto vítima quanto agente consciente do caos.
O que mais gostei do livro são os personagens majoritariamente femininos. O modo como tudo é apresentado sem pudor. Apesar de que me incomodou a hipersexualidade que permeia todo o livro, mas de algum modo, até isso achei necessário. É bom quando descortinam um mundo que você nunca pensou que existiria. Gostei das frases curtas e de alto impacto. O final cai como uma bomba em nossas cabeças e nos vemos desorientados com as consequências que caem sobre os personagens, afinal, esse livro até poucas folhas atrás nos fez rir e folheá-lo com leveza, até nos encaminhar despretensiosamente para um final ácido.
Após o fim da leitura fiquei a noite sem dormir direito. Tive sonhos desconexos, acordei com a trama na cabeça, fui comprar pão pensando em Valentine, e passei muito tempo ao longo do dia repassando na minha mente o que aconteceu com os personagens. Esse livro foi tão pertubador quanto necessário. Eu nunca fui uma alienada dos problemas do mundo, mas esse livro alugou um edifício inteiro na minha cabeça e me fez pensar muito sobre como vivemos nesse mundo, como somos divididos principalmente entre ricos e pobres, divididos entre aqueles que tem o poder, aqueles que obedecem e aqueles que acham que estão fazendo alguma coisa por mudanças.
Vamos às frases que mais gostei no livro. Elas mostram um pouco sobre as críticas sociais que são tecidas sabiamente nessa história.
"As crianças são os vetores autorizados da sociopatia dos pais. Os adultos resmungam, fazendo cara de incomodados com a vitalidade destrutiva dos pequenos, mas se vê bem que eles gostam de enfim poder mandar o mundo à merda, com toda a impunidade, por meio de sua prole. Que ódio pelo mundo é esse que os levou a se reproduzir tanto?"
" Não somos nada além de inquilinos quando estamos felizes em algum lugar. Sempre sob a iminência de um despejo".
"Ela era cheia de babaquice de francesa que se acha emancipada. Como se a liberdade viesse do fato de poder ser enrabada como uma puta por um cara que não quer nem saber dela depois que ela se vestiu de novo."
"...ela escolheu contar a si mesma uma história na qual consegue acreditar, porque nunca saberá a verdade."
"Pensei que estava morrendo em prol de ideias, mas estava matando por um barril de petróleo".
Creio que nada é mais subversivo, mais revolucionário e libertador do que compreender que as pessoas não são o que aparentam ser, o que dizem ser e às vezes nem o que de fato fazem de sua vida. Elas são mais profundas do que nossa compreensão consegue prever. Só a gente não vê o nosso próprio ponto fraco, onde mora a nossa vulnerabilidade, os outros reconhecem com facilidade, alguns de forma profissional. Por isso as manipulações são frequentes, por exemplo, quem é bom não acredita que alguém é capaz de ser mal - utilizando essa ideia dualismo bem/mal que raramente existe para exemplificar nosso ponto cego. Faz parte da nossa potência como humanos reconhecer a potência do outro, e a potencialidade do ódio, da violência e do medo. Não podemos desprezar aquilo no outro que não somos capazes de fazer. Enfim, é isso que o livro despertou em mim. Eu recomendo esse livro, me fez refletir muito e espero que te faça ir bem fundo na sua mente também.
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DIÁRIO DE UMA ESCRITORA
HumorSer escritor é para guerreiros mentais que precisam diariamente lutar em mundos inventados e vencer batalhas indescritíveis para que uma história possa nascer. Isso requer muita disciplina, afinal, há projeto mais longo e imersivo do que escrever um...