Quando um cronista não tem sobre o que escrever ele escreve sobre a falta de ideias para escrever, João Ubaldo Ribeiro, se não me falha a memória, se orgulhava de nunca ter recorrido a esse recurso quase que artificial e um tanto quanto metalinguístico da escrita. Mas a verdade é que isso me entristece. Acredito que tudo o que um escritor faz é escrever sobre a própria escrita, não sobre o trabalho daqueles que referencia, idolatra ou imita; não sobre as personagens que cria ou os mundos que imagina; não sobre os problemas que o perturbam ou os sentimentos que o cercam; mas sobre o próprio trabalho, sobre a própria escrita. Por isso gostaria de ler esse texto que Ubaldo Ribeiro nunca escreveu da mesma forma que gostaria de ler um romance de Borges.
Mas não é sobre a falta de inspiração que quero escrever, também não é sobre o que Ubaldo Ribeiro e Borges escreveram e, embora belos trabalhos tenham sido construído a partir de ausências, também não me debruço sobre aquilo que eles não escreveram. Sobre esse triste e divertido espaço do vazio creio ser mais apropriado avançar sob a bandeira da ficção e embora meus relatos tenham um tanto de mentira e outro tanto de invenção, todos eles servem à verdade.
Há três tipos de escritores, o primeiro busca o riso, ele conseguem ver além da realidade, é aquele cujas histórias nos fascinam e cujas personagens nos encantam, é aquele que nos transporta desse para um mundo de felicidades; o segundo tipo é mais fechado, sério e realista, ele não vê além porque se detém no próprio mundo, e dele captura aquilo que lhe parece mais aparente, o sofrimento, a injustiça e a tristeza, ou uma beleza que nunca se revela; o terceiro tipo não busca trazer felicidade ao mundo ou tornar aparente o mal naturalizado, também não busca ver a beleza que torna a vida suportável, mas simplesmente reclamar daquilo que o angustia e trazer ao leitor os problemas que não pode resolver, e o faz com uma risada doentia de quem conhece uma piada que não foi ouvida.
Não tenho certeza de que tipo sou, mas vim trazer ao leitor uma pequena angústia pessoal que em nada lhe importa e da qual não tomará nenhum proveito.
Estive doente e quase não escrevi esse texto, que gosto de chamar de coluna, e é sobre isso que quero falar, sobre quase não tê-lo escrito ou sobre tê-lo escrito e talvez se diga que não há diferença quando comparado ao tema da falta de inspiração, mas não consigo ver nenhuma semelhança entre eles.
Sinto que doente eu perco o controle sobre o texto e que ele se torna um fruto da máquina social que nos captura ou da doença que me aprisiona, e com elas se torna robótico ou enfermo, e de um jeito ou de outros: despido de vida e de significado. Gosto de escrever com a mente suficientemente clara, ou claramente turva. Não quero dar voz à doença, é pela mesma razão que não escrevo sob a influência da tristeza, da amargura, do medo, da indiferença, da ansiedade, do ódio, da ignorância... pois no final do dia não desejo ter produzido um trabalho virtuoso, mas desejo ter tocado a virtude em uma de suas infinitas formas.
Entretanto, comecei esse exercício de escrita a poucos dias e seria terrível deixar que uma semana se passasse sem cumpri-lo, talvez até vergonhoso ou vexatório, a final de contas, o que um escritor faz além de escrever? Bukowsky certa vez disse que não escrevia porque gostava, eles escrevia porque precisava escrever, era um reflexo de sobrevivência, como respirar, comer e dormir; e ele o faria mesmo que não fosse publicado, mesmo que não fosse lido.
Não aprecio os trabalhos de Bukowsky, é uma opinião impopular mas verdadeira, e acredito que não os goste por gostar demasiadamente de Rubem Fonseca, que escrevia com acidez semelhante, a partir de personagens parecidos, com um amor infinito à literatura e que, de sobra, era brasileiro. Mas não posso negar sua originalidade, a qual é fruto da coragem e da verdade com que escreve, assim como não posso deixar de concordar com esse pequeno lembre do velho safado: um escritor precisa escrever, pois do contrário nada lhe resta.
E por isso eu precisava escrever, mesmo que descontroladamente, mesmo que desesperadamente.
Nesses momentos de covardia, de inanição, de procrastinação (para usar uma palavra da moda) eu gosto de lembrar daquelas histórias que me fazem seguir em frente, sejam fruto da ficção ou relâmpagos da realidade, histórias que são um levante contra as injustiças do mundo em um ato que não se define por sua individualidade, mas por sua gentileza, por sua generosidade, por aquilo que entrega a tantos desconhecidos.
E a primeira história de que me lembro é a história de um cantor:
Sob as tenções da guerra fria, a desordem social marcada pela violência de grupos armados e a instabilidade interna provocada por disputas político-partidárias, o reggae despontava como uma bandeira de paz e união, como uma ponte que poderia unir mundos distantes. É nesse cenário que o Primeiro Ministro Michael Manley propôs a Marley, a Bob Marley, um show público que o cantor aceitou conduzir.
Smile Jamaica, diziam os cartazes do evento que aconteceria no dia 05 de dezembro e depois veio o golpe publicitário que associaria a imagem de Marley a Manley: as eleições ocorreriam no dia 15 de dezembro, o que gerou um aumento nas ameaças de morte contra Bob Marley, cuja residência passou a ser protegida por policiais, mas eles não estavam lá no dia 03 de dezembro de 1976 quando sete homens invadiram a residência e atiraram em Bob e Rita Marley e nos integrantes da The Wailers.
Nunca se soube quem foram os assassinos, é uma dor como aquela que assola o caso Marielle, mas Marley e Rita sobreviveram ao ataque, Rita foi alvejada na cabeça, mas o projetil não perfurou seu crânio, e Bob foi protegido por Don Taylor, seu agente, que pulou sobre o corpo do cantor para protegê-lo e levou cinco tiros em seu lugar.
Don também sobreviveu.
Dois dias depois, com a bala alojada no peito, Marley subiu no palco e cantou por mais de uma hora para cerca de 80 mil pessoas, para que elas pudessem sorrir.
Essa história é conhecida, foi contada e recontada na cultura popular, e é a primeira em que penso quando penso em desistir ou em parar, quando penso que não é fácil continuar. Mas não é uma história motivacional, ela não aponta meios para alcançar o sucesso e não trata do poder do pensamento positivo; em vez disso, ela retrata o peso de se fazer aquilo em que se acredita e o que significa suportá-lo. Para Bob, Rita, Don e a The Wailers significou ter um alvo nas costas, carregar uma bala no peito por toda uma vida, jogar-se em frente a balas e tomar a morte de outro para si, ser alvejado e não poder defender-se e, definitivamente, morrer.
Cada um carrega consigo as dores da própria existência, mas minha vida não é tão difícil e por isso não poderia deixar de escrever e publicar esse texto, talvez apenas para desperdiçar o tempo de todos que o lessem, talvez só por escrevê-lo, mas também porque tinha de fazê-lo.

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Histórias desconexas de uma vida sem sentido
SachbücherCrônicas semanais sobre a vida, os pensamentos e as observações de um escritor quase alcoólatra, quase deprimido e quase bom que tenta encontrar na literatura um pouco de paz mas só produz desilusão. Cada crônica compõe um capítulo e todos os textos...