Viver da arte: o artista sobrevive sem gravata?

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Teve um tempo em que eu tinha certeza sobre a segurança da trivialidade, uma ilusão que me fez escolher o comum ao fantástico sem perceber que mesmo a mais banal, a mais segura das vidas, poderia não dar certo; e que eu poderia falhar mesmo se escolhesse fazer aquilo que não queria fazer. Quando se descobre isso, percebe-se que não é tarde e que ainda se pode viver daquilo que se ama, que se pode viver da arte ou do que quer que seja.

Naquele tempo, eu me perdia em meio a advérbios (os quais descartei já no primeiro capítulo de um romance nunca publicado) e adjetivos, acreditando que eram o elemento estético essencial do texto, os catalizadores da subjetividade do leitor, o material necessário para a construção de múltiplas camadas de significado. Um escritor que nunca escreveu é assim, iludido. Mas é a ilusão que o conduz à revelação, a qual lhe permite perseguir o sonho de ser aquilo que sonha ser. Pois no mundo revelado, ao ser tocada pela consciência de uma realidade que existe e de outra que pode existir, a ilusão se torna o sonho que se persegue de olhos abertos.

Aquele escritor que fui diria que recentemente participei da seleção de candidatos ao cargo de escriturário do Banco do Brasil.  Hoje, depois de ter escrito mais textos sem publicação do que gosto de admitir, digo que participei do concurso do Banco do Brasil. Há algo profundo nessa escolha pela simplicidade, uma série de aprendizados que não podem ser revividos no espaço dessa crônica, mas que passam da dimensão do texto para a dimensão da vida, do mundo fictício para o real.

Bem, o fato é que estudei o quanto pude (como em outras vezes) e fiz a prova (como em outras vezes) e mesmo fazendo o melhor que pude, pode ser que não tenha dado certo (como em outras vezes). Mas dessa vez havia algo diferente, um sentimento que não sei nomear ou descrever, como aquele do sujeito que se vê cercado pela morte que o persegue. A verdade é que naquele momento, diferentemente de outros concursos de que participei, eu tinha pessoas com quem me importava e por isso me preocupava.

Entretanto, aprendi há muito tempo que há mais contradição nessa fração de humano que nos habita, do que de coerência - de fato, sinto que devemos temer os demasiadamente coerentes, aqueles que sabem em absoluto o que querem e como alcançá-lo, há neles mais de mecânico do que de orgânico - e a essa preocupação com o outro soma-se o mais puro dos egoísmos. Enquanto caminhava por aquela cidade coberta por câmeras e revestida por pedras, imaginando a vida de um bancário - que veste um terno tão barato que pênica ao sol, que usa tanto gel no cabelo que precisa verificar a toxicidade do produto, que oferece serviços desnecessários a um assalariado que acabará endividado, e que faz tudo isso porque ele próprio precisa comer - eu pensava que tudo que não queria era ser um bancário e me perguntava o que havia acontecido e porque estava naquele lugar.

O que aconteceu é o que sempre acontece: a vida. É como diz o meme, esse espaço da sabedoria popular, a vida é pagar boletos, e no tempo que não sobra você faz o que pode, e sim, algo de errado não está certo. Mas era isso, estava ali para poder aproveitar o tempo que não teria se obtivesse êxito na prova que não queria fazer para o cargo que não queria ocupar. Como se não fosse o bastante, ainda tive de parar em uma fila. A vida dá sinais muito claros de que estamos no caminho errado.

Quando penso sobre isso, sempre lembro de Clóvis e de Nietzsche e do pai de Clóvis: quando você encontra o motivo da felicidade o universo conspira para lhe fazer retroceder, mas não recue ante nenhum pretexto; isso é, pra trás nem pra ganhar impulso, porque sempre tem alguém querendo te foder. São palavras de inegável sabedoria, corroboradas pelo conhecimento popular e pela mais refinada filosofia. Mas o que é essa forçar que nos faz retroceder?

Hoje não posso dizer que seja outra que não a própria vida, a qual só começa depois de atendidas as necessidades da subsistência. É por isso que retroceder não é um ato de desistência, mas uma ação de resistência, uma escolha daqueles que sabem que os mortos não podem vencer a guerra. O artista trabalham duas vezes, uma pela vida e outra pelo sonho, eles já retiraram o véu da ilusão, mas o ideal permanece em suas realidades, para eles não há formula mágica, tudo é uma questão de tentativa e erro, de tentativa e erro, de tentativa e erro... até que venha o acerto. Viver da arte, ou do que quer seja o seu sonho, é viver como Stoic Mojic, é ser aquele que persiste, aquele que sempre volta a levantar, não importa o quão forte a vida o atinja.


Histórias desconexas de uma vida sem sentidoOnde histórias criam vida. Descubra agora