Capítulo 5

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-Pelo menos desta vez só partiste um coração, não mataste ninguém.

As palavras do meu pai ecoam à minha volta como cacos de vidro e dou um passo em frente, forçando-me a olhar para ele.

-O Max já lhe contou?

O meu pai oferece-me um sorriso frigido e desce as escadas flutuantes até ficar à minha frente. Não importa que hoje tenha vinte e dois anos, a verdade é que sempre que ele olha para mim desta maneira, sinto-me sempre insignificante.

-Tenho a sensação que fazes de propósito, Camélia. Que tentas destruir tudo à tua volta, só porque sim.- O tom dele é condescendente e faz-me rir. Odeio que ele finja que não está zangado.

-Porque sim é um bocadinho desmerecedor, pai... é preciso esforço para fugir a isto. - Aponto para a casa à minha volta.

O meu pai ri-se e entrelaça os dedos compridos em frente ao corpo. "Estas mãos são o nosso ganha pão", dizia-me quando eu era pequena. Houve vezes, depois de discutirmos, em que desejei que as mãos dele desaparecessem, que as queimasse ou cortasse. Quis desesperadamente que ele fosse meu pai, mas ele foi sempre outras coisas primeiro. Médico, diretor geral, marido, amante, político... Em todas era um ávido mentiroso.

-És igual à tua mãe. – As palavras dele tiram-me do meu comboio de pensamentos e fazem-me perder o fôlego.

Não sei quanto espaço separa o coração dos pés, mas sinto sempre a viagem vertiginosa de cada vez que ele me diz isto, e ele é sempre cuidadoso quando o diz. Guarda as palavras que magoam para quando a deceção é demasiado abrasiva para se conter com ameaças ou gritos.

-Estás sempre a fazer isso.- Digo-lhe, sem querer que ele saiba quanto poder tem sobre mim.- Sempre a virar o jogo.

-Esperavas que eu não te dissesse que acabaste de dar outro tiro no pé? O Max é filho de um senador, vai ter uma excelente carreira... acabares com ele porque eu tive um problema com a Lillian é, no mínimo, uma grande estupidez.

-Tu não tiveste um problema com a mãe, tu traíste a mãe. - Digo-lhe com despeito.

-Os casamentos são complicados, não espero que entendas quando claramente nem sequer és capaz de resolver os problemas com o teu namorado.

Passo as mãos pelo cabelo, frustrada.

-Olha para mim, pai... tenho cara de estúpida? Achas que sou um dos pacientes a quem podes dizer "não fume", enquanto lhe bafejas fumo para a cara? Tu nem sequer consegues manter o teu casamento de pé!

O meu pai torce o nariz e vira-me as costas, o que me dá, irremediavelmente, a sensação de que posso ficar por cima nesta discussão.

-Não podes deixar a mãe sem nada. Não podes esperar que ela crie duas filhas, te seja fiel e depois traí-la como se não fosse nada!

-A Lillian sempre soube qual era o papel dela na minha vida. – Entramos os dois dentro da biblioteca e ele tira um livro de uma prateleira alta à quando eu nunca chegaria sem escadas.

-Papel? Ela adora-te. Viveu estes anos todos por ti, por nós! Como é que podes querer deixá-la sem nada?

-Isto não é conversa para ti, Camélia, as coisas vão resolver-se. Se ela insistir no divórcio a consequência é essa.

-É claro que ela quer o divórcio! Traíste-a!

Observo com um espanto cego quando ele abre o livro e se vira de costas para mim.

-E não é por isso que estás viva, minha querida?

-Cala-te!- Grito, e arranco-lhe o livro da mão.- És...

Hurting YouOnde histórias criam vida. Descubra agora