Os viciados em autoajuda, apaixonados pela liderança e encantados por uma ideia de meritocracia já ouviram histórias sobre os tubarões. É uma figura constante no imaginário daqueles que se veem como predadores da humanidade. Dizem que eles - os tubarões, não os amadores - morrem se pararem de nadar.
Não sei por que isso acontece ou mesmo se isso é verdade, e não me importo em sabê-lo. Não é relevante saber se o tubarão morre ou não morre quando para de nadar, o que importa é que esse tubarão fictício de que se fala morre quando para de nadar e eu, que não sou fictício nem tubarão, parei de nadar e morri e sei que morri porque nesse tempo não escrevi.
Penso logo existo, disse um desocupado; escrevo logo existo, disse um sonhador; posto logo existo, disse um sábio.
Acredito que o valor das histórias tenham maior relação com o leitor do que com o escritor. Não há um consenso sobre isso, escritores e artistas desejam controlar suas criações mesmo depois de abandoná-las. Na verdade, eles anseia controla-las mesmo depois da morte. É uma espécie de complexo de deus que afeta todo criador, mas do qual busco escapar.
Estive doente por algumas semanas - talvez você tenha notado minha ausência - e cansado por outras mais, e nesse período não escrevi, em vez disso, fiquei sentado no sofá assistindo a algum filme holliwoodiano povoado por celebridade e de qualidade duvidosa. Foi em um desses dias, durante algum desses filmes, que Jodorowsky bateu à minha porta.
Fazia tempo que não o via. Ele não responde mensagens, não atende telefone e anda tão rápido que é difícil de acompanhar.
- Sente-se - eu disse, mas ele não sentou.
- Não tenho tempo pra isso - respondeu.
- O que aconteceu?
- Me disseram que estava doente e te trouxe um Pastel de Choclo.
Quando ele disse isso eu fiquei um pouco confuso, não sabia o que era choclo, mas vi que não era chocolate e que aquilo não era pastel. É o tipo de coisa que o Jodorowsky faz, primeiro ele te deixa confuso e depois vai embora.
- Que porcaria é essa? - perguntou olhando para a televisão enquanto largava o pastel sobre a mesa de cabeceira.
- Não sei - eu sabia, mas tinha vergonha de dizer - parece que está fazendo sucesso.
- Um pássaro que nasce na gaiola pensa que voar é uma doença.
- O que quer dizer?
- Não sei. Há um abismo entre o que penso e entre o que quero dizer e o que efetivamente digo, assim como entre o que você ouve e o que quer ouvir e o que pensa ter entendido.
- O que?
- Preciso ir - ele disse, e bate a porta antes que eu me levantasse.
O Jodorowsky é assim, ele vem e trás um presente e fica um pouco, depois te deixa confuso e vai embora, e você fica pensando sobre as coisas que ele disse e que ele queria dizer e que ele poderia ter pensado. E também pensa sobre o que você ouviu e o que queria ter ouvido e o que entendeu daquilo tudo, ou pensa ter entendido.
O que quero dizer é que não podemos controlar o significado de uma pequena frase ou mesmo de uma palavra, então, como poderíamos fazê-lo com toda uma história? Com uma personagem que ganha vida diante do leitor? Com um mundo que passa a existir, mesmo que por um instante, mesmo que por um segundo, apenas enquanto o livro está aberto?
É verdade que não morri de todo, nesse tempo ainda fotografei e editei vídeos e imagens, e sobrou alguma energia para ler uma e outra frase... mas isso é pouco. Uma parte de mim estava morta e, talvez, ainda esteja e tenha sido substituída por uma peça nova que me permite voltar a esse exercício, o qual, diferentemente do que se pode imaginar, consome todas as energias.
E, claro, comi o pastel, que era um bolo e que não tinha chocolate.
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Histórias desconexas de uma vida sem sentido
Não FicçãoCrônicas semanais sobre a vida, os pensamentos e as observações de um escritor quase alcoólatra, quase deprimido e quase bom que tenta encontrar na literatura um pouco de paz mas só produz desilusão. Cada crônica compõe um capítulo e todos os textos...