Emma's Pov
Ineffable (adj.) : Incrível demais para ser expresso em palavras.
Eu já não sentia a minha mão. Durante a semana inteira havia passado todo o meu tempo livre fazendo réplicas do desenho que Jenna havia me ordenado que fizesse, caso quisesse permanecer em sua turma.
Na terça feira, assim que chegara da aula do professor Newton, havia feito o trabalho que o próprio nos dissera para fazer e depois de duas horas trabalhando no resumo crítico de um artigo a respeito da obra de Piet Mondrian, comecei a fazer o primeiro desenho de cem.
Já eram quase uma hora da manhã quando terminei o primeiro desenho. No início eu achara que meus traços sairiam retíssimos, exatamente como os do desenho que havia me sido entregue, mas o resultado final estava horroroso. Nem se aproximava do desenho original, muito embora eu devesse reconhecer que eu havia feito de certa forma um bom trabalho, não era, nem de longe, um trabalho excepcional como o que eu tinha em mãos e alguma coisa dentro de mim me dizia que se eu não entregasse desenhos perfeitos para a professora Ortega, seria penalizada por isso de alguma forma. Àquela altura eu já não sabia mais o que esperar dela, mas era previsível que coisas boas nunca seriam.
No sábado daquela mesma semana, trinta e oito desenhos depois, com a mão direita ardendo de dor nos músculos e no pulso, com uma bolsa de gelo quase que constantemente sendo colocada em minha mão e um leve desespero por achar que, definitivamente, não conseguiria acabar os cem desenhos até a aula de terça feira, eu me encontrava debruçada em minha prancheta, dentro do dormitório, com a mão enrolada em um pano gelado, com lágrimas nos olhos, pensando em desistir da vida e de tudo, acompanhada por Sofia que desde a terça feira decidira que ficaria acordada comigo para não me deixar sozinha e que naquele momento estava deitada em sua cama resolvendo os cinquenta exercícios de matemática aplicada que o professor Solomon havia nos passado para entregar na segunda feira.
- Você deveria ir reclamar com o coordenador, Ma. Eu sei que não quer, mas eu ainda acho que resolveria alguma coisa. - Sofia falou, pela milésima vez.
Levantei a cabeça e olhei para ela.
- É sério Ma, eu vou com você. E se quiser, podemos chamar Mikey, tenho certeza que ela vai também. - Ela disse, tirando os óculos do rosto e colocando-os na cama.
- Não, Sofi. - respondi, sem me dar ao trabalho de explicar de novo o motivo.
Já havíamos tido aquela conversa muito mais que dez vezes. Eu não iria reclamar da professora Ortega para o coordenador. Ele até poderia resolver a questão dos cem desenhos e me dispensar daquilo, mas só pioraria o fato de que ela me perseguiria ainda mais nas aulas. Além do fato de que, no fundo, eu achava que ele não faria realmente nada, porque ela era professora e tinha total autonomia para avaliar os alunos como bem entendesse durante as aulas. Talvez houvesse um pouco de orgulho da minha parte em não querer fracassar... Talvez.
- Tudo bem, tudo bem, mas pelo menos dê um tempo disso, você ainda não parou de desenhar desde terça feira. Mal dorme. - Sofia argumentou, tentando me convencer, outra vez a parar de desenhar feito uma louca.
- Se eu não continuar, não vou conseguir acabar. - Disse simplesmente, desenrolando a toalha gelada de minha mão e em seguida, secando-a com uma toalha seca.
- Você é uma teimosa. - Sofia bufou, largando a lista de exercícios do professor Solomon em cima de sua cama e caminhando até mim, parando exatamente às minhas costas. - Nossa, isso tá incrível! - falou, olhando para o meu desenho.
- Mas não tão incrível quanto isso. - Apontei para o desenho que eu estava reproduzindo.
Sofia revirou os olhos.
- Está incrível à sua maneira. - Ela argumentou.- Precisa ficar incrível à esta maneira. - Eu retruquei.
- Você é uma chata, Myers. - Ela falou, rindo e me deu um beijo no alto da cabeça. - Vou fazer um lanche, você precisa comer se não daqui a pouco vai ficar tão magra quanto é branca e aí sim teríamos um grande problema.
- Ei! Eu não sou tão branca assim. - resmunguei, pegando a lapiseira novamente.
Sofia já se afastava em direção à cozinha e só deu uma gargalhada alta.
No decorrer daquela semana, Sofia se mostrara uma pessoa ainda melhor do que eu já a havia julgado. Se preocupava com minhas refeições, preocupando-se em preparar ela mesma, porque sabia que eu não comeria se fosse depender de mim. Estava concentrada demais em acabar os desenhos. Além de tudo, ficava acordada até mais tarde junto comigo, para que eu não me sentisse sozinha. Fazia meus trabalhos das outras matérias, que não eram poucos e de hora em hora me obrigava a fazer uma pausa de dez minutos para colocar gelo na mão. Uma das razões para eu não ter desistido, com certeza era Sofia e seu zelo comigo. Havíamos criado uma conexão instantânea, que só se aprofundava mais e mais do decorrer dos dias. Em duas semanas, eu já não me lembrava mais de como era a vida sem a presença dela. Quando uma pessoa parece sempre ter estado lá, quando você não se lembra mais dos seus dias sem a presença dela, quando até as suas memórias insistem em colocar aquela pessoa em situações que ela não estava, quando suas emoções se tornam tão ligadas àquela pessoa que todas as suas lembranças de emoções também se conectam à ela, é assim que a gente sabe quando encontrou alguém que vai ficar na nossa vida para sempre. E era exatamente assim que eu me sentia em relação a Sofia Wylie.
- Eu não entendo por que ela age dessa forma. Em um momento ela é totalmente adorável e digna de toda a admiração que eu tinha por ela e no outro é uma víbora horripilante e sem coração. - pensei em voz alta enquanto voltava a desenhar o trinta e nove.
- Talvez ela seja lésbica, como Mikey disse e está fazendo tudo isso porque acha você perturbadoramente linda e no final das contas só quer irritar você pra te dar uns pegas no elevador da HGSD. - Sofia falou, fazendo um movimento obsceno quando mencionou a parte em que Jenna queria me agarrar no elevador.
Fiz uma careta instantânea para a ideia, mas a verdade é que minha mente imaginativa projetou aquela cena na minha cabeça e os meus pensamentos a respeito daquilo foram completamente embaraçosos.
- Você e Mikey tem uma mente muito fértil. Ela nem tem jeito de lésbica. Não sei de onde tiraram isso. De qualquer forma... - fiz uma pausa, colocando a lapiseira na boca, enquanto apagava um traço errado. - Não importa se ela for lésbica porque EU não sou.
- Tem certeza? - Sofia perguntou naturalmente enquanto passava geléia de morango em duas fatias de pão. Levantei a sobrancelha, olhando para ela, duvidando de que ela realmente havia me feito aquela pergunta. Ela levantou as mãos em posição de defesa e riu. - Você também duvidaria de si própria se visse a cor das suas bochechas quando mencionei ela agarrando você no elevador.
Revirei os olhos.
- Qualquer pessoa sentiria vergonha ao ouvir uma coisa dessas, Sofia. - Argumentei, embora eu mesma duvidasse de mim.
- Eu não. - Ela falou, convicta de sua resposta.
"Mas eu sim e nem por isso sou lésbica", pensei comigo mesma. Quer dizer, eu nunca havia beijado uma mulher e nem havia olhado para uma mulher pensando em casar com ela ou algo assim. Eu só admirava muitas mulheres, mas não porque as queria de uma forma romântica e sim porque queria, de alguma forma, absorver um pouco delas, porque as admirava como pessoas, compartilhava de suas ideias... Isso não significava que eu era lésbica, definitivamente não.
- Mas você é um caso diferente. - respondi, já usando um tom brincalhão, para começar a cortar o assunto.
- Tá, vamos conversar sobre isso. - Ela disse, trazendo um prato com dois sanduíches de geleia de morango para cada uma e o colocou em cima de sua cama, chamando-me até lá.
Minha resposta não havia surtido o efeito que eu gostaria ou simplesmente Sofia havia ignorado meu sinal de que não queria dar continuidade ao assunto, porque ela queria mesmo falar sobre aquilo. Suspirei e desci da banqueta da prancheta para ir até a cama com ela.
- Não tem o que conversar, Sofi. - Peguei um dos sanduíches e antes de morder completei a frase. - Eu não sou lésbica. Aliás, eu nem sei de onde você tirou essa ideia.
- Tá, tá... Mas como você tem tanta certeza que não é lésbica? - Ela perguntou, cruzando as pernas em cima de sua cama.
- Ah... - acabei de mastigar e engoli antes de responder. - Eu simplesmente sei, ora.
- Tá, mas como sabe? - Sofia insistiu, falando de boca cheia.
- Não sei! Eu só sei que não sou. Eu nunca me apaixonei por uma garota, nunca nem olhei mulheres com vontade de beijá-las ou algo assim.
- Nem a Lana Del Rey? - ela perguntou, instigando-me.
- O que ela tem a ver com isso? Ela é minha ídola, todo mundo quer beijar sua ídola. - Me defendi.
- Eu não quero beijar a Beyoncé. Isso não significa que eu não beijaria, mas eu não sinto vontade. Falando sinceramente, você não sente vontade de beijar a Lana? - ela perguntou, fazendo-me sentir segura para falar do assunto com ela.
- Não exatamente. Mas de qualquer forma, não conta. - Não neguei, nem assumi.
Não podia negar que a ideia de ter um romance com Lana Del Rey era muito atraente e excitante na minha cabeça, mas era exclusivamente porque ela era um gênio da música e qualquer mulher hétero desse mundo cederia à ideia de ter um romance com ela.
- Claro que conta. O fato de você nunca ter tido vontade de ficar com uma mulher por motivos "físicos", tipo a beleza, etc... Não significa que você não se sinta atraída por mulheres. Por exemplo, quem chamou mais a sua atenção nessas duas semanas em Harvard, Matt ou Jenna Ortega? - Ela perguntou enquanto prendia o cabelo.
Como Sofia conseguia discutir aquilo com tanta tranquilidade? Aquele assunto era extremamente incômodo para mim. Eu não era lésbica. Pra que ficar discutindo sobre isso?
- Jenna, mas só porque...
- Viu? Sua atenção é despertada mais intensamente por mulheres. - Ela mordeu mais um pedaço de seu sanduíche e fez sinal para que eu fizesse o mesmo com o meu, que eu já havia esquecido. Assim o fiz. - E nem adianta dizer que é porque ela está sendo estúpida com você porque durante a primeira semana de aulas, depois da terça feira com a primeira aula dela, você só conseguia falar sobre o quanto ela era incrível e repetiu tantas vezes a sua conversa com ela quando foi buscar os seus livros na HGSD que eu mesma já decorei. Uma garota hétero estaria pouco se importando para o fato de o pulso da professora Ortega ser fino e bonito ou para o fato de o relógio dela combinar com o pulso e muito menos iria reparar na tatuagem que ela esconde debaixo do anel. Eu, por exemplo, nunca teria visto se você não tivesse repetido mil vezes.
O pedaço de sanduíche que eu havia engolido ficou entalado na minha garganta enquanto eu ouvia as coisas que Sofia falava. Cada palavra estava sendo jogada sobre mim como um tijolo bem no meio do meu rosto.
- É só admiração pelo que ela é. - tentei me defender mais uma vez.
- Nem vem, Ma. Eu também admiro muito ela, fico babando nas roupas dela, ficou louca com as combinações maravilhosas que ela faz mas nem chego perto de analisar ela tão profundamente quanto você. Quer dizer, eu não estou dizendo que você está a fim da professora Ortega, mas eu acho que você deveria pensar sobre isso. Pode responder suas perguntas sobre o por que de nenhum garoto mexer tanto assim com você...
Deixei o sanduíche no prato, sentindo-me muito bagunçada para conseguir comer ou para conseguir falar qualquer coisa. Suspirei e olhei para baixo.
- Oh, Emma... Me perdoe, eu não queria ter ido longe demais no assunto e de repente nem é isso, eu só estava tentando explorar as possibilidades e... - Sofia começou a tagarelar, desculpando-se, quando percebeu que o assunto havia me atingido de alguma forma.
Eu não estava chateada pelas coisas que ela havia me dito. Eu estava confusa. Tudo o que Sofia me dissera fazia todo sentido e ao mesmo tempo me parecia completamente surreal. Eu não era lésbica. Não havia jeito de aquilo se encaixar na minha personalidade. Definitivamente, não. Mas, por que os argumentos de Sofia faziam tanto sentido? Por que suas palavras explicavam tudo o que eu sentia de uma maneira tão clara?
- Está tudo bem, Sofi. Você só me deixou... pensativa. - Eu disse, levantando de sua cama.
- Por favor, não fique chateada comigo! - ela exclamou em um tom que me deu vontade de correr para abraçá-la e foi quase isso o que fiz.
Andei até ela e lhe dei um abraço.
- Não estou chateada! Prometo! - beijei sua bochecha. - Eu só preciso de um momento sozinha, preciso pensar sobre isso.
Ela acenou positivamente com a cabeça.
- Tudo bem, vou ficar calada e se você quiser conversar é só abrir a boca. Vou estar aqui do outro lado do quarto. - Ela respondeu, usando um tom, novamente calmo.
- Hummm... Na verdade, eu acho que vou dar uma volta. Vou aproveitar e levar o meu material de desenho e tentar desenhar na rua, com outros ares. Talvez eu funcione melhor ao ar livre. - Disse-lhe sorrindo.
- Você está chateada. - Ela fez bico, supondo que eu sairia porque estava chateada com ela.
- Garanto que não! - Dei um beijo em sua testa e fui até a minha prancheta pegar o meu material.
- Vai voltar para o almoço? - Ela perguntou ainda com o mesmo tom tristonho.
- Eu ligo pra você e a gente se encontra no The Village, certo?
- Okay, vou esperar.
Coloquei tudo o que precisava dentro da mochila e saí.
Disse à Sofia que iria para a rua pensar, mas a verdade é que eu queria ir para o laboratório de pranchetas da HGSD, desenhar sem interferências e parar de pensar no assunto incômodo e descabido que ela havia insinuado.
Cambridge era uma cidadezinha muito charmosa. Não era atoa que Harvard estava ali. Ou não era atoa que Cambridge havia sido construída. Tudo ao redor era muito suave, muito calmo. As coisas pareciam se encaixar perfeitamente, tudo parecia ter estado ali desde sempre. Tudo parecia correto. Definitivamente, Cambridge era um completo acerto arquitetônico.
Tomei um caminho diferente até a HGSD, um caminho mais longo e livrei a minha mente de todos os pensamentos incômodos para focar na composição arquitetônica daquele lugar. Era singelo, mas impressionante em sua singeleza. Até o cheiro de pão e café fresco que saia das padarias e corria pelas ruas parecia querer contribuir para que tudo a respeito daquelas ruas fosse agradável.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Wonderfall • Jemma
RomanceSe a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito. Os amores impossíveis são o caminho mais curto para alcançar o infinito e elas sabiam disso. Jenna queria alcançar o infinito. Emma queria ser o in...