A manhã aqui é silenciosa e ao mesmo tempo barulhenta. Silenciosa por não ouvir barulho de carros ou obras. Barulhenta, por haver um montão de pássaros brincando entre os apartamentos da rua, dando rasantes e alguns pousando em minha janela para descansar.
Curiosamente eu estava deitado do mesmo jeito que "desmaiei" ontem na cama, uma das pernas para fora, a cara enfiada no travesseiro e os braços esticados ao lado de meu corpo. Coço minha cabeça e nuca, sinto uma pequena dor de cabeça – o que é bem fora do comum, já que nunca sinto dor de cabeça – e já solto um pequeno grunhido, reclamando do meu dia que sequer começou.
Olho meu smartwatch, um milhão de notificações, chamadas. Penso logo quem em pleno domingo já está tão desperto há uma hora dessas, tão cedo, me atormentando. Me fixo no relógio e vejo que já são 13 horas. Dou um salto da cama como um gato assustado e saio correndo, abro minha mala e pego as primeiras roupas que vejo e a toalha que minha tia Helena insistiu que eu trouxesse. Agradeço mentalmente sua preocupação e vejo que tinha todo o sentido. Entro no banheiro e me deparo com uma ducha minúscula – outro grunhido – vai demorar um século para tomar um bom banho aqui. Sacudo a cabeça e digo em voz alta para mim mesmo:
- Pare de reclamar Hugo – dou uns tapas na cabeça, tentando enfiar isso através do crânio – essa é sua nova vida, ao menos por enquanto. Então, aceite e viva da melhor forma.
Não quero ser um peso para ninguém, então tentarei ser a pessoa que eu sempre fui, um rapaz simpático, educado, animado e feliz da vida – independente da merda que tenha acontecido nela. Esse pequeno mantra pareceu funcionar, a ducha saia bastante água e a temperatura estava ideal. Foi perfeita o suficiente para lavar minha alma e sair como um novo Hugo. Me vesti rapidamente, um perfume, uns tapinhas no rosto e estava pronto para socializar.
- Buenos dias Sergio – chego na sala me espreguiçando – Como passou a noite?
Ele estava sentado no sofá, com um jornal em uma das mãos e uma caneca de café na outra, me olha por cima dos ombros e sorri. Dá para ver a satisfação em me ver bem – aparentemente bem – que me faz apostar comigo mesmo que ele e minha tia conversaram muito ontem sobre mim.
- Buenos dias Chaval – responde, erguendo a caneca de café – Por mais que eu já tenha almoçado, tem café, croissant ou qualquer coisa que você queira aí na cozinha. Fique à vontade.
- Grácias, estou morto de fome – devolvo o sorriso, relaxando os ombros e deixando-os cair ao soltar um pequeno suspiro – Mais uma vez, me desculpe por ontem.
- O que aconteceu ontem? – Me responde fazendo uma cara de dúvida bem, mas bem falsa. Sorri e logo em seguida me dá uma piscadela – Não aconteceu nada. E pode ficar tranquilo que nem sua tia sabe.
Um enorme peso saiu de minhas costas, menos preocupações para as pessoas que estão me ajudando. Amo minhas tias e não quero que elas se preocupem comigo agora, quero mostrar que consigo me virar sozinho e amadurecer cada dia mais.
Sergio voltou-se para seu jornal e eu segui sorrindo para a cozinha.
Por mais que nos conheçamos há pouco tempo, ele já se comporta como um tio para mim, o que é raro hoje em dia. Desde que cheguei à Andorra, ele sempre esteve presente me oferecendo ajuda. No meu primeiro dia aqui, ele e minha tia me buscaram no aeroporto de Barcelona, me levou roupas de frio e ainda me levou para tomar uma cerveja e jantar.
Além dos passeios que fizemos juntos durante minha estadia lá em Andorra, as partidas de futebol que assistimos – ele é fanático pelo Barcelona e minha tia, em contrapartida adora torcer para o Real Madrid – as partidas de Padel que travamos e até a primeira vez que vi a neve nos montes de Pas de la Casa. Sempre me tratando como um sobrinho seu, alguém realmente da sua família, e agora me recebe em sua casa para passar um tempo indeterminado, seja um mês ou um ano.
Tomando café da manhã – já depois das duas da tarde – vejo que sou muito agraciado com pessoas que gostam de mim e me ajudam. Após comer, volto ao quarto e começo a desfazer minha mala e a organizar minhas roupas no armário. Monto meu "santuário" na pequena mesa auxiliar ao lado da cama – e quando digo santuário, digo meu incensário com cristais que ganhei de presente da minha tia, um hub USB com os todos meus carregadores, um orb de LED que eu consigo mudar de cor através do celular (eu a carrego para todos os lugares, é minha coisa favorita), as fotos de minha família e minha garrafa de água com a cara do Hulk.
Não sou uma pessoa de muitas coisas, mas me apego muito em cada coisa que tenho e tudo tem seu significado.
- Toc Toc – Sérgio diz ao enfiar a cara na brecha que existia na porta – Me desculpa te incomodar, mas como vi a porta aberta...
- Tranquilo, entra – digo, receptivo – estou organizando minhas coisas aqui ainda.
- Aah, que bom que está se ajeitando – me diz enquanto checa o próprio celular – como essa semana temos as festividades de San Juan, todos os dias tem algo aqui em Cardedeu e nas cidades vizinhas.
- Sério? Que legal, o senhor vai sair hoje? – respondo um pouco desinteressado.
- Então – continua, abaixando o celular e olhando para a janela e sorri, vê as fotos que pendurei lá – meus filhos vão a Mataró hoje, eles tem queimas de fogos na praia. Estou morrendo de saudades da minha netinha e adoraria ir vê-la. Sei que está cansado, mas gostaria de vir?
Meus olhos brilham. Mesmo sendo do Brasil, um país conhecido por suas lindas e imensas praias, eu nunca conheci nenhuma delas. Nasci e cresci na região centro-oeste do Brasil e nunca tive condições de sair de lá e visitar a praia.
Vou ver pela primeira vez a praia. Minha primeira vez numa praia!
- É sério? – Respondo completamente animado – Caramba, que legal! Sim, claro que sim, quero ir sim. Ehh, claro, se não for nenhum incomodo.
- Ah chaval, claro que não – me responde fazendo uma careta engraçada – É há 20 minutos daqui indo de carro. Bom que você conhece meus filhos e minha netinha linda. E asseguro que eles também estarão encantados de conhecer você.
- Okay, okay – meu entusiasmo salta por meus olhos – a que horas saímos?
- Sairemos agora as 16 horas – diz já saindo do quarto – Ponha uma bermuda e chinelos, pois andar na praia de tênis e calça jeans não é muito apropriado.
Sai rindo alto, deixando claro que realmente todos aqui me veem como um garoto da cidade. E o pior, eu não tenho nenhuma bermuda aqui. Rio sozinho e digo para mim mesmo:. – É, realmente, sou um garoto da cidade.
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Aquilo Que Já Partiu Ainda Deixa Marcas (ROMANCE LGBTQIA+)
Novela JuvenilNo vibrante cenário de uma cidade de Barcelona, onde amizade e descobertas se entrelaçam, Hugo, um jovem com a mente cheia de sonhos e sentimentos confusos, se vê envolvido em um turbilhão emocional quando conhece Mario, um rapaz enigmático e cativa...