Uma visita à capital

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Olá, caro leitor, estive distante por alguns dias, tenho estado doente esse inverno, escreverei sobre isso, mas hoje não. Hoje quero falar sobre o dia em que estava ajudando meu irmão a montar uma mesa, digo que estava ajudando porque ele montava e eu alcançava parafusos e comentava alguma novidade do mundo dos quadrinhos. Uma função importante, mas pouco valorizada.

O caso é que minha função me rendia algum tempo extra e aproveitei para procurar uma lente que precisava e, contra todas as expectativas, a encontrei. Era uma lente analógica de quase 50 anos, em perfeitas condições e por quase nada. Senti-me obrigado a desconfiar, mesmo contra a minha vontade, mas pensei estar tudo bem quando vi que a vendedora era dentista e que estava vendendo o corpo de uma Nikon.

Alguns dentistas fazer macrofotografias de dentes. Não sei por que fazem isso, eu mal posso olhar para dentes e ossos e sangue... e fico feliz de nunca ter visto intestinos e órgãos internos, a não ser quando meu amigo Ventura e meu irmão fizeram uma endoscopia.

- Olha aqui - eles disseram e colocaram as fotos da parede do estômago e do esôfago na frente do meu rosto.

Perguntei se a lente estava disponível e em boas condições. A vendedora disse que sim e respondi que ficaria com ela. Eu teria que buscar a lente na capital. Não gosto de lá. Eu sou do interior e tenho certo receio de andar por aquelas ruas, lá tudo é grande e longe e eu não conheço ninguém e não conheço nenhum lugar e tenho medo de me perder. Eu me perco muito, tanto que chego a ficar feliz quando percebo não estar perdido.

Depois de insistir um pouco, consegui convencer meu irmão a descansar um pouco do projeto da mesa e me dar uma carona até a estação de trem - sim, minha cidade é atendida pelo transporte metropolitano, mas chamamos de trem. Levei comigo tudo o que precisava: a mochila, o celular, uma garrafa com água e um livro.

- Esqueci de memorizar o caminho - eu disse no caminho para a estação.

- Vai memorizando no trem - meu irmão respondeu.

- Boa ideia - respondi triste por não poder ler meu livro.

Consegui pegar o trem assim que cheguei na estação, escolhi um lugar, peguei meu celular e abri o mapa. Antes que pudesse começar a lê-lo pulou na tela o aviso de 15% de bateria. É aqui que a trama se complica. Não poderia memorizar o mapa e também não queria adiar a viagem, então guardei o celular no bolso do moletom e abri meu livro de Raymond Chandler, A longa noite, fazia dias que queria iniciar a leitura e me faltava a oportunidade.

A vida é assim, as vezes tudo o que nos cabe é a perpectiva.

O trem seguiu vazio até o Mercado Público, onde desembarquei e vi, através da pele de vidro que reveste a estação, que uma garoa atingia a cidade e que a chuva não tardaria, mas eram apenas quinze minutos de caminhada, trinta se contasse ida e volta e quarenta se considerasse o tempo em que estaria perdido ou pensando estar perdido.

"Poso estar de voltar antes que a chuva começasse", pensei.

Apanhei o celular para verificar o mapa e vi que estava programado para guiar um automóvel, não um pedestre, e acredito profundamente que eu seja um pedestre. Mudei a configuração e os quinze minutos passaram para cinquenta, os trinta para cem e os quarenta para cento e vinte.

Pensei, "caceta".

Mas eu já estava ali e não iria voltar, agora era caminhar dez quilômetros a baixo de chuva e ficar doente outra vez. Não bastasse isso, meu celular tinha apenas treze por cento de bateria e eu teria que manter o GPS ligado. Mas eu sabia chegar até a Santa Casa, que era caminho - ou eu acreditava que era caminho - depois eu teria que dobrar à direita, mas não tinha certeza do local, então, planejei ligar o GPS apenas quando chegasse à Santa Casa, e foi o que fiz.

Histórias desconexas de uma vida sem sentidoOnde histórias criam vida. Descubra agora